Meditando em uma sala de aula, adolescentes respondem à dúvida hiperbólica cartesiana: “Há algo que podemos conhecer de fato?”
No presente trabalho, me proponho a descrever uma experiência do pensamento realizada com uma turma de pré-vestibular em uma aula sobre o racionalismo cartesiano. Primeiramente, explico do que se trata uma experiência do pensamento de filosofia e, então, proponho algumas reflexões acerca das possibilidades pedagógicas que este tipo de atividade traz a partir da análise da meditação proposta aos estudantes seguindo o percurso realizado por Descartes em sua obra célebre das Meditações Metafísicas.
Introdução: a Comunidade de Investigação e a Experiência de Pensamento
Na década de 1970 nos Estados Unidos, Mathew Lipman desenvolveu seu programa de Filosofia para Crianças (FpC) cujo objetivo era, entre outros, trazer a história da filosofia e os problemas filosóficos clássicos para dentro das salas de aula das escolas, desde as séries iniciais até as mais avançadas, de maneira não meramente expositiva, como a escola tradicionalmente aborda os conteúdos, mas de modo que as crianças e adolescentes pudessem ter um contato mais vivo com a produção filosófica, que efetivamente estimulasse o raciocínio e o pensamento crítico. Dentre diversos outros elementos (materiais didáticos, cursos de formação para professores etc.), Lipman propôs a transformação da sala de aula tradicional em uma comunidade de investigação: um espaço investigativo, cujo objetivo é um certo refinamento das ideias, dos raciocínios, das explicações pessoais e coletivos (da turma) a partir do diálogo.
Para Lipman, a produção filosófica deveria buscar parâmetros similares aos das ciências da natureza no que diz respeito à autocorreção, à experimentação, à objetividade e, sobretudo, à razoabilidade – algo que dificilmente pode ser feito na maneira meramente transmissiva com que os conteúdos são geralmente ministrados nas escolas. Assim, ele propõe o formato da comunidade de investigação como um meio não só de melhor ensinar filosofia, mas também de melhor ensinar a pensar. Para que esse formato possa cumprir de fato essa tarefa, não se trata de estabelecer com os estudantes um debate ou conversa quaisquer, mas um diálogo que deve estruturar-se a partir de certos pressupostos indispensáveis:
(…) é necessário percebermos que a comunidade de investigação não é algo sem objetivos. É um processo que objetiva obter um produto – a partir de algum tipo de indeterminação ou julgamento, não importando o quanto isso possa parecer parcial ou experimental. Em segundo lugar, o processo possui um sentido de direção; movimenta-se para onde o argumento conduz. Em terceiro, o processo não é meramente uma conversação ou discussão; é dialógico. Isto significa que possui uma estrutura. (…) a investigação possui suas normas de procedimento cuja natureza, na sua maior parte, é lógica. Em quarto lugar, precisamos considerar um pouco mais atentamente como a criatividade e a racionalidade se aplicam à comunidade de investigação. (LIPMAN, 1995, p. 332)
As comunidades de investigação são assim não apenas um exercício reflexivo, mas também um exercício de deslocamento dos sujeitos em torno de elementos mais objetivos capazes de mediar as subjetividades e de estabelecer um solo comum e mais firme para o conhecimento. Para tanto, a condução da professora ou professor é fundamental. A professora deve estar atenta a diversos elementos, tais como: a atenção dos estudantes àquilo que os colegas e eles mesmos falam; a organização das ideias individuais em cada fala e das ideias coletivas ao longo do diálogo (por exemplo, se duas ideias se opõem ou se complementam, se algo surge como um questionamento ou como uma afirmação, quando um elemento novo evocado coloca em xeque as conclusões que se tinha até aquele momento, quando parece estar havendo mais de uma interpretação para uma mesma pergunta, palavra ou ideia etc.); aos momentos mais propícios para fazer interferências, comentários, explicações, perguntas e aos momentos em que o mais adequado é deixar o diálogo fluir entre os próprios estudantes; às outras possibilidades pedagógicas e temáticas que aparecem durante uma investigação; aos aspectos sociais e subjetivos que antecedem, permeiam e que poderão suceder à investigação; dentre outros que podem ser encontrados no projeto de Lipman ou que podem ainda surgir em cada sala de aula.
Veja também:
>> “É possível ensinar pensamento crítico?“, por Rafael Teixeira
>> “No Chão da Escola: Carolina Amaral e a função ética da educação“
Inspirados no projeto de Lipman (mas com certas distinções em relação à totalidade de um programa tal qual o FpC pressupunha) outros projetos e exercícios de filosofia na escola têm se desenvolvido ao longo das últimas décadas em diversos locais do mundo, dentre eles o Brasil. Um exemplo de referência é o projeto de extensão Em Caxias, a Filosofia En-Caixa?, vinculado ao Núcleo de Estudos Filosóficos da Infância (Nefi) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que acontece atualmente na Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha, no bairro de Duque de Caxias. Em sua tese de doutorado, a professora Vanise Gomes, que também constrói o projeto nessa escola, elabora a ideia das experiências de pensamento. Ao revisitar noções como a do diálogo e da conversa abordadas por Lipman e pensando na realidade de uma escola municipal periférica – que é muito distinta da realidade das escolas estado-unidenses com as quais Lipman trabalhou –, Gomes propõe um modelo de reflexão que se poderia dizer menos engessado e mais aberto às diversas possibilidades e potencialidades que a escola e os estudantes já carregam consigo.
Nesta mesma linha, o projeto de extensão Pensadeiros na Escola, vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FE-UFRJ) e do qual também faço parte, também pensa as experiências de pensamento e problemas filosóficos trabalhados com algumas turmas do Ensino Fundamental I da Escola Municipal Alberto Barth, no bairro do Flamengo. É também sob esta perspectiva que, enquanto docente, busco incorporar a ideia das experiências de pensamento nas aulas de filosofia que leciono em outras escolas e segmentos, vindo daí a metodologia aplicada na experiência da meditação guiada sobre as Meditações Cartesianas, que descrevo abaixo.
Experiência de Pensamento: Meditações Metafísicas de Descartes
A experiência aconteceu em na turma de pré-vestibular do colégio Lattos, uma escola privada de classe média com duas unidades localizadas no bairro do Méier, no Rio de Janeiro, que juntas abrangem todos os seguimentos, desde a Educação Infantil até o final do Ensino Médio, além da turma do curso de pré-vestibular. A esta turma é ofertado um tempo semanal de filosofia, cujo objetivo é revisar, aprofundar e ampliar os conteúdos já estudados nos anos de Ensino Médio para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que é, atualmente, a única prova de ingresso em universidades do Rio de Janeiro que cobra conteúdos de filosofia. A turma conta com cerca de 40 estudantes, em uma faixa etária de 18 a 22 anos. As aulas acontecem no auditório da escola, uma sala de aula bem ampla que possui um espaço livre ao fundo.
O racionalismo cartesiano faz parte do conteúdo programático de filosofia da maioria das escolas, livros didáticos e apostilas, além de ser um dos temas recorrentes do Enem. A escolha deste tema para a experiência se deu por dois motivos: o primeiro é que esse conteúdo fazia parte do planejamento bimestral elaborado com base no material didático utilizado pela turma em questão, que apresenta uma abordagem histórica da Filosofia Ocidental, na qual Descartes aparece após a introdução da Filosofia Moderna pelos contratualistas (sendo Rousseau e Hobbes os autores centrais abordados) e em paralelo com o empirismo inglês de John Locke e David Hume. Tudo isso aparece, ainda, como um preâmbulo para a síntese kantiana, que vem logo em seguida.
A segunda motivação tem a ver com o estilo literário das Meditações de Descartes, em que a forma textual está intrinsecamente relacionada ao seu conteúdo. Pedagogicamente, muitas vezes, o modo de elaboração dos autores trabalhados é desconsiderado ou apontado como uma questão de estilo menor, sendo o foco dos professores geralmente apenas os conceitos e argumentos que levam até eles e eventualmente alguma contextualização histórica. Isto pode ocorrer por vários motivos: a quantidade de tempo reduzida da disciplina de filosofia em oposição a um número muito extenso e complexo de conteúdos; um desconhecimento dos professores da própria disciplina, visto que muitos professores de filosofia no Ensino Básico hoje não são formados na área; a influência do material didático utilizado como base, que já traz um recorte que pode estar desconsiderando estes elementos; entre outros. O que importa aqui não é esmiuçar esta questão, mas apenas apontar que ela existe e contrapor a ela a possibilidade de explorar as diferentes estéticas literárias e formas de elaboração da filosofia como ferramentas pedagógicas e de transposição didática para a sala de aula da Educação Básica. Afinal, se o próprio Descartes se propôs a meditar para refletir sobre os problemas que o incomodavam, por que não realizar o mesmo exercício com aqueles que desejam aprender sobre tais problemas?
A experiência tinha por objetivo principal percorrer o caminho da dúvida hiperbólica colocada por Descartes em suas Meditações para chegar à formulação do cogito (“penso, logo existo”). Para isso, os estudantes foram convidados a sentar em roda, no chão, no espaço livre no fundo da sala. Diminuímos as luzes para criar um ambiente mais relaxante e convidativo a uma meditação e os estudantes puderam colocar-se do modo que estivessem mais confortáveis, fosse sentados, deitados, com as pernas esticadas etc. A maioria permaneceu sentada no chão e recostados na parede, um ou outro se deitou e três estudantes ficaram sentados nas carteiras, mas ainda de frente para o meio da roda. Com isso, a experiência também tinha como objetivo secundário uma reconfiguração da sala de aula tradicional que permitisse uma relação também estética (e não meramente conteudista) com o autor e a obra em questão.
Um terceiro objetivo teve a ver ainda com uma questão afetiva de compreensão de questões relacionadas ao estresse, ansiedade, nervosismo, pressão e inúmeros outros fatores que atravessam os jovens que buscam ingressar no Ensino Superior no Brasil. Propor uma ruptura, ainda que breve e não menos pedagógica, na rotina escolar também teve a ver com uma tentativa de trazer para o momento do estudo certa leveza e descontração que pudesse proporcionar uma relação mais positiva com a preparação para o vestibular, com o ambiente escolar, com a disciplina de filosofia e com o conteúdo abordado.
A experiência realizada teve, portanto, como pressupostos metodológicos a comunidade de investigação e as experiências de pensamento conforme apresentadas acima, assim como a escolha do conteúdo se deu com base na sequência proposta pelo material didático adotado pela escola. O convite ao deslocamento na sala de aula já foi por si um fator importante para que a turma se sentisse mais motivada a participar da atividade, mas vale mencionar que esta turma já é, normalmente, bastante engajada nas aulas de filosofia. Mesmo nas aulas mais “tradicionais”, o diálogo com os conteúdos, conceitos filosóficos, autores e entre os alunos, bem como a elaboração das ideias, opiniões, argumentos etc. dos próprios estudantes, é sempre estimulado, de modo que, apesar da reconfiguração em roda, já havia entre eles uma certa habituação à dinâmica dialógica nas aulas. Com isto, elementos importantes da reflexão em comunidade – como garantir a escuta atenta e respeito à vez de cada um de falar, por exemplo – já estavam no “modus operandi” da turma.
Antes de iniciarmos a meditação propriamente dita, fiz uma breve introdução da proposta da atividade. O objetivo dessa introdução era apenas justificar o motivo de estarmos em roda, com luzes baixas etc. Expliquei que Descartes explorou, ao longo de sua produção, diferentes formas de filosofar, dentre elas a meditação. Descartes literalmente havia se posto a meditar (alguns dizem que ele o fazia sem roupas em uma banheira à luz de velas) e relatado os pensamentos que teve ao longo de suas meditações em um texto que chamou Meditações Metafísicas. Tais pensamentos, porém, não foram aleatórios e a meditação não era uma meditação para relaxar. Nossa meditação ali, portanto, também não seria um exercício relaxante, mas um trabalho para pensar sobre um problema muito sério: as coisas que existem.
Antes de prosseguir na descrição da atividade, cabe fazer alguns comentários sobre essa introdução. Muitas vezes, as apresentações dos temas metafísicos parecem um pouco cômicas para quem não tem uma intimidade tão acadêmica ou canônica com a filosofia – como é o caso, geralmente, dos estudantes do ensino médio. O que isso quer dizer? Quer dizer que, quando dizemos que pensar se as coisas realmente existem ou não, como elas existem, como é possível que elas existam etc. são perguntas que, muitas vezes, soam como exageros, como problemas de menor importância ou questões muito abstratas. Por isso mesmo, é importante tratar destas questões subvertendo sua aparência cômica ou abstrata e trazendo para a sala de aula, mesmo que de modo pincelado, as implicações substanciais que determinados pressupostos metafísicos aparentemente simples podem ter na política, na sociedade, na constituição de nossa individualidade, na cultura, ou seja, em nossa vida concebida em sua totalidade. Ao percorrer o caminho das meditações com os estudantes, um dos efeitos esperados era também o de demonstrar que a reflexão e o pensamento mais abstrato não são tão apartados da realidade cotidiana quanto podem parecer e que as perguntas da tradição foram bem mais do que pura verborragia.
Apesar disso, iniciei a meditação pedindo para os estudantes relaxarem um pouco e deixarem as ideias fluírem. Neste momento eles poderiam pensar sobre qualquer coisa, deixar o pensamento ir e vir à vontade. Em seguida, pedi que pensassem em todas as coisas que conheciam, das mais bobas até as mais elaboradas. Poderiam pensar neles mesmos, em seus familiares, nos objetos da sala de aula ou o que fosse. A cada instrução, era dado aos estudantes uma pausa em silêncio para realizarem a reflexão sugerida. Talvez seja relevante mencionar também que, enquanto eles permaneciam de olhos fechados, fui falando e caminhando pelo meio dos estudantes, observando suas reações e fazendo com que minha voz fosse ouvida de diferentes pontos da roda. Surpreendentemente, todos estavam de fato realizando o exercício; apesar de ter visto alguns deles espiando de vez em quando, ninguém permaneceu de olhos abertos, nem mexeu no celular ou conversou durante o processo.
Após pensarem em tudo que conheciam, pedi que pensassem nas coisas sobre as quais tinham certezas, naquilo que consideravam verdade. Poderiam pensar em qualquer certeza, desde algo mais rebuscado, como que 2 + 2 = 4, até algo mais simples, como que a mãe deles os ama. Após um momento para elencarem mentalmente suas verdades, pedi que tentassem pensar em todas as coisas sobre as quais eles em algum momento tiveram bastante certeza, mas eventualmente descobriram que estavam errados. Aquelas coisas em que apostaríamos até dinheiro achando ser de um jeito e, no fim das contas, não eram; objetos que achamos ser de uma cor e depois percebemos que são de outra e por aí vai.
Como o caminho proposto era o mesmo de Descartes, o próximo passo era começar a descartar as “falsas certezas”. Deste modo, pedi que os estudantes “jogassem fora” todos os elementos elencados anteriormente; todas as coisas que um dia lhes pareceram ou se provaram falsas deveriam agora ser tomadas como realmente falsas e, como tal, não poderíamos mais considerar que as conhecíamos. Feito isto, deveriam então pensar em quais certezas sobravam. O que eles sentiam que de fato conheciam? Sobre o que nunca estiveram enganados? Dei um tempo para que mentalizassem essas certezas e então introduzi o argumento cartesiano do sonho: e se tudo o que nos parece real, na verdade, não passasse de um sonho? Lembrei-os de que às vezes temos sonhos sobre estarmos dormindo e pensamos ter acordado, mas, ao acordar realmente, percebemos que ainda dormíamos e sonhávamos. E se nossa vida inteira fosse, em verdade, um sonho do qual ainda não acordamos? Se este fosse o caso, haveria ainda alguma certeza? Considerando que no sonho tudo é possível, que as coisas são mirabolantes, que uma pessoa é e não é ela mesma, que o hoje, o ontem e o amanhã se confundem – será que há algo que ainda poderíamos saber com certeza quando acordássemos deste sonho que não sabíamos estar sonhando?1 Após uma pausa, caso ainda houvesse sobrado alguma(s) certeza(s), pedi que pensassem nela(s).
Por fim, entramos nas hipóteses do gênio maligno e do deus enganador, também trazidas por Descartes2. Agora os estudantes deveriam pensar que, mesmo que não estivessem sonhando, ou que quando acordassem do sonho, existisse um gênio maligno capaz de entrar em nossas mentes e modificar nossas percepções sobre as coisas. Este gênio seria uma espécie de deus, de ser poderoso, que se ocupava de nos enganar a cada coisa que buscávamos conhecer. Para ajudar a introduzir esta hipótese, citei como exemplo novamente a matemática: suponhamos que 1 + 1 na verdade seja igual a 3 e não 2. Esse gênio maligno, porém, faz com que toda vez que eu calcule quanto é 1 + 1, eu encontre 2. Mesmo buscando diferentes formas de calcular, diferentes evidências, juntando distintos objetos, esse gênio sempre faz eu ver 2 em vez de 3. Após o exemplo, pedi que eles expandissem isso para todas as outras coisas, como: quando sentimos um cheiro agradável, mas que na verdade é desagradável (ele só é agradável em nossa mente pela ação do gênio), quando sentimos um gosto que o gênio faz parecer doce, mas na verdade é amargo etc. Além disso, o gênio atuaria em todas as coisas a todo momento, de modo que não seria possível escaparmos a ele. Ainda assim, sobraria alguma certeza? Há algo que poderíamos conhecer de fato, adquirir alguma verdade a respeito?
Após a pausa para refletirem, falei que poderiam abrir os olhos quando estivessem prontos e, ao fazê-lo, deveriam falar qual certeza lhes sobrou (caso houvesse sobrado alguma). Apenas dois estudantes foram capazes de elencar certezas: uma falou que lhe sobraram os sentimentos (ou seja, a certeza do que havia sentido ao longo do processo e de que tinha sentimentos mesmo se estivesse dormindo ou sendo enganada) e o outro disse que para ele era a morte. Os demais disseram que não lhes havia sobrado nada, ou seja, agora duvidavam de tudo, não estavam seguros de mais nada que conheciam.
No texto das Meditações, quando Descartes percorre este mesmo caminho, a certeza a que chega é a elaboração do cogito, a formulação pela qual talvez tenha ficado mais conhecido: o “penso, logo existo”. Isso porque, ao duvidar de tudo, a única coisa da qual não pode duvidar é de que duvida de algo. Após essa breve explicação, meu desafio foi conectar os elementos trazidos pelos estudantes com essa formulação. A resposta que consegui encontrar tanto para a estudante que mencionou a certeza dos sentimentos quanto para aquele que mencionou a da morte foi que ambas as certezas tinham uma relação direta com a percepção de que há um sujeito pensante e portanto existente em algum nível, ainda que somente como coisa pensante (o que é, inclusive, o primeiro modo de conhecimento do Eu cartesiano, cujo corpo material será descoberto apenas posteriormente). Quer dizer: sentir e acabar ou morrer, só são possíveis se previamente exista algo que possa sentir e que venha a deixar de existir. Obviamente, esta explicação foi mais cuidadosamente desenvolvida e, ao longo dela, os elementos propriamente cartesianos foram também sendo apresentados.
Após isso, a discussão se seguiu de modo muito natural. O grande desafio deste tipo de atividade é conseguir relacionar as falas dos estudantes com uma parte mais expositiva do conteúdo, ou seja, com a maneira pela qual o filósofo em questão lidou com os problemas colocados. Vale dizer que esse “relacionar” pode ser tanto por concordância quanto por oposição. Isto que significa que praticamente todo elemento trazido pelos estudantes pode ser validado na discussão, seja porque acidentalmente ele seguiu a mesma linha de raciocínio do conteúdo abordado ou porque se afastou dela de alguma maneira. O papel da professora ou professor que conduz a atividade é justamente delinear esse caminho, fazer essas aproximações ou demarcar estas distâncias, explicitando sempre de que modo um certo argumento, vocabulário, pressuposto etc. se aplica ou não aos conceitos em jogo.
No exercício da meditação, os próprios estudantes levantaram muitas objeções ao racionalismo e ao longo de suas falas os elementos da matemática, do sonho, da percepção, entre outros, reapareceram, tendo sido possível demonstrar de que modo Descartes abordava cada um deles.
Por fim, a questão da dificuldade da percepção nos levou a uma discussão curiosa sobre a universalidade ou relatividade do Eu, que, por sua vez, recaiu no problema ético da relação da Verdade com o Bem. Este movimento foi curioso porque, sem querer (e neste caso foi um movimento de fato não intencionado, pois eu mesma não havia previsto encaminhar a discussão para esse lugar), os próprios estudantes, a seu modo, passaram dos pressupostos racionalistas para os problemas colocados pelo empirismo (que são justamente as correntes de pensamento que aparecem na historia da filosofia como grandes rivais) e depois ainda para as preocupações éticas que seriam mais centralmente retomadas pelo kantismo e que acabaram por demarcar, na nomenclatura canônica, o que é possível compreender como uma espécie de fronteira entre a filosofia moderna e a filosofia contemporânea.
Terminamos a experiência com uma tarefa de casa: refletir sobre a pergunta “o que é o Bem?”. Caso desejassem, os estudantes poderiam trazer algo escrito sobre isso, mas não era necessário, assim como não era necessário que chegassem a nenhuma conclusão mais definitiva. Minha proposta era apenas que tentassem trabalhar um pouco a questão de modo similar ao que havíamos feito durante a aula.
Nas duas aulas seguintes foi possível retomar os elementos da experiência da meditação para introduzir os assuntos que seriam abordados. A aula sobre o empirismo partiu de um diálogo mais direto com o próprio racionalismo, que era algo que eu já havia planejado tendo em vista retomar mais substancialmente os conteúdos propriamente cartesianos pincelados durante a discussão da experiência. Já para a aula sobre Kant, retomei a pergunta sobre o que era o Bem e, após uma exposição sobre o imperativo categórico (um conceito fundamental do kantismo e que geralmente aparece nos vestibulares), retomei as respostas que eles mesmos haviam fornecido (que foram desde coisas como “prazer” ou “algo relativo” até “Flamengo” e “passar na UERJ”) e as analisamos sob o crivo da moral kantiana.
Conclusão: o que uma experiência do pensamento nos ensina?
O que parece ser possível observar neste relato é que o modelo das experiências de pensamento parece muito adequado para lidar com algumas das questões que enfrentamos na sala de aula hoje, como: o desinteresse dos estudantes pelos conteúdos; a dificuldade de abordar certos temas do modo menos superficial possível em disciplinas como a filosofia, que costumam ter pouco tempo de aula; as crescentes dificuldades de manter a concentração das crianças e adolescentes; e por aí vai. Pensando mais propriamente na filosofia, as experiências de pensamento trazem também outras possibilidades de elaboração das questões filosóficas e desenvolvimento do pensamento crítico indo para além da leitura de textos ou exposição de conteúdo sem com isso perder o rigor necessário da investigação ou cair em debates sem fim, que se afastam demais daquilo que será exigido dos estudantes nas provas e vestibulares. Um último elemento que vale ser mencionado é que a experiencia do pensar em comunidade também estimula a colaboração entre os estudantes durante as discussões realizadas pela turma, o que aponta para um redimensionamento do debate no sentido de deixar de ser puro conflito para encontrar também soluções e pontos de convergência. Os exercícios da escuta, da organização das ideias e da argumentação também são questões pedagógicas importantes que, pensadas a partir da comunidade, encontram também um momento para serem enfrentadas.
Referências Bibliográficas
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KOHAN, W. O.; OLARIETA, B. F. (org.). A Escola Pública Aposta no Pensamento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. Coleção Ensino de Filosofia; 4.
KOHAN, W. O. Filosofia para crianças. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2008. 2ª Edição.
LIPMAN, M. A filosofia vai à escola. São Paulo: Summus, 1990. 3ª Edição. Novas buscas em educação; v.39. Tradução: Maria Elice de Brzezinski Prestes e Lucia Maria Silva Kremer. Introdução à Edição Brasileira: SILVA, C. Y.
LIPMAN, M. O pensar na educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. Tradução de Ann Mary Fighiera Perpétuo.
SCRIBANO, E. Guia para leitura das Meditações metafísicas de Descartes. São Paulo: Edições Loyola, 2007. Trad. Silvana Cobucci Leite.
SILVEIRA, R. J. T. Matthew Lipman e a filosofia para crianças: três polêmicas. Campinas, SP: Editora Autores Associados, 2003. Coleção polêmicas do nosso tempo, 83.
Notas