Espiando a Semana de 1922 pela correspondência alheia

Um olhar sobre as cartas de Mário de Andrade

Considerando o tamanho do Brasil é natural se questionar a importância e relevância em nível nacional dada a um evento cultural que aconteceu em uma cidade específica. Foi assim no ano de 2022, o ano do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 – acontecimento que é considerado até os dias de hoje como um grande marco na história e na cultura do Brasil e ocorreu em São Paulo. Ao longo desse ano foi possível observar muito mais criticas do que celebrações ao redor da efeméride.

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Muito se questionou e criticou uma possível tomada paulista do movimento, se colocou em discussão a origem do modernismo brasileiro, questionando-se não só onde o movimento teria começado mas também onde se praticou esse tal modernismo que em muitos momentos foi denominado como “modernismo paulista”. O fato é que o modernismo como movimento artístico e literário foi um movimento brasileiro, se fez e se praticou modernismo por todo o Brasil, Mário e Oswald foram modernistas na mesma medida em que Bandeira, Drummond, Câmara Cascudo, Augusto Meyer, Vicente do Rego Monteiro e tantos outros nas mais diversas áreas e em todas as regiões do país. Para entender o que foi o movimento e talvez responder a esses questionamentos é necessário voltar o olhar para as obras produzidas no período.

O gênero carta pode ser encarado como retrato, testemunho e memória de uma época. Desse modo, recorrer às cartas e não só às obras literárias produzidas por escritores e intelectuais nesse período é mais uma forma de olhar para a semana e para o movimento modernista, tentando entender o desenvolvimento desse evento tão importante da nossa cultura.

Mário de Andrade (1893-1945), um dos principais nomes da nossa literatura e figura central no modernismo brasileiro, além de vasta produção na ficção e nos campos da música e do folclore também foi um grande missivista. Mário não deixava de responder a nenhuma carta que recebia e sempre encontrava uma maneira de fazer as devolutivas de maneira atenta e generosa. Diz a lenda que o costume, depois convertido em compromisso, começou após uma decepção vivida pelo poeta paulistano, ainda na juventude. Ao enviar um conjunto de alguns de seus primeiros poemas a um poeta parnasiano não obteve nenhuma resposta. A partir daí, Mário de Andrade jamais deixou de responder uma carta sequer. Sendo a lenda verdadeira ou não, fato é que o autor de Pauliceia desvairada trocou muitas cartas ao longo de sua vida. Tanto é que, algum tempo depois da morte de Mário de Andrade, Antonio Candido escreveu: “A correspondência de Mário de Andrade encherá volumes e será porventura o maior monumento do gênero, em língua portuguesa: terá devotos fervorosos e apenas ela permitirá uma vista completa da sua obra e do seu espírito”.

Mário se correspondeu com seus pares e com centenas de jovens desconhecidos de todo o Brasil que almejavam a carreira de escritor. A rede afetiva e de sociabilidade estabelecida e construída por meio do diálogo epistolar não serviu de farol e referência apenas para quem buscava essa conexão com o modernista, mas esse sistema foi essencial para que Mário de Andrade seguisse refletindo sobre o Brasil e observando o que se passava fora de São Paulo. Não é a toa que muitos desses diálogos começaram a partir das viagens feitas por Mário ao Norte e ao Nordeste do país: as viagens foram o inicio de diálogos que, por meio das cartas, se estenderam até o final da vida do escritor.

O gênero carta é marcado pelo signo da ausência: para uma carta existir quase sempre é necessário que a distância física esteja presente, olhar para as cartas dessa forma é entender esse gênero como uma maneira de se fazer presente apesar da ausência. Dessa maneira, pode-se dizer que foi por meio da ausência e da distância que Mário de Andrade se valeu das cartas para estabelecer e consolidar relações intelectuais que permitiram e viabilizaram tanto que o modernista paulista desempenhasse o papel de professor quanto se colocasse no lugar que escolheu ocupar desde sempre, o lugar de aprendiz. Por meio do intercâmbio epistolar, Mário de Andrade observou e acompanhou o modernismo que se praticou fora de São Paulo e pode colocar em pratica os três princípios fundamentais do modernismo:

1.º o direito à pesquisa estética;

2.º – a atualização da inteligência artística brasileira;

3.º – a estabilização de uma consciência criadora nacional.

Em O empalhador de passarinho (1944) Mário de Andrade define:

Eu sempre afirmo que a literatura brasileira só principiou escrevendo realmente cartas, com o movimento modernista. Antes, com alguma rara exceção, os escritores brasileiros só faziam ‘estilo epistolar’, oh primores de estilo! Mas cartas com assunto, falando mal dos outros, xingando, contando coisas, dizendo palavrões, discutindo problemas estéticos e sociais, cartas de pijama, onde as vidas se vivem, sem mandar respeitos à exma. esposa do próximo nem descrever crepúsculos, sem dançar minuetos sobre eleições acadêmicas e doenças do fígado: só mesmo com o modernismo se tornaram uma forma espiritual de vida em nossa literatura.

Tanto Mário de Andrade como Antonio Candido acertaram em suas leituras sobre o papel das cartas produzidas pelos intelectuais brasileiros no período que é denominado como modernismo. As cartas de Mário de Andrade mostram um projeto de permanência e fornecem uma chave – mas não a única – de leitura tanto para a sua obra como para a semana de arte moderna de 1922.

Voltar os olhares para a produção literária e epistolar de Mário de Andrade e dos outros modernistas que participaram de alguma maneira da Semana de Arte Moderna de 1922 é a melhor forma de analisar e construir uma visão sobre este evento. É apenas se voltando para as obras que isso se faz possível. Cem anos depois é esperado que criticas e questionamentos apareçam, mas isso não deve apagar a importância do papel desempenhado por esses artistas; algo aconteceu nessa época e ficou, o que aconteceu foi uma transformação na maneira de olhar para a arte, de alguma forma o que foi feito voltou os olhares tanto dos artistas como do público para lugares que não estavam sendo olhados até então. Isso fica claro ao olhar para a trajetória de Mário de Andrade e o desenvolvimento de sua obra ao longo dos anos.

A viagem ao Nordeste, ponto importante na biografia do autor e na historiografia modernista, ganhou importância para Mário de Andrade na medida em que o escritor paulista percebeu que não seria possível apreender a identidade brasileira apenas fazendo leituras em seu quarto na Rua Lopes Chaves, precisaria pisar em outros solos, também brasileiros, mas fisicamente distantes dele até então, e se colocar na posição de aluno, ou melhor, na posição de aprendiz. A partida de São Paulo em direção ao nordeste do país, marcou o nascimento do turista aprendiz. Desse modo, é possível entender o modernismo como esse ponto da história da nossa cultura, o momento em que saímos das capitais do Sudeste e passamos a olhar o Brasil em sua completude e a partir disso passamos a aprender novas formas de fazer arte.

A seguir algumas obras para descobrir o modernismo por meio das cartas de Mário de Andrade:

Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade, de Marcos Antonio de Moraes. (Edusp, 2007)

O livro traz um panorama geral da correspondência de Mário de Andrade com foco na dimensão pedagógica de seu diálogo epistolar.

Correspondência: Manuel Bandeira & Mário de Andrade (Edusp, 2001)

O livro traz a extensa correspondência completa dos dois escritores e amigos. Nesse conjunto de cartas é possível encontrar comentários e a leitura de Mário a respeito do movimento modernista ao longo dos anos.

Autor

  • Formada em Letras, desenvolve pesquisa de mestrado no programa de Filosofias, Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), dedicando-se ao estudo da obra e da correspondência de Mário de Andrade. Também atua como editora de materiais didáticos de literatura.

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