Às Voltas de Valéry: O Curso de Poética e a Poiética dos Cadernos

Uma análise do recém-lançado inédito do filósofo francês

O editor “William Marx reconstruiu um fio bastante consistente do curso de poética de Valéry, demorando-se sobre um material heterogêneo já conhecido, mas muito pouco acessível” | imagem: Nicolas Nova

O lançamento do Cours de Poétique, de Paul Valéry – em dois grandes volumes de 750 páginas cada, cuidadosamente editados por William Marx para a editora Gallimard – tem sido grande destaque da rentrée d’hiver desse ano na França, com direito à cobertura dos principais veículos de mídia – impressa, televisiva, digital etc. – do país. É curioso ver um trabalho de pensamento como o de Valéry, reputado pelo hermetismo e por seu caráter arredio à “bêtise moyenne” do grande público, voltar a ganhar tantos holofotes.

E digo voltar pois, com efeito, a obra valeriana vive, de modo muito particular, um ciclo de idas e voltas constantes na sua relação com o campo literário e as demandas do leitor: o mesmo escritor que, de 1894 a 1945, passa todas as manhãs escrevendo seus cadernos – e que por vinte anos dedica-se exclusivamente a tal exercício de refinamento do próprio pensamento, desenvolvendo-o num terreno experimental ao mesmo tempo rigoroso e privado, livre de exigências de enquadramento disciplinar e, portanto, livre para desdobrar implicações sobre diferentes práticas e saberes – é aquele que, a partir dos anos 1920, é catapultado para a fama literária, torna-se a figura intelectual francesa de maior destaque no período entreguerras, o “Bossuet da Terceira República”, e passa a ter seu frágil sustento dependente da publicação de textos encomendados, paratextos para todos os tipos de livro, ensaios circunstanciais, conferências para as mais diferentes instituições, muitas vezes publicados em tiragem limitada e cara antes de se reunirem em Variété, o conhecido conjunto de textos poéticos, filosóficos e políticos publicados por Valéry em vida.

Em 1937, ainda durante o governo da coalização de esquerda do Front Populaire, Joseph Bédier e Alexandre Moret – um, administrador; o outro, professor de egiptologia no Collège de France – convidam Valéry a assumir uma cadeira na célebre instituição. William Marx narra o processo de admissão, que não foi desprovido de tensões. Parte do colegiado de professores temia que um poeta, então com 66 anos e sem nenhum tipo de experiência anterior como professor universitário, trouxesse para suas aulas o mesmo tipo de ambiente mundano, retórico e pouco rigoroso atribuído aos salões literários. Tal suspeita não impedirá a eleição de Valéry para a cadeira de poética, nem vai se justificar no longo prazo: apesar do ruído midiático das primeiras aulas – com cobertura da mídia e salas apinhadas de burgueses e madames, muitos presumidamente mais atraídos pelo barulho que pelo conteúdo – o curso logo mostra a que veio, colocando em cena muitas das reflexões que o poeta desenvolveu por muitos anos em seus cadernos. Assim, em pouco tempo, as aulas do professor Valéry começam a ser comentadas e recenseadas por outros escritores e críticos, como Maurice Blanchot (em texto depois reunido em Faux Pas) ou Georges Le Breton (com os resumos das aulas do primeiro ano do curso, publicados na revista Yggdrasill), que faziam parte – junto com Roland Barthes, Yves Bonnefoy, Emil Cioran, Michel Tournier e outros – do grupo que não apenas frequentou assiduamente as aulas dos cursos, mas também deixou valiosos testemunhos sobre elas.

Durante muitos anos, o depoimento desses célebres frequentadores foi o único destino do curso de poética de Valéry, encerrado em 1945, depois da morte do escritor. Exceção feita aos dois textos elaborados para seu processo de admissão – a proposta de ensino e a primeira aula, posteriormente também publicados em Variété – nada mais dos oito anos de aulas era acessível ao público leitor mais amplo. É bem verdade que “A Primeira Aula do Curso de Poética” se tornou um dos textos mais lidos do escritor, uma presença constante da bibliografia básica dos cursos de teoria literária em universidades ao redor do mundo. Mas, justamente por isso, não poderia ser maior a curiosidade para saber como o resto do curso desenvolveria o programa de uma “história da literatura”, de tal modo mergulhada nos processos de criação que se tornaria desnecessário registrar nela o nome de um único autor sequer; ou ainda como teria se desdobrado a proposta de Valéry para uma economia do ato poético, que comparasse a gênese do valor literário com a do valor monetário, uma reflexão que poria o conhecido formalismo valeriano em contato direto com dilemas políticos e sociais da Europa moderna.

Por um lado, os estudiosos especialistas na obra de Valéry podíamos contar ainda com o volumoso dossiê de manuscritos e datiloscritos do curso de poética, reunidos na Biblioteca Nacional da França, hoje digitalizados e acessíveis pela plataforma Gallica. Nele encontram-se notas de preparação das aulas, algumas bem detalhadas e redigidas, outras muito esparsas (geralmente para as últimas aulas de cada ano), junto com alguns longos relatórios que, a cada ano, o professor deveria dar como prestação de contas de seu ensino. Por outro lado, dada a heterogeneidade e o volume de milhares de páginas desse material, não havia ainda uma visada de conjunto sobre esse corpus, apenas textos e artigos trabalhando com dilemas específicos de determinados anos, como o trabalho de Benedetta Zaccarello sobre a simbólica teatral em operação no curso, ou ainda – com a permissão do leitor – o estudo que desenvolvi no doutorado, sobre a ligação entre as notas do curso de 1942-1943 e os manuscritos das últimas partes do Fausto de Valéry, produzidos na mesma época em torno da tensão entre a aceleração técnica da vida social e a crise fiduciária das instituições políticas modernas, um tema – diga-se de passagem – bastante afim aos nossos dias de fricção entre o tempo das redes sociais e o tempo das mediações institucionais da democracia representativa.

Por tudo isso, não poderia ser mais bem-vinda a conclusão desse longo trabalho de William Marx, que conseguiu reconstruir um fio bastante consistente do curso dado por Valéry, demorando-se essencialmente sobre esse material heterogêneo já conhecido, mas muito pouco acessível. Para refazer esse caminho, Marx contou com documentos internos da instituição, que se fizeram acessíveis quando ele mesmo se tornou professor de poéticas comparadas do Collège, em 2019. Tais documentos, como livros de registro e presença etc., davam pistas valiosas sobre o que fora efetivamente dado em cada data de aula e, no seu conjunto, constituíam um sistema de referências capaz de estruturar a massa de textos e notas depositadas na BnF. Esse seria, em resumo, o trabalho de edição projetado inicialmente por Marx para a preparação do texto que hoje veio a público. No meio do caminho, porém, ele se deparou com um acaso feliz: conforme os arquivos foram sendo remexidos, começaram a surgir rumores de registros estenográficos das aulas, tirados em 1938 sob encomenda de Gaston Gallimard (que acertara com Valéry a publicação do curso em livro), e em 1945 a pedido de Julien-Pierre Monod, banqueiro bibliófilo e amigo de Valéry. As doze lições integralmente transcritas entre 7 de janeiro e 12 de fevereiro de 1938, até então perdidas no fundo dos arquivos da Gallimard, e as dezesseis aulas transcritas de 5 de janeiro a 24 de março de 1945, depois depositadas na biblioteca particular Jacques-Doucet, foram reencontradas e deram ao projeto editorial de publicação do curso uma amplitude completamente diferente.

Por certo, editar um corpus como esse traz consigo inúmeros desafios. Vale notar que eles são objeto do curso que o próprio William Marx dá este ano no Collège, uma espécie de metacurso de poética, com direito à mise-en-abîme criada com a exposição, na tela de frente para o público do curso em 2023, da imagem da primeira aula do curso de Valéry em 1937, com a lousa diante do público da época. O curso de Marx, como todos os outros do Collège hoje, pode ser visto pela internet, e está de certo modo imediatamente registrado, o que o difere – como as próprias aulas observam – tanto dos cursos de Foucault e Barthes, registrados e posteriormente publicados em livro, quanto do próprio Valéry, que exigiu uma longa labuta de reconstituição a partir de diferentes tipos de material. E os desafios da edição são ainda maiores, pois Marx não quis fazer uma edição crítica, repleta de notas de rodapé explicativas, nem uma edição genética ou diplomática (que, cada uma a seu modo, visariam expor os manuscritos e datiloscritos em seu estado mais inacabado ou processual), mas uma edição acessível ao leitor não-especialista. Para isso, “todas as correções e anotações marginais dos manuscritos e das datilografias são tacitamente integradas no texto; as palavras riscadas por Valéry não são assinaladas: os especialistas poderão sempre consultar o documento original, cujas referências são sistematicamente indicadas em nota” (p. 60).

Assim, qualquer avaliação do trabalho de edição feito por Marx deverá levar em conta seu propósito, que era o de oferecer um texto legível para o leitor comum, não, por certo, o texto que Valéry teria publicado se tivesse cumprido o acordo feito com Gallimard – e que provavelmente, concordo aqui com o editor, teria por título Poétique, e não de Cours de Poétique – nem o texto que um especialista zeloso pelas variações e possibilidades em ação nos manuscritos gostaria de ter em mãos.

Ainda assim, vale o registro, pois ele toca diretamente numa questão fundamental do curso e da poética de Valéry como um todo: diante da necessidade de reconstruir o curso do curso, quer dizer, sua dimensão contínua, desdobrada aula a aula, dando ao leitor acesso ao discurso mais corrido e redigido do professor, Marx toma uma decisão compreensível de deixar de fora de sua edição as notas mais esparsas, mais abreviadas ou lacônicas. Em entrevista para a Acta Fabula, porém, ele confessa ter sido menos exigente, em termos de nível de elaboração do texto, quando tais notas tratavam de poesia e literatura. A justificativa para isso, segundo Marx, foi a necessidade de equilibrar mais o conjunto da obra, que estaria até então com volume muito menor de reflexões sobre questões literárias, em comparação com o conjunto de textos dedicados a pensar sobre o corpo, a sensibilidade, a linguagem, a sociedade, as ciências, a política da fidúcia e dos meios técnicos etc.

Com efeito, um ponto fundamental para a compreensão do Cours de Valéry como um todo é amplitude que ele dá ao termo poética, recuperado não só de Aristóteles, mas da ideia mais geral de fazer própria ao verbo grego poïein, razão pela qual – tal como já ocorria nos Cadernos – Valéry frequentemente escreve poïétique, indicando com isso a produção daquilo que o poeta chama de obras do espírito, um conceito onipresente no curso e que abrange não só as criações artísticas, mas também os discursos e práticas do direito, da religião, da política, da história, da filosofia, os saberes e técnicas da ciência, em suma, todo tipo de fazer que envolva a interação entre um sistema de atos – de ações que se determinam à medida que notam sua própria virtualidade, sua possibilidade de agir ou não agir, e, logo, sua reversibilidade – e um contínuo irreversível de sensações, matérias e corpos que se correlacionam e reverberam uns sobre os outros à medida que satisfazem ou reinstigam demandas e desejos tecidos junto às interações que mobilizam e que as mobilizam.

O vocabulário algo específico e talvez difícil para uma primeira leitura procura tocar o nó mais íntimo dessa noção de poïésis, ao mesmo tempo ampla e singular, capaz de englobar tipos de produção intelectual e sensível tão diferentes quanto a matemática e a pintura, e de, ao mesmo tempo, abrir contrastes e comparações interessantes entre elas. Se o tradicional recurso à noção de utilidade aparece para fazer a distinção entre as obras de arte (que não se extinguiriam na satisfação de uma função unívoca) e outros tipos de obra do espírito (que se reduziriam à finalidade externa), ele é constantemente perturbado pela compreensão de que a experiência poiética – mais que se fechar em si mesma, negando-se a funções exteriores dadas – é construída pelo enlaçamento rítmico de funções heterogêneas, ao mesmo tempo internas e externas, que se atritam, se afinam e se transformam reciprocamente à medida que o próprio ser vivo, desde sua dimensão biológica, está em diferença e excesso contínuo em relação a si mesmo. Daí que “a luta do espírito contra o real” seja, de certa forma, uma modalidade de existência do próprio real 1, e que os limites entre natureza e cultura, bem como entre obras de arte e obras do espírito, estejam continuamente em movimento, em hesitação.

Levando isso em conta, há folhas manuscritas que foram deixadas de lado e que, a meu ver, teriam certo valor. Às vezes, mesmo um parágrafo isolado pode trazer luzes interessantes sobre o conjunto do projeto, ainda que, de fato, seja bem difícil de incluir em uma edição sem afetar sua continuidade discursiva, especialmente quando, tal como parece ser o caso aqui, desejou-se desde o início manter-se distante da forma antologia de fragmentos, já tão associada – erroneamente, como veremos – aos cadernos. Mesmo assim, registraria que, dentre esses manuscritos mais sintéticos, que talvez pudessem ter contado com o olhar mais generoso que Marx teve para com certas notas esparsas sobre literatura, talvez fosse possível incluir a folha 68 do dossiê do ano 1942-1943, que nos oferece uma espécie de tabela geral de definições da fidúcia, da ciência e da obra de arte, construídas no quadro daquela luta contra o real. Trata-se de uma visão sintética dessa luta, que permite apreender em um só golpe de olho, por assim dizer, os contrastes entre o fiduciário, o científico e o artístico, entre suas formas de interação com o corpo e com a matéria.

A luta contra o “Real”

Pois somos um desvio das condições naturais: todas as metafísicas partem daí.

Essa luta procede e só pode proceder pela tentativa de modificar:

ou o Real inicial, bruto; técnica, prática e conhecimento científico;

ou a própria ideia de um Real: metafísicas etc.

ou o outro membro da relação: o próprio homem

A modificação real do Real ou pesquisa científica consiste em agir sobre a própria percepção. A ver, por exemplo, por artifício aquilo que nossos olhos não mostram.                     Aqui, todos os relais conhecidos.

A modificação da ideia do real consiste em torturar de todos os modos as expressões primeiras, e a criar valores fiduciários: valor da vida, por exemplo. Dispõe-se aqui de todo o arbitrário imaginável. E é a produção de ideais mais ou menos figurados ou abstratos que, todos, exprimem, cada um a sua maneira, protestos contra o que está aí.

O Éden, a era de ouro dos antigos, o paraíso da Idade Média ou ainda a Cidade Futura, ou a era de justiça, de paz.

Os Ultra-Mundos.

E na ordem abstrata: a tríade do Belo, do Bem e do Verdadeiro.

Há também os ideais “em ato”, digo, que tentam se realizar materialmente ou quase-materialmente nas artes.

Esses atos diversos de ataque e de defesa contra o que existe, e que tentam nos distanciar da submissão à nossa natureza limitada, atracam-se ora contra a ordem, ora contra a desordem dada […]

(NAF19094, f. 68, Cours de Poïétique VIII, BnF, tradução nossa).

A comparação entre a poética dos saberes e instituições fiduciárias (religião, direito, filosofia, história, política etc.) e a poética do saber fazer das receitas de ação tecno-científicas – comparação essa mediada pela poética das obras de arte, que oferece uma perspectivação crítica em relação às outras duas – constitui, a meu ver, eixo maior de estruturação do curso. Ela se desdobra nas duas grandes partes que dividem não só os dois volumes editados por Marx, mas os oito anos do curso como um todo, três deles – entre 1937 e 1940 – dedicados à reflexão sobre a dimensão íntima da sensibilidade, do corpo e do intelecto (ou “O corpo e o espírito”, como foi intitulado o primeiro volume), e cinco deles, a partir de 1940-41, voltados para “A linguagem, a sociedade, a história”, título do segundo tomo. No texto de apresentação do Cours, Marx mobiliza com muita desenvoltura o olhar perspicaz que Valéry, desde sua intensa convivência com a poética das obras de arte, lança sobre os afazeres do sujeito e da sociedade. De modo bastante diplomático, o editor sublinha o interesse das reflexões valerianas para uma série de campos de estudo desenvolvidos posteriormente, dentre eles o da sociologia da cultura de Bourdieu (em razão das afinidades entre o conceito de fidúcia e de habitus), o da antropologia das ciências de Latour (dada as reflexões de Valéry sobre as acoplagens entre as práticas científicas e as práticas sociais), o da performatividade da linguagem de Austin (“como fazer para que as palavras contem?”, p. 35), o da filosofia derridiana da descontrução (dada a proximidade entre o conceito de différance em Derrida e o desvio – l’écart – que Valéry sistematicamente aponta no limiar “entre demanda e resposta, promessa e realização, restrição e liberdade”, p. 32), dentre outras implicações, que ainda incluiriam a neurobiologia, a termodinâmica e a biologia evolucionista.

Essa amplitude de implicações pode parecer desmedida, e de fato ela pode ser um problema para tentar convencer o leitor que ainda talvez não conheça Valéry, leitor que a essa altura pode estar cético em relação a tantas pretensões. Ora, é diante desse dilema que Marx formula a hipótese mais ousada de seu texto de introdução: a de que o curso de poética ofereceria “uma antropologia total da vida do espírito” (p. 39), uma visão de conjunto, que impressiona pela coerência e pelo modo “lógico e natural” como perfaz “a passagem de um tema para o outro, segundo uma organização por círculos concêntricos, desde o nível do criador individual até o da sociedade e das obras coletivas do espírito” (p. 38). O Cours seria assim a síntese pública do pensamento que Valéry teria começado a elaborar, desde sua juventude, com o início da escrita dos Cadernos, esses jamais publicados em vida (p. 38).

Um ponto que Marx sublinha com razão para reforçar sua hipótese é o número reiterado de vezes em que o poeta propõe, à audiência do curso, exercícios de redução fenomenológica, em que uma determinada experiência, em vez de ser isolada como material empírico de um olhar analítico, é apreendida em interação com a subjetividade, com a sensibilidade e com a visada da consciência. Curiosamente, o exemplo fornecido por Marx – da lição de 12 de fevereiro de 1938 – toca numa ambiguidade fundamental dessa antropologia do espírito em Valéry:

Se vocês suprimem por um instante tudo o que sabem, isso não os impede de ver o que está ao seu redor, de sentir, de conhecer a resistência dos corpos, a temperatura deles etc. Se vocês suprimem tudo o que faz vocês reconhecerem os objetos, se vocês observam as coisas como observariam um texto em língua desconhecida […]; se vocês imaginarem até mesmo descrever um desses mundos, um desses instantes, descrever, por exemplo, esta sala, que não seria mais uma sala, vocês teriam simplesmente de notar tudo isso exclusivamente nos termos de suas sensibilidades (Cours de Poétique, tomo I, p. 450, grifo nosso).

De um lado, a proposta de ver as coisas como um texto em língua estrangeira não deixa de ressoar com a ideia de uma epoché fenomenológica, uma suspensão do juízo que, como diz a sequência do texto, colocaria toda a discursividade de nossos hábitos de percepção à prova, no fim das contas, da nossa sensibilidade concreta, reencontrada ao final, sob tantas camadas linguageiras e abstratas. Por outro lado, essa mesma proposta não deixa de ressoar com outros momentos do Cours, quando Valéry instiga o público a olhar uma obra desde um olhar deslocado: “e se um selvagem encontrar uma máquina de escrever, o que ele poderia pensar dela? O que ele poderia imaginar para supor um fim qualquer para tal objeto e, sobretudo, um modo de construção?” (p. 142sq). Aqui, mais que um exercício de suspensão do conhecido, observa-se um trabalho de variação das maneiras de ver e fazer, deslocamento que provoca transformações na acoplagem entre ações e sensações, e que faz da antropologia da escrita e do pensamento de Valéry, como notou Roberto Zular, um contínuo exercício de estranhamento de si mesmo.

Nesse sentido, vale lembrar que esse conjunto considerável de implicações entre disciplinas heterogêneas, desdobrado no Cours, é não só herdado da longue durée da escrita dos cadernos, mas, sobretudo, não é resultado de uma erudição cumulativa de conhecimentos, mas de um fazer entendido como prática de variações entre práticas e saberes heterogêneos. Se Leonardo da Vinci é o modelo de artista para Valéry, é por ele ser capaz de

[…] olhar o mesmo objeto ora como pintor, ora como naturalista, ora físico, ora poeta; um artista mergulhado em todos os aspectos da vida, ligado ao mesmo tempo às formas, ações, atitudes, à estrutura íntima, ao funcionamento orgânico… e que, longe de acumular esses inúmeros olhares de precisão como numa coleção de aquisições separadas, fazia essas observações tão diversas se combinarem incessantemente entre elas (Vues, p. 218).

Para Valéry, o poeta não é quem só poderia ter sido poeta. Muito pelo contrário, ninguém é o que é se não pudesse ter sido uma infinidade de outras coisas. O eu atual é sempre apenas um caso de um Proteu de múltiplas formas metamórficas, uma posição de equilíbrio, como diz Michaux, entre mil outras continuamente possíveis (Plume, p. 152). É pela lida concreta com esse campo de variação e articulação entre práticas que a poesia vai entrelaçando esses saberes heterogêneos, não por meio de uma formalização que os subsubmisse à condição de entes comparáveis e homogêneos de um metasaber ou metalinguagem soberana, nem por uma sensibilidade de fundo, cuja imediaticidade servisse de critério de validação, mas por uma modulação que ensaia modos hesitantes e variáveis de correlação entre seus planos qualitativos heterogêneos.

À distância, portanto, do rigor das práticas científica, conquistado pelo isolamento e purificação de seu ponto de vista particular – um rigor, aliás, que não cessou jamais de atrair a admiração de Valéry, justamente pela dimensão poética de uma dedicação infinita a um saber específico e assumidamente finito – encontraríamos não tanto uma antropologia total do espírito fundada no reencontro com a experiência vivida, mas uma antropologia da variação praticada no encontro vivido com a experiência do vivível, da virtualidade. O que esse contínuo exercício de estranhamento de si desvela não é o dado, mas o virtual, o possível, afinal

[…] nós somos uma virtualidade. O ser vivo não pode ser considerado num instante dado. Quando se faz mecânica, considera-se um sistema material em dado instante, na hora H, se vocês quiserem. Mas quando se trata do ser vivo, é absolutamente impossível descrevê-lo limitando-se ao que se pode constatar sobre ele, ou ao que ele pode constatar em si em dado instante. É preciso considerá-lo como algo que deve ser descrito progressivamente, e de algum modo considerar que sua definição e sua descrição são o efeito sucessivo dos acontecimentos exteriores, dos acontecimentos que surgem. Vocês não sabem do que são capazes, vocês não sabem o que pode sair de vocês, ou, se sabem, não sabem a que horas, a que momento, em qual conjunção de circunstâncias isso sairá de vocês. E eu lhes disse outro dia que, em suma, poderíamos considerar esse ser como uma virtualidade, como uma possessão virtual de capacidades diversas, de sofrimentos, de dores, de ideias, de atos etc. […]

Por exemplo, quando uma pessoa acorda, a primeira coisa que se produz é uma espécie de divisão, de segmentação, do estado confuso do despertar, por uma distinção entre essas três grandes massas de coisas [corpo, espírito, mundo], de acontecimentos não dados, mas virtuais, que ele começa a notar e que vão pouco a pouco se desenhar e se amenizar e estabelecer entre eles conexões e, enfim, com seu despertar, colocar-se para ele (Cours de Poétique, tomo 1, p. 244-245, grifos nossos).

A experiência do que vivemos, sentimos e sabemos se desdobra suscitando a todo momento o que poderíamos ter vivido, sentido e sabido. Se toda consciência ou percepção é sempre “consciência de” ou “percepção de” alguma coisa, como recomenda a boa escola fenomenológica, é preciso insistir, por outro lado, que só é possível saber ou sentir o que é dado no âmbito da ressonância do que poderia ter sido: “O que está presente exige o que não está, e o que não está tende a se produzir. O que está presente engendra o que não está, como o verde chama o vermelho e vice-versa, como uma nota musical chama outra” (tomo 1, p. 282). Nesse sentido, talvez o Cours de Poétique fosse ele mesmo mais bem apreendido como uma variação da escrita dos cadernos, um deslocamento entre duas práticas bastante diferentes entre si – a da escrita diária e matinal diante de si mesmo e a da preparação das aulas semanais para um público mais ou menos assíduo – práticas com demandas muito específicas de tradução entre suas linguagens. E, se por um lado, o leitor brasileiro não tem ainda uma tradução dos dois grandes tomos do curso editados por William Marx, que ele me permita, por outro lado, encerrar este texto recomendando a tradução que já existe de uma edição da Poiética dos Cadernos.

Publicada pela Iluminuras no final de 2022, Poiética [Cadernos] de Paul Valéry tem como base a seleção de fragmentos feita por Judith Robinson-Valéry para a coleção Pléiade, a edição mais conhecida e lida dos Cahiers de Valéry, mas que não só é muito parcial (reunindo nem 5% do total), mas também adotou um sistema de classificação por rubricas e uma tendência a acolher os textos mais compreensíveis isoladamente, o que motivou a impressão de que os cadernos seriam um conjunto de fragmentos, à moda da escrita fragmentária do romantismo alemão. Um mergulho nos manuscritos, porém, mostra que a escrita dos Cadernos se desdobrava como esse contínuo de variações e de implicações parciais entre poesia, linguagem, estética, política, matemática etc., que se perdem quando os textos são segmentados em rubricas. Para evitar essa perda, sem abrir mão da ancoragem constituída pela edição Pléiade, Roberto Zular e eu elaboramos e traduzimos uma edição aumentada, que parte dos textos selecionados por Robinson-Valéry e recupera dos manuscritos parte desse fluxo de variações heterogêneas de que eles fazem parte.

Esperamos que esse mergulho nos cadernos e no curso de poética, renovados por essas publicações recentes destinadas ao leitor não-especialista, permita não só a superar as imagens enrijecidas de formalismo e intelectualismo comumente atribuídas ao poeta – e, com efeito, os cadernos e o curso revelariam não só a presença de uma poética do corpo e da sensibilidade em Valéry, mas também que as noções de forma e formalismo são inseparáveis dessa morfologia das variações sensíveis e corporais – mas, sobretudo, estabelecer diálogo com um pensamento que nos parece ter muito a dizer diante dos dilemas do contemporâneo. Acredito que há uma vocação cosmopolítica no pensamento de Valéry, no sentido – para colocar nos termos do filósofo Moysés Pinto Neto – de uma recusa de metaframes universalistas e de unificações num mesmo imaginário, que acompanha essa preferência sistemática pela articulação de heterogêneos. Mais que isso, há também em Valéry uma poética da modulação, que procura sublinhar as variações mais sutis nesses campos de interação vibratória e hesitante entre sistemas de ação e materialidade heterogêneos, modulação que nos permitiria pensar formas de mediação cosmopolítica mais refinadas, em meio ao choque imediato e violento de práticas e saberes submetidos à constante e ubíqua aceleração da vida sob a economia capitalista.

Autor

  • Professor do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc-SP). Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP) – pela qual é graduado em Filosofia – e pela Université Paris Ouest Nanterre, realizou dois pós-doutorados, pelo Instituto de Estudos Literários da Universidade de Campinas (Unicamp) e pelo programa de pós-graduação em letras da Universidade Federal do Paraná. É também graduado em Letras, pela Universidade São Judas Tadeu. Foi professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É membro do grupo de pesquisa Categorias da Narrativa. Desenvolve pesquisas nas áreas de teoria literária e poesia moderna e contemporânea.

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