O Paradoxo de Bobbio

Em uma democracia, quais as relações entre estruturas institucionais e valores?

Capa do livro “O Futuro da Democracia”, de Noberto Bobbio

Em O futuro da democracia, o cientista político italiano Norberto Bobbio apresenta duas teses que constituem certo paradoxo e apontam para a complexidade da formulação de um modelo político democrático. Uma das teses se relaciona com a democracia como um sistema burocrático regido por regras e normas. A outra é que a democracia demanda uma virtude democrática por parte dos cidadãos.

A primeira tese forma o eixo central da obra. Bobbio coloca que a democracia é um regime procedimental, ou seja, um corpo de regras é estabelecido para que a distribuição de poder seja feita. Por exemplo, no Brasil, deputados e vereadores são eleitos por voto proporcional, em que o percentual da votação bruta do partido indica quantas vagas ele ocupará na assembleia. Nos Estados Unidos, a eleição presidencial é realizada por meio de um colegiado eleito. Na Inglaterra, o cargo de primeiro-ministro vai para o partido com a maior votação no parlamento.

Todos esses são modelos procedimentais e que devem ser respeitados para que a democracia funcione. Os candidatos aceitam as regras da disputa, os eleitores votam conforme o modelo eleitoral estabelecido e assim os rumos políticos da sociedade são definidos.

Essa tese de Bobbio é fruto de teorias e práticas que se desdobraram ao longo da história. A Magna Carta que limitou os poderes do rei da Inglaterra, as teses de Montesquieu quanto ao equilíbrio entre os três poderes, o Leviatã de Hobbes, a Constituição dos Estados Unidos, a conceituação da vontade geral como definidora dos rumos da nação de Rousseau e o poder burocrático de Weber são alguns dos seus precedentes.

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Já a segunda tese trata da demanda de uma virtude cívica por parte das pessoas que fazem parte da sociedade. Para haver democracia, a população deve exercer essa virtude, que pode tangenciar termos como cidadania ou nacionalismo. Sem haver a vontade de praticar esses princípios, não haveria democracia.

A virtude indicada por Bobbio pode ter raízes diversificadas. Por exemplo, pode surgir no caso de uma vila habitada há séculos que se torna lugar de uma tradição, a qual confere ao território um valor. Ou no de um país que lutou por sua independência e essa luta gera um senso de nacionalismo e de pertencimento. Ou por uma série de valores simbólicos que criem a ideia de coletividade, como fatores culturais, religiosos, linguísticos, étnicos etc.

Aqui podemos definir o paradoxo. Por um lado, Bobbio define a democracia como um modelo político calcado na burocracia e na racionalidade. Por outro, aponta que a democracia para existir exige esse valor democrático, algo que não necessariamente se encontra na esfera racional, envolvendo sentimentos, tradições, fantasias, mitos e muitos outros.

Um fenômeno bem conhecido e que se relaciona com essas duas teses é o da vontade de ir para os Estados Unidos com a finalidade de conquistar crescimento financeiro. Esse desejo é possível graças à forte economia do país, mas há altas doses de fantasia por trás disso, envolvendo sonhos e desejos particulares. Há um fator mítico nessa ideia, até porque é possível conquistar esse crescimento financeiro em outros países com economia forte. Por outro lado, o Sonho Americano – que, internamente, afirma a possibilidade de ascensão social para todos – é um dos elementos mais fundamentais na sustentação da democracia do país. Tanto que nas eleições temas como a intervenção do estado na economia  são fortíssimos, como se esse mito que gera a coesão social pudesse ser desfeito pela política.

O mesmo pode ser dito de muitas democracias europeias, em que o modelo democrático tem por base uma coesão social formada por história, idioma e um senso de etnia existentes.

A manipulação e a dissolução dos sentimentos cívicos

Porém, será que o paradoxo de Bobbio pode, no fim das contas, ser o que de fato forma uma democracia? Será que a existência de um modelo burocrático e procedimental precisaria de um valor cívico para existir? Podemos buscar respostas em governos populistas com vieses extremistas de esquerda e de direita que chegaram ao poder recentemente.

Rodrigo Duterte, Viktor Orbán, Hugo Chávez, Nicolás Maduro, Daniel Ortega, Recep Erdogan e Donald Trump são representantes desse grupo. Seus discursos apelam para a existência de um grande inimigo que pode colocar a sociedade em risco e eles se oferecem como os salvadores da pátria. Orbán já deixou clara sua xenofobia com relação aos imigrantes, Chávez e Maduro adotaram a causa da luta contra o liberalismo econômico e o sistema capitalista, Trump tinha como inimigos de comunistas a imigrantes latino-americanos, Duterte alavancou uma sangrenta luta contra o crime e Ortega tem tantos inimigos que tem solapado a Nicarágua com suas medidas autoritárias.

Em todos esses casos, não falamos de um ditador que colocou tropas nas ruas e tomou o poder. Todos são casos em que a figura antidemocrática chega ao poder pelo voto popular. É justamente mobilizando o senso de pertencimento, sentimentos e imaginários que o antidemocrata ganha força. Ou seja, a dita virtude cívica de alguma forma não se encaixa mais na burocracia racional ou deixa de existir.

A invasão do Capitólio nos Estados Unidos é o mais famoso caso dessa problemática, com uma divisão política que gerou uma grande celeuma, com direito à morte. Estaria o senso cívico perdendo força?

Outra dimensão a ser considerada nessa discussão é se o modelo procedimental e burocrático de fato nasce do povo ou precisa do senso cívico para existir. Essa é a hipótese de que o funcionamento da democracia dependeria menos do povo e mais de outras instituições da nação. Voltemos aos Estados Unidos. Apesar do conceito de maior democracia do mundo, sua carta constitucional foi escrita por uma elite intelectual, com os Pais Fundadores em destaque. A França desde a sua revolução capengou ora pra república, ora pra monarquia, com movimentos nascidos mais da disputa de grupos elitistas do que da população, que teve poucos episódios de participação (como na queda da Bastilha e na Comuna de Paris) ou foi usada como peão no xadrez político. A constituição japonesa é um caso bastante incomum, pois os termos democráticos e a limitação dos poderes do imperador são uma imposição dos Estados Unidos após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial.

A história do Brasil colabora para esse debate. A independência criou uma monarquia parlamentar em que o imperador detinha um quarto poder, o moderador, acima dos outros três, e as eleições contavam com números estreitos de eleitores. Na República, o sufrágio se expandiu, mas o país passou por duas ditaduras. Daí fica o questionamento do quanto um senso cívico brasileiro é fundamental para nossa democracia.

A garantia de direitos na Constituição de 1988 nasce de um clamor popular ou de um grupo político desconectado da população? A formação de uma suprema corte que garante a preservação da Constituição depende do senso cívico? O modelo político onde o eleitor vota na pessoa do candidato sem saber que seu voto conta para o partido e elege outro candidato é fundamentado nesse senso?

O paradoxo de Bobbio nos leva a refletir sobre como nossas democracias nascem e – pior – em como elas podem morrer. Se essa relação entre estrutura burocrática e valores cívicos pode não se conectar adequadamente, sua discussão nos leva a avaliar como as democracias caminham atualmente. Talvez elas fraquejem e caiam pela dissolução do modelo burocrático. Talvez elas caiam pelo desfacelamento do senso cívico. Ou então talvez elas caiam justamente pela combinação dos dois fatores.

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