Estudantes Surdos nas Escolas: Contextos Atuais e Questões Abertas

A educação para todos não foi estabelecida: está sendo construída

Pintura feita em uma escola americana | imagem: Seniwati

Estudantes surdos estão cada vez mais presentes nas escolas regulares de ensino básico. Das escolas especiais, esses estudantes passaram para as salas especiais dentro de escolas regulares e, hoje, eles ocupam os mesmos bancos que seus colegas ouvintes. As discussões acadêmicas que envolvem a educação de surdos no Brasil e no exterior são assunto longe de ser esgotado. Pelo contrário, diferentes visões se reapresentam em acordo ou em conflito; isso se evidencia, por exemplo, pela atual presença tanto de instituições voltadas somente para a educação de surdos em uma perspectiva bilíngue quanto pelas escolas regulares, sobretudo as públicas, que constroem em seu cotidiano a inclusão, tão desejada quanto também discutida.

O estudante surdo traz consigo uma perspectiva de mudança nos cotidianos escolares: o choque de gestores e docentes que se veem sem instrumental para o receber e promover a sua escolarização. “Qual é a sua língua?”; “Como se comporta?”; “Quais atividades devo passar?”; “Como entendê-lo?” são algumas perguntas que surgem com a sua chegada. Esses são discursos políticos presentes na escola, práticas discursivas e não-discursivas sobre a surdez que se constroem e se distribuem na sociedade (SKLIAR, 1999a, p. 22).

Faz-se necessário à comunidade escolar compreender um ponto essencial evidenciado por anos de luta da comunidade surda: antes da surdez, há a pessoa. Os surdos configuraram, por meio de sua luta política, vozes dissonantes dos lugares-comuns que consolidam, ano após ano, novas configurações discursivas sobre a surdez. Dessa forma, os surdos nos mostram que a surdez faz parte da vida do indivíduo, porém não o reduz a um diagnóstico e não o torna incompleto. Infelizmente, ainda sob uma perspectiva biomédica do corpo deficiente que permeia o âmbito escolar, a surdez ainda se apresenta antes da pessoa aos olhos de profissionais da educação que o recebem em escola regular.

Nesse ínterim, está o estudante surdo: ele pode ser filho de surdos ou de ouvintes (o mais comum); ter desenvolvido a sua língua natural, a Libras, na primeira infância ou somente quando ingressou na escola; ter tido adultos surdos como modelo para o desenvolvimento de sua língua ou ter se comunicado por meio de gestos e sinais caseiros com a família; pode ter sido alfabetizado na idade correta ou somente na adolescência ou vida adulta; pode fazer parte de uma comunidade surda que faça uso cotidiano e natural da língua de sinais ou pode conviver sobretudo com ouvintes, usando sua primeira língua apenas em atendimentos especializados. Ele pode ser oralizado ou usar somente a língua de sinais. Pode ser bom em exatas ou em humanas; comunicativo ou reservado; gostar de artes plásticas ou teatro, doces ou salgados. Um ser completo, afinal.

De acordo com a Constituição Federal de 1988, a escola é direito de todos. Essa premissa oferece base à inclusão de pessoas com deficiência no âmbito escolar. A efetivação de políticas públicas educacionais está ligada à implementação de leis que garantam a igualdade e o direito à educação para todos, demandando prestações positivas por parte do estado.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 206, enfatiza que todo estudante deve ter “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” e “atendimento educacional especializado”, tal como o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei nº 8.069/90, Capítulo IV artigo 53) destaca que a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.

O artigo 58 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96 assegura o direito à educação, exigindo adequação de currículos, métodos e recursos para atender a cada indivíduo em sua especificidade e diferença. Manifesta, assim, o seu compromisso com uma política inclusiva.

Acerca dos documentos internacionais, marcos históricos no que concerne ao estabelecimento de paradigmas da garantia do direito à educação para todos, é relevante citarmos algumas declarações redigidas na década de 1990 e que até o presente são modelares no entendimento da escolarização da pessoa surda. Na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, na Tailândia, em que foi proclamada a Declaração de Jomtien, os países reforçaram a educação como um direito fundamental. Na Declaração de Salamanca (1994), alguns princípios foram escritos acerca do direito à educação para todos, como o de garantia de acesso à escola regular. Em Salamanca também observamos que as escolas inclusivas configuram-se como espaços de luta contra atitudes discriminatórias. Na Convenção da Guatemala (1999), de cujo documento o Brasil é signatário, afirma-se que devem ser possibilitadas situações que garantam a acessibilidade de qualquer pessoa em diferentes contextos.

É importante salientar que os documentos internacionais citados são recentes, remontam a menos de 30 anos de história. Sendo assim, é possível compreender como ainda estamos em momento de luta pela educação para todos, e não de seu total estabelecimento.

Voltando ao âmbito nacional, especificamente sobre as leis voltadas à comunidade surda, o reconhecimento de sua língua e sua escolarização, é essencial citarmos a lei n° 10.436, de 24 de abril de 2002, também conhecida como “Lei da Libras”, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais, e o respectivo decreto n° 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que a regulamenta.

A lei nº 10.436/02, em seu artigo primeiro, estabelece que a Língua Brasileira de Sinais é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão. Em seu artigo quarto, lê-se que o sistema educacional em âmbito federal e os sistemas educacionais estaduais, municipais e do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos de formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior, do Ensino da Língua Brasileira de Sinais como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

O decreto n° 5.626/05, em seu capítulo segundo, determina a inserção da Libras como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do Magistério e nos cursos de Fonoaudiologia. No capítulo terceiro, artigo quarto, estabelece-se que a formação de docentes e do instrutor para o ensino de Libras em nível médio e superior deve ser realizada pelo profissional de nível superior. No artigo quinto, admite-se a formação mínima em nível médio na modalidade normal (Magistério) para docentes que atuam no ensino de Libras na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

A lei n° 10.436/02 é um marco no reconhecimento da Libras com status de língua (e não de “mímica” ou “gestos” como já se utilizou informalmente durante anos), de caráter visual-gestual, com estrutura gramatical própria, grupos de falantes que configuram dialetos regionais, gírias e demais características relacionadas a uma língua natural. Assim, evidencia-se a necessidade de uma rede de profissionais formados e capacitados não só para a difusão da língua, como também para o atendimento adequado da comunidade surda em sua língua natural. É com esse paradigma que se trabalha, atualmente, na educação.

No ano de 2015 é promulgada a lei nº 13.146/15, a Lei Brasileira da Inclusão (LBI), que entrou em vigor em primeiro de janeiro de 2016. Em seu artigo 28, incumbe-se ao poder público a garantia de condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem à criança com deficiência e a implementação de projeto pedagógico que institucionalize o Atendimento Educacional Especializado (AEE), garantindo o seu pleno acesso ao currículo em condições de igualdade.

Na esfera da Prefeitura Municipal de São Paulo, podemos afirmar que já existe um contundente histórico de leis, decretos e portarias que objetivam promover a inclusão das pessoas surdas na escola regular, sobretudo após o ano 2000. Citemos a mais recente portaria municipal, a de nº 8.764/16, que institui, no âmbito da Secretaria Municipal de Educação, a Política Paulistana de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, documento recente que articula o Atendimento Educacional Especializado, com garantias de atendimento específico aos estudantes surdos em escolas de caráter inclusivo, sejam elas escolas pólo ou não.

A partir desta revisão de literatura, em que observamos contundentes esforços no sentido do reconhecimento, do atendimento adequado e da ampla escolarização da pessoa surda, questionamos: quais são as “barreiras”, então? O estudante surdo permanece silenciado, como foi durante muitos anos? Nossa hipótese é a de que os profissionais e comunidade das escolas que atendem estudantes surdos ainda não estão plenamente preparados para recebê-los, isso se dá em razão tanto do desconhecimento da cultura surda e, sobretudo, do estudante surdo (enquanto pessoa, não enquanto pessoa com deficiência) e do entendimento do corpo do outro como um corpo deficiente.

De acordo com Carlos Skliar, é preciso compreender a deficiência para além de simplesmente um fato biológico, mas sim problematizá-la epistemologicamente, invertendo aquilo que é constituído como norma:

[…] o objeto desse discurso [da deficiência] não é a pessoa que está em uma cadeira de rodas ou o que usa um aparelho auditivo ou o que não aprende segundo o ritmo e a forma como a norma espera, senão os processos sociais, históricos, econômicos e culturais que regulam e controlam a forma acerca de como são pensados e inventados os corpos e as mentes dos outros. […] A deficiência não é uma questão biológica e sim uma retórica social, histórica e cultural. A deficiência não é um problema dos deficientes ou de suas famílias ou dos especialistas. A deficiência está relacionada com a própria idéia da normalidade e com sua historicidade. (SKLIAR, 1999b, p. 18).

O campo da educação é arena de disputas (SAMPAIO e GALIÁN, 2013, p. 170) e não há unanimidade sobre as políticas de educação inclusiva na área da surdez. Ao contrário, há sempre tensões que envolvem o currículo oficial e as práticas realizadas nos cotidianos escolares. Sobre isso, a professora Ronice Quadros, com vasta experiência no trabalho com a comunidade surda, problematiza em um de seus estudos a política de inclusão no país. De acordo com a autora, “este discurso e esta prática não são contestados por parte do governo, no entanto, percebem-se vozes silenciadas de alunos e educadores evocando e/ou denunciando as contradições observadas nas políticas integracionistas/inclusivistas” (QUADROS, 2003, p. 83).

Retomamos a figura do estudante surdo silenciado nos cotidianos escolares, apesar da sua garantia à educação. Sendo assim,

[introduzem-se] aqui as reflexões de Paulo Freire sobre a “cultura do silêncio” e as discussões sobre minoria social, política, linguística e cultural: ser o “menor”, sentir-se “menor”. A título de uma educação para todos, silenciam-se vozes e impõem-se relações de minoria-maioria representadas e validadas pelo processo educacional, fruto da cultura do oprimido. Sofrer no silêncio e sentir-se “menor” são formas de consolidação de uma política de exclusão que reproduz a ideia de “um mundo homogêneo”, globalizado (QUADROS, 2003, p. 84).

A professora Cristina Lacerda corrobora as preocupações de Quadros ao verificar que a inclusão se apresenta como uma boa proposta para a comunidade no sentido da abertura ao contato com as diferenças, porém ainda não se configura totalmente adequada para os estudantes que, de forma efetiva, necessitam de recursos humanos e físicos que muitas vezes não têm sido propiciados (LACERDA, 2007, p. 260).

Observamos que mesmo sob a garantia de leis que asseguram o direito de todos à educação, é possível utilizar a inclusão como meio de produzir e reproduzir preconceitos, discriminação e exclusão. Ainda temos diante de nós o desafio de encontrar soluções que atendam à questão do acesso e da permanência dos estudantes surdos na escola. As políticas públicas e documentos em análise auxiliam para que se construam estratégias educacionais que correspondam às efetivas demandas dos estudantes surdos nos cotidianos escolares.

Hoje, com a expansão do acesso à escola, o quanto do currículo oficial proposto pelos documentos fundamenta as práticas? Procuramos responder que existem articulações que estão sendo construídas com benefício ao estudante surdo, porém, a escola é capaz de confirmar e reproduzir desigualdades por meio do currículo. O trabalho da escola sustenta-se no ensino e na aprendizagem de saberes sistematizados na cultura escrita e ao mesmo tempo moldam-se comportamentos e atitudes socialmente aceitos. É esse paradigma que problematizamos aqui, dando ênfase às singularidades dos estudantes surdos para que eles acompanhem plenamente o currículo da sala regular, acessando conhecimentos científicos e culturais.

Referências

LACERDA, C.B.F. “O que dizem/sentem alunos participantes de uma experiência de inclusão escolar com aluno surdo”. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 13, n. 2, p. 257-280, mai./ago., 2007.

QUADROS, R. “Situando as diferenças implicadas na educação de surdos: inclusão/exclusão”. In: Ponto de Vista, Florianópolis, n.º 5, p. 81-111, 2003.

SAMPAIO, M. M. F., GALIAN, C. V. A. “Currículo na escola: uma questão complexa”. In: MARIN, A. J. (Org.). Escolas, organizações e ensino. Araraquara: Junqueira Martins Editores, 2013.

SKLIAR, C. B. “A escola para surdos e suas metas: repensando o currículo numa perspectiva bilíngue e multicultural”. In: Cadernos de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Faculdade de Educação. n.º 12, p. 21-34, jan./jul. 1999a.

SKLIAR, C. B. A invenção e a exclusão da alteridade “deficiente” a partir dos significados da normalidade. In: Educação & Realidade, v. 24, p. 15-33, 1999b.

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