Circo e Filosofia: Ensinando Aristóteles com Malabarismo

“Tornar a filosofia tátil”: eis a meta desta aula que, com acrobacia, malabares e outras artes circenses discutiu a Ética a Nicômaco

Uma aula de filosofia | imagem: Divulgação

texto originalmente publicado pelo Aesthetics for Birds, traduzido com permissão
por Meg Wallace
tradução por Duanne Ribeiro


O circo é ridículo. Ou: a maior parte das pessoas pensa que ele é ridículo. Nós até mesmo expressamos o nosso desdém por grupos desorganizados, mal-administrados, afirmando, depreciativamente, que tais entidades “parecem um circo”. (Nada disso é verdade, claro. A quantidade de organização, disciplina e trabalho duro que é exigida para gerir um circo é de quebrar o queixo.) Mas esta é uma razão pelas quais eu dou o curso “Circo e Filosofia”. Eu quero mostrar aos estudantes um caminho novo à filosofia – por meio da prática de coisas ridículas.

É estranho que filósofos frequentemente ensinem filosofia da arte, filosofia do esporte, filosofia da performance e assim por diante sem que os estudantes participem pelo menos um pouco das atividades ou áreas de expressão em foco, aquilo sobre o que se filosofa. Essa falta de um envolvimento em primeira pessoa é especialmente infeliz quando o tópico em questão envolve de maneira crucial a perspectiva do participante – o pintor, o dançarino, o ator, o trapezista, o palhaço. “Circo e Filosofia” é uma tentativa de explorar essa lacuna teoria-participação. (Outro objetivo é simplesmente dar aos graduandos uma poção de amor à filosofia.)

Eu divido o curso em dois tipos de aulas: dias de atividade física, em que instrutores de circo convidados ensinam habilidades como malabarismo, acrobacias aéreas, acrobalance; e dias de debate, mais tradicionais, nos quais lemos, pensamos sobre e discutimos filosofia. Os estudantes não apenas aprendem sobre o circo, eles aprendem como fazer circo.

Mas por que, especificamente, circo? Certamente a lacuna teoria-participação poderia ser explorada de maneira igualmente simples se colocássemos pincéis nas mãos dos estudantes, ou se os dispuséssemos no palco para encenar Hamlet, ou se ensinássemos a eles tango, balé, corrida ou ioga. Por que circo?

Por um lado, as habilidades que aprendemos nas aulas – malabarismo, acrobacias aéreas, acrobalance – são truques humanos dos mais estúpidos. São só bolas idiotas no ar, uma geringonça besta que gira, ou um triângulo formado de corpos humanos, coisas de crianças do primário. Nada depende dessas atividades. Ninguém se importa se você consegue fazê-las ou não, ou se você consegue fazê-las bem. Assim, diferente de, digamos, pintura, canto ou dança, em relação às quais nós com frequência encontramos a atitude “se você não é bom nisso, não tem motivo para fazer”, há muito pouco ego ou status ligado à prática do circo. É esperado que não prestemos para isso. Os níveis são baixos, as atividades são acessíveis, a participação é fácil.

De outro ângulo, o circo é impressionantemente multifacetado de um ponto de vista pedagógico. Ele pode ser caracterizado por inúmeros pontos de vistas filosoficamente interessantes: como arte, como arte ruim, como performance, como arte performática, como mero espetáculo e emoções baratas, como um esporte que requer capacidade atlética e técnica especializados, como uma área de expressão com uma história complicada e às vezes sombria que envolve questões de injustiça social, direitos trabalhistas, direitos dos animais, identidade corporal e de gênero; de um lado: diversidade e inclusão; de outro: exploração, e assim por diante.

O circo como uma disciplina tem também uma intrigante evolução estética desde a algazarra simplória sob as tendas pontudas vermelhas e brancas do circo tradicional às nuances mais intricadas e provocantes do novo circo e do circo contemporâneo. Essas formas mais recentes de circo podem incluir tanto uma performance do Cirque du Soleil em Las Vegas – altamente produzida, ridiculamente habilidosa –, quanto modestos funambolistas em um café escondido e parcamente iluminado.

Mais recentemente, o circo passou a ser usado como uma forma de exercício recreativo, como uma maneira pela qual se pode melhorar a saúde, ganhar força e flexibilidade, ou como uma abordagem ousada das aulas em grupo nas academias. O circo é também comumente usado para promover justiça social e o desenvolvimento comunitário de populações marginalizadas, no âmbito do circo social.

Que o circo seja todas essas coisas e ainda mais faz com que seja rico de potencial para profundas discussões sobre um gama de tópicos filosóficos em estética, ética, filosofia política e social, identidade pessoal, mente, metafísica, epistemologia, e assim por diante.  Ele é além disso intrinsecamente interdisciplinar, por isso estudantes com interesses e formação fora da filosofia podem facilmente encontrar como se integrar.

No primeiríssimo dia do curso temos aula de malabarismo. Muito poucos (se algum) dos estudantes vêm para o curso já sabendo como fazer malabares. E dá pra ouvir muitos deles resmungando entre eles sobre o quão sem coordenação eles são e sobre como eles nunca serão capazes de fazer isso. Mesmo assim, as bolas são distribuídas e a lição começa.

Nosso instrutor visitante, Jesse Alford, diz a eles para que comecem com uma bola. Todos os alunos jogam (e derrubam) apenas uma bola, Jesse dá alguns conselhos, comentários sobre técnica e erros comuns, e fala sobre as habilidades envolvidas em uma prática aparentemente tão simples. Ao longo da sua apresentação, há um consistente tomp-tomp-tud das bolas caindo no chão, e os estudantes correndo atrás delas conforme rolam pela sala. Aos poucos, eles ficam mais confortáveis com as trapalhadas. Depois de um tempo, Jesse os convida a tentar com duas bolas, com a salvaguarda de que podem sempre voltar a uma só se duas não funcionar para eles. E então, dali a pouco, de duas nós vamos para três. E, de três, quatro. Após 75 minutos de aula, todos os estudantes provaram pelo menos um pouquinho de sucesso, e a maioria deles vai embora pensando que no fim das contas talvez sejam mesmo capazes de fazer malabares. A todos foram dadas as técnicas básicas – e três bolas de malabares – para guardarem consigo. Todos foram encorajados a praticar.

No próximo dia, nós discutimos a Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Exploramos a ideia de que a virtude moral seja mais como aprender a fazer um ofício ou uma forma de arte ou: malabares. Conversamos sobre repetição e hábito, no geral, e os alunos discutem como eles estabelecem hábitos nas suas próprias vidas. Então falamos sobre como essas coisas podem contribuir para a virtude, para a felicidade ou para uma vida boa. Sendo bem sincera, são os assuntos típicos de uma introdução a Aristóteles. Não há nada de particularmente original sobre o conteúdo filosófico em si. Mas faz toda a diferença apresentar esse conteúdo diretamente após uma aula de malabarismo, na qual os alunos literalmente começam a cultivar um hábito e a adquirir uma habilidade física – uma habilidade que é de início incrivelmente estranha e contra-intuitiva para quase todos os presentes, e, apesar disso, todos podem ver, 75 minutos de tentar praticá-la de fato trazem aperfeiçoamento.

Essa é uma das principais metas desse modo de ensinar filosofia: tornar a filosofia tátil. Muitos estudantes inscritos nesse curso me disseram que, por considerar que a sua forma de aprender é sinestésica, eles sentem dificuldade nos tradicionais cursos “puramente teóricos” como a filosofia, e em geral os evitam a todo custo. Ensinar filosofia através do circo em primeira pessoa não apenas faz com que o assunto seja atraente para alunos que de poderiam de em outra situação se afastar da filosofia, mas também colabora para que absorvam o conteúdo de forma diferente.

Ensinar Aristóteles com malabares é apenas um exemplo de como nós incorporamos a filosofia por meio de uma atividade. Outro tópico é mais diretamente ligado ao circo como uma arte performática. Em Acts: Theather, Philosophy, and the Performing Self [Teatro, Filosofia, e o Eu Performático, em tradução livre], Tzachi Zamir propõe uma teoria do que é ser uma pessoa que permite que participantes de uma prática teatral ampliem e aperfeiçoem sua consciência de si. De acordo com Zamir, “uma pessoa é um feixe de possibilidades, das quais ela atualiza apenas uma pequena porção”. O benefício individual da atuação é que ela alarga o escopo do conjunto usual de possibilidades de alguém, potencialmente levando aqueles que a praticam a uma maior faixa de oportunidades ou “opções de vida” no mundo lá fora. Zamir chama isso de “amplificação existencial”. Atuar (não meramente observar gente atuando) pode ajudar com que o sujeito entenda melhor quem ele de fato é, tendo como pano de fundo um amplificado senso do que é possível para ele.

Nós discutimos essas ideias e materiais filosóficos sobre possibilidade e necessidade, agregadas a aulas sobre atuação, presença de palco e desenvolvimento de personagem. A maioria dos estudantes nunca havia atuado nem tinha muita experiência no geral com as artes performáticas. Mesmo assim, com a orientação de um instrutor convidado, eles vão lá e atuam ou improvisam, ao passo em que refletem sobre identidade pessoal, potenciais e possibilidade. Depois de performarem uma cena, nós conversamos sobre quem eles pensam que são (na vida cotidiana) em contraste com quem eles pensam que poderiam ser, tendo em vista o personagem que eles acabaram de interpretar. Certamente, essas mesmas ideias poderiam ser ensinadas em uma sala de aula tradicional, onde os argumentos e conclusões filosóficas podem ser introduzidos e analisados a priori. Mas a abordagem baseada em atividade permite que os alunos se apropriem do material de maneira diferente, vendo por si mesmos como os conceitos se aplicam diretamente.

Considere o aparato usado no circo: trapézio, tecidos, corda lisa, canhão humano, roda da morte etc. No circo tradicional, o aparato é apenas o equipamento que o performer procura dominar. É um objeto concreto e inerte ou uma ferramenta controlada por ele para que possa mostrar sua maestria – para exibir seu caráter atlético, sua habilidade e sua destreza diante de um suporte passivo. O circo contemporâneo, em contrapartida, contesta essas premissas. Katie Lavers, Louis Patrick Leroux e John Burtt, em Contemporary Circus [Circo Contemporâneo], explicam que apresentações inovadoras que usam um “instrumentos feitos de materiais como gelo e argila, que são mutáveis e se transformam durante a performance, ou suportes virtuais que fazem com que o performer e o público interajam com forças invisíveis, tais quais raios infravermelhos, estão radicalmente ampliando o sentido do que o aparato do circo pode ser”. Além de questionar a substância e a regularidade do aparato, o circo contemporâneo também examina a relação entre o artista e o aparato – chegando até a propor que a identidade do artista circense inclui o próprio aparato. Isso sugere um paralelo intrigante entre o desenvolvimento de ideias sobre a relação artista-aparato no circo e o problema mente-corpo na filosofia. Com efeito, em Contemporary Circus há uma referência explícita ao artigo de Andy Clark e David Chalmers “The Extended Mind” [“A Mente Extendida”] e os seus autores se apoiam em teorias filosóficas da mente extendida para explicar os desvios contemporâneos em relação às visões tradicionais sobre artistas circenses e seus instrumentos. Naturalmente, portanto, isso leva a nossa a aula a pesadas discussões sobre o problema mente-corpo e a consciência, dando aos estudantes uma inesperada porta de entrada para debates clássicos de filosofia da mente, ao mesmo tempo em que lhes permite explorar a relação artista-aparato por si mesmos, girando por aí com um bambolê.

Prática de acrobalance | imagem: Divulgação

Como deve estar claro, um componente crucial desse curso é a experiência em primeira pessoa que os estudantes têm ao fazer essas atividades que são novas para eles (e, com frequência, aterrorizantes). Na medida em que o circo se torna mais acessível – ao passo em que mais e mais academias e estúdios fitness oferecem a todos a chance de escalar os tecidos ou montar em um aro, e em que companhias de trapézio voador recreacional disponibilizam aulas de voo para qualquer alma audaciosa que as queira – mais pessoas experimentam em primeira mão como é fazer circo, em vez de meramente dar uma olhada. E, de todos os pontos de vista, isso é fantástico.

Em The Ordinary Acrobat [O Acrobata Comum], de Duncan Wall, Jonathan Conant, um dos fundadores da Escola de Trapézio de Nova York, descreve o trapézio voador como “uma máquina para ajudar as pessoas a reavaliar aquilo de que são capazes”. Ele continua: “Antes de um voo, invariavelmente, as pessoas estão desconfortáveis. Estão chateadas, estão assustadas, estão tristes. Tem medo mesmo de se machucarem”. Elas pensam que  o trapézio é “mágico. É inalcançável. É difícil demais. Está completamente fora do campo de possibilidade na mente da maioria das pessoas”. Apesar disso, depois de voar, “há uma evolução, uma aceitação do que é possível. O trapézio tem uma imagem bem solidificada. E aí alguém diz: ‘Você pode fazer isso também’. Isso muda completamente o campo do possível”. Conant continua: “Costuma-se dizer que o trapézio é uma metáfora da superação dos nossos medos. Mas isso é equivocado. Uma metáfora é apenas um símbolo. O trapézio funciona de fato”. A literatura do circo está cheia de depoimentos desse tipo, em especial relaciondadas ao trapézio voador. Frequentemente se fala de grandes mudanças de perspectiva, de ver o mundo diferente, de sentir a vida renovada e mesmo de: tornar-se alguém completamente novo.

A filósofa Laurie Ann Paul poderia caracterizar esses eventos que modificam perspectivas como experiências transformadoras – experiências que, nos âmbitos epistêmico e da vida pessoal nos transformam dramaticamente. De acordo com Paul, dada a completa novidade de tais experiências e as mudanças internas que ocorrem em decorrência delas, podem nos faltar os recursos epistêmicos necessários para tomar uma decisão totalmente racional sobre se devemos nos submeter a elas ou não.

Infelizmente, o orçamento (atual) do curso não dá conta de colocar os estudantes para silvar no ar em um trapézio voador. Mas, para muitos, se dependurar vários metros acima do solo para fazer dança trapézica ou escalar uma corda ou ficar de ponta-cabeça preso a um tecido ou girar com um disco de metal podem ser tão intimidantes, tão assustadores e tão emocionantes  quanto o grande arrebatamento de um voo de trapézio. Consequentemente, esse curso não apenas oferece aos estudantes uma oportunidade de aprender sobre experiências transformadoras, ele tem o potencial de prover uma. (Embora, se Paul está certa, nenhum deles possa racionalmente escolher se submeter a isso.)

Para além da ampla variedade de tópicos que um curso tal qual Circo e Filosofia pode abranger (do qual fui capaz de cobrir em um semestre apenas um pequena fração), deixe-me tratar agora de dois outros benefícios de ensinar filosofia desse modo.

Eu dei esse curso em pessoa apenas duas vezes (e uma vez remotamente no segundo semestre de 2020). Em ambas a atmosfera da sala de aula era diferente daquela das minhas aulas tradicionais de filosofia. Não quero dizer que, digamos, no meu curso de lógica simbólica avançada, os estudantes não têm confiança uns nos outros ou não são respeitosos entre si. Eles tem e eles são. Mas o nível de interação e confiança necessário para fazer estudantes erguerem fisicamente os outros acima das próprias cabeças vai além de meramente respeitar o ponto de vista de um companheiro de classe. Ademais, as discussões filosóficas após sessões de acrobalance têm um tom marcadamente distinto daquele das aulas de filosofia tradicionais. Os alunos parecem ouvir uns aos outros mais sinceramente e interpretar pontos de vista conflitantes de forma mais caritativa.

Eu suponho que isso era de se esperar. Se, durante uma discussão filosófica, você pensa, “ei, aquela pessoa ali literalmente me ergueu do chão no outro dia e me deixou suspenso no ar em segurança”, você provavelmente estará inclinado a ouvir com um pouco mais de cortesia quando a pessoa em questão compartilha seus pensamentos sobre a vida, o universo e o nosso lugar nele. Confiar fisicamente em (e receber uma confiança do mesmo tipo de) colegas de classe facilmente se traduz em ser mais intelectualmente confiante em relação a ideias novas e diferentes. Isso cria um ambiente de cooperação e respeito na sala de aula. (Incidentalmente, esse resultado está provavelmente conectado com o impressionante sucesso do circo social na criação de redes de suporte comunitário e na promoção de autoconfiança, independência, adaptabilidade entre os jovens ou outros grupos carentes.)

Outra diferença entre esse curso e as aulas de filosofia tradicionais é que ele atrai uma faixa notavelmente mais ampla de estudantes do que minhas disciplinas usuais. Isso não será surpreendente para aqueles que estão familiarizados com a cultura circense. O circo tem a reputação e um histórico de ser um lugar acolhedor para uma população incrivelmente diversa. Pessoas de todos os tipos, identidades, faixas etárias, histórias de vida, formas e tamanhos, talentos e crenças são abraçados e celebrados no circo. A impressionante variedade de ações e atividades que são (e foram) constitutivas do circo ajudaram a construir a mais inclusiva comunidade de que se tem notícia.

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Meg Wallace é professora da Universidade de Kentucky, especializada em metafísica e ontologia. É autora do livro Parts and Wholes – Elements in Metaphysics.

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