Música e Sociedade no Período Joanino

“O que importa aqui é perceber como as atividades musicais, aquelas que vieram e aquelas que já existiam por esses trópicos, desenvolveram-se, amalgamando-se, articulando-se ou criando outra”

I

De 1808 a 1821, o Rio de Janeiro foi o único centro urbano do Novo Mundo a conviver com práticas de corte e seus protagonistas, já que antes disso nunca uma família real havia colocado os pés em suas colônias. Para recuperar o que foi esse tempo e, principalmente, para refazer os caminhos da música no Brasil na época do príncipe regente d. João (1767-1826), por meio da história da formação do gosto musical brasileiro e de seu entorno, foi que o historiador Maurício Monteiro escreveu A Construção do Gosto – música e sociedade na corte do Rio de Janeiro 1808-1821, originalmente sua tese de doutoramento na Universidade de São Paulo, que acaba de ser lançada pela Ateliê Editorial, de Cotia-SP.

Professor da Universidade Anhembi-Morumbi, de São Paulo, e do curso de pós-graduação em Cultura e Arte Barroca da Universidade Federal de Ouro Preto-MG, Monteiro, em seu trabalho, expõe o que foi o encontro da sofisticada música trazida pela corte portuguesa, ou seja, o classicismo de vanguarda de Mozart (1756-1791) e Joseph Haydn (1732-1809), por exemplo, e os novos gêneros musicais como música de concerto e óperas, com as já existentes no Brasil colônia, isto é, o rico barroco mineiro e os ritmos africanos. “O que importa aqui é perceber como as atividades musicais, aquelas que vieram e aquelas que já existiam por esses trópicos, desenvolveram-se, amalgamando-se, articulando-se ou criando outra”, como observa o autor.

Para tanto, Monteiro constatou a existência de uma trindade de músicos da corte joanina que se tornou o sustentáculo da espiritualidade e do divertimento social, da moral e dos costumes cortesãos, das necessidades e das possibilidades do gosto no Brasil. “Um era diferente do outro, mas viveram num sistema de trocas culturais”, diz Monteiro.

Marco Antônio Portugal (1762-1830) foi o representante do estilo italiano, embora tivesse nascido português. Já Sigismund Neukomm (1778-1758), aluno de Haydn, foi o classicismo vienense, embora tivesse vivido muito tempo na França. E o padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), mulato, foi a única possibilidade e o possível resultado tropical, embora nunca tivesse saído do Rio de Janeiro. “Em termos gerais”, diz o autor, “foram os três compositores de maior popularidade da sociedade carioca, foram os que mais prestígio tiveram junto ao príncipe e à família real”.

II

Até a chegada da família real, diz o autor, predominaria no Rio de Janeiro e no Brasil a ideia de que a atividade musical era uma tarefa mecânica, indigna de um homem branco. E que, portanto, não se tinha o músico como artista, mas como artesão, ainda que muito habilidoso. Com a chegada da corte, segundo Monteiro, esse pensamento ter-se-ia alterado, a partir do momento em que regras de “bem-viver” ou cartilhas de bom-tom começaram a proliferar, incluindo a música, que passou a ser vista sob a ótica da etiqueta e do gosto.

Mas isto não é bem assim. Não é certo que a música fosse atividade só de negros e mulatos. Essa é uma bobagem repetida por muitos historiadores e Monteiro a deve ter lido num desses trabalhos. Se tivesse lido O Rio de Janeiro setecentista (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004), do arquiteto Nireu Cavalcanti, que não consta da bibliografia do seu livro, teria percebido que o mestre-capela Antônio Nunes de Siqueira, membro da Academia dos Seletos e da Academia Real da História Portuguesa, que depois entrou no sacerdócio, era branco, músico dos bons e figura importante na sociedade carioca (p.182). Aliás, da página 179 a 184 de seu livro, Cavalcanti relaciona vários músicos brancos (alguns seriam amadores porque não precisavam da música para sobreviver) que se apresentavam no Rio de Janeiro antes da chegada da família real.

Segundo Cavalcanti, era músico (amador) também o médico Francisco Correa Leal bem como seus filhos. Formaram eles um dos grupos que tocaram quando da chegada de dom João. A verdade é que havia músicos brancos, pretos e mulatos, mas, como foi o padre mulato José Maurício quem mais se destacou, historiadores apressados concluíram que era depreciativo ser músico no Rio de Janeiro colonial. Não era.

É claro que a chegada da corte fez crescer o movimento musical no Rio de Janeiro. Até cantores castrados (castratti) foram trazidos da Itália para interpretar árias e obras sacras, como ocorria em Lisboa e nas demais capitais europeias. Monteiro observa, porém, que, mesmo ditando preferências de estilo, a realeza e os reinóis recém-chegados não vieram a anular as já existentes, o que deixou espaço para a criação de novas práticas artísticas e culturais. Até porque, saindo às ruas, o que esses cantores e compositores ouviam, ainda que involuntariamente, eram os sons de batuques.

Nas duas primeiras partes do livro – “Música e Historiografia” e “O Gosto e o Costume” –, o autor traça um panorama da construção do gosto musical no Rio de Janeiro no começo do século XIX. Já em “Um lugar seguro nos trópicos” apresenta o impacto e as transformações artísticas e socioculturais que o Rio de Janeiro começou a sofrer a partir da presença da corte. Também aborda a música dos escravos africanos e dos indígenas e o seu entrecruzamento com a cultura europeia. Em “A música na sociedade da corte” mostra, entre outros temas, as associações religiosas leigas e irmandades que eram “as maiores fornecedoras e consumidoras” de artes no Brasil antes da chegada da corte.

Inconsistências nos trabalhos dos historiadores que relataram a vinda da família real ao Brasil.

III

O que se lamenta é que o autor repita a informação de que, com a família real, viajaram para o Rio de Janeiro em 1807 entre 10 e 15 mil pessoas, dando-a como líquida e certa, sem apresentar, porém, fontes de arquivo que a comprovem efetivamente. E que também escreva que o Rio de Janeiro contava com cerca de 50 mil habitantes antes da chegada do príncipe regente e que o número triplicou a partir de 1808 e que quase dois terços eram formados por negros e mestiços, igualmente sem apresentar fontes confiáveis.

Se dois terços da população eram de negros e mestiços – ou seja, 30 mil –, a levar-se em conta os dados que apresenta, é de imaginar que, das naus que acompanharam d. João e nas demais que chegaram ao Rio de Janeiro em 1808 e 1809, tenha desembarcado – e permanecido na cidade – quase o equivalente ao que havia de população dita branca (porque se sabe também que muitos dos homens principais, filhos de portugueses chegados havia mais tempo, já não seriam tão brancos assim). Imaginar que isso tenha ocorrido é imaginar também que tenha acontecido um tumulto de grandes proporções na cidade do Rio de Janeiro que a documentação que se conhece não comprova, apesar da insistência com que aqueles que sempre defenderam essa tese procuram fazê-lo.

A professora Lilia Moritz Schwarcz, uma das mais brilhantes historiadoras da última geração, que sempre repetiu em seus livros essa informação pouco confiável, em A longa viagem da biblioteca dos reis (São Paulo, Companhia das Letras, 2002), já não se mostrou tão confortável assim com os números, depois que o arquiteto Nireu Cavalcanti, em sua tese de doutorado de 1997, transformada no livro citado acima, garantiu que, somando as listas de passageiros que constam de arquivo, vieram com o príncipe regente apenas 444 pessoas, entre as quais 60 membros da família real e da alta nobreza portuguesa “que chegaram ao Rio de Janeiro entre 1808 e 1809”.

Apesar de ter citado Cavalcanti, Lilia preferiu relacionar várias fontes em que se lê os mais disparatados números. Escreveu que o secretário do bispo Caleppi, “que a tudo assistiu de perto, avaliou que 10 mil pessoas embarcaram na esquadra real”. Citou também uma minuciosa listagem, que consta do arquivo do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (lata 490, pasta 19) que relaciona nominalmente 536 passageiros, número que seria maior porque ao lado dos nomes dos passageiros muitas vezes vinham termos imprecisos como “e mais sessenta pessoas” ou “e outros”.

Observou ainda que o historiador J.M.Pereira da Silva (1817-1897), em época posterior, estimou que “cerca de 15 mil pessoas de todos os sexos e idades abandonaram neste dia as terras de Portugal”. E que um documento encontrado nos papéis de d.Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), o conde de Linhares, hoje constantes do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que pretendia registrar os nomes dos nobres acompanhantes de d.João, apresenta ao final uma informação taxativa: “E mais 5 mil pessoas”. Sem deixar de acrescentar uma nota do tenente irlandês Thomas O”Neill, que acompanhou o embarque em Lisboa e a chegada ao Rio de Janeiro, segundo o qual teriam desembarcado de 16 a 18 mil súditos, incluindo quatro mil soldados da tropa.

Citou também o historiador contemporâneo inglês Kenneth Light que estimou que, naquele 29 de novembro de 1807, em Lisboa, poderiam ter embarcado de 12 a 15 mil pessoas. Mas há mais: o historiador J.Vieira Fazenda avaliou que em três meses a população do Rio de Janeiro aumentou em mais de 20 mil pessoas, enquanto para Rocha Martins (1879-1952) seriam 13.800 os recém-chegados, para A.K.Manchester, 10 mil, e para o sempre pouco confiável Luiz Edmundo (1878-1961), 15 mil. Em conclusão, Lilia preferiu mesmo ficar com a “verdade” consagrada pela historiografia oficial de que os viajantes teriam variado de 10 a 15 mil, embora não haja documento que, peremptoriamente, confirme o dado.

“D. João não era o bobalhão que pretensos historiadores até hoje procuram mostrar em livros que vendem muito e minisséries de TV”

É certo que pelo menos três dos documentos acima citados são coevos do tempo do embarque da família real rumo ao Brasil, mas igualmente podem trazer estimativas exageradas. Não dá para acreditar, por exemplo, que O”Neill, que era oficial da marinha inglesa, embarcado num navio ancorado a quilômetros de distância do porto de Belém, tenha ficado de prancheta em punho a contar o embarque de milhares de viajantes. Esta é mais uma fantasia do tipo daquela segundo a qual d.Maria, que já não andava bem das ideias, teria dito na carruagem, descendo do Palácio da Ajuda para o porto de Belém, para que não corressem a fim de não dar a impressão de que estariam fugindo. Quem estava lá para saber se ela disse isso mesmo?

Já as demais são citações de historiadores que sempre fizeram do palpite o seu instrumento de trabalho, como ainda é muito comum nos dias que correm. Aliás, Luiz Edmundo já deveria ter sido “canonizado” como o santo padroeiro dos historiadores brasileiros por palpites, assim como Teófilo Braga (1843-1924) é dos portugueses.

IV

O curioso é que nenhum desses historiadores consultou nos livros da Intendência Geral de Polícia da Corte, no Arquivo Nacional da Torre Tombo, as páginas referentes ao mês de novembro de 1807. Se o tivessem feito, com certeza, teriam tido suas convicções abaladas, pois lá está claro que as forças de segurança, às vésperas do embarque da família real, preocuparam-se em evitar que a população percebesse os preparativos para a retirada estratégica (ou fuga, se preferirem).

Assim, por determinação da Intendência, casas de pasto e botequins ao redor do Palácio da Ajuda não tiveram permissão para abrir as portas naqueles dias. E no Rossio foi reforçada a vigilância para evitar ajuntamentos e a propagação de boatos. Da leitura dos livros da Intendência, conclui-se, obviamente, que a saída da família real de Lisboa era um segredo de Estado. Portanto, se era segredo de Estado, como imaginar que a informação possa ter sido compartilhada por 10, 15 ou 18 mil pessoas?

Quem ainda assim duvidar deveria ler o texto “A reordenação urbanística da nova sede da Corte”, do mesmo Nireu Cavalcanti, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, nº 436, jul.-set., 2007, pp.149-199. Ali se pode ler, por exemplo, que toda a operação de embarque da família real se deu em 40 horas. Não se esqueçam que as tropas de Junot estavam em Sacavém, às portas de Lisboa. Em outras palavras: a família real embarcou no dia 29 e, no dia seguinte, o exército invasor entrou na cidade. Colocar 15 mil pessoas nos navios em tão pouco tempo seria tarefa impossível. Até porque as naus ficavam ao largo e os viajantes tinham de ir até lá em escaleres.

Mas, como correções não se coadunam com os egos inflados de acadêmicos, a historiografia continua a consagrar aquele discurso contraditório, levando historiadores menos atentos a repeti-lo como verdade consagrada. É o caso de Monteiro que repete também a historieta de que teriam ocorrido muito problemas para a instalação daqueles que chegavam, dizendo que as iniciais P.R. (Príncipe Regente) assustavam a todos e que seriam traduzidas jocosamente como “ponha-se na rua”. Se isso se deu, é de imaginar que, praticamente, toda a população de proprietários do Rio de Janeiro (lembrem-se que dois terços seriam negros e mestiços, ou seja, não proprietários em sua imensa maioria) teria sido convidada a deixar suas residências para que fossem abrigados os recém-chegados.

E mais: levando em conta que a limpeza do Rio de Janeiro estava toda confiada apenas aos urubus, como observou Oliveira Lima (1867-1928) em D.João VI no Brasil (Rio de Janeiro, Topbooks, 4ª ed,. 2006), é provável que a presença abrupta de mais 15 mil pessoas acabasse por estimular uma epidemia sem precedentes numa cidade sufocante em que eram comuns ataques biliosos, disenterias, bexigas, linfatites, morféia e sífilis. Só que não há também registro conhecido de uma mortandade sem precedentes. Nem tampouco sobre a construção às pressas de casas ou aposentos para os recém-chegados.

É verdade que Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844), o padre Perereca, em Memórias para servir à História do Reino do Brasil, diz que o vice-rei mandou que proprietários e inquilinos de um grande número de casas lhe levassem as chaves até que “aparecesse na Barra Real a esquadra”, mas isso poderia valer tanto para abrigar 500 ou 15 mil pessoas.

Portanto, onde teriam ido se alojar os 15 mil desabrigados consagrados pela historiografia oficial? É, no mínimo, estranho que nenhum documento registre esse pandemônio, sendo mais plausível que tenha ocorrido em dimensões bem reduzidas. Cavalcanti, aliás, em seu livro, diz que pesquisas que realizou sobre a questão da aposentadoria e sua aplicação no Brasil, em função da permanência da corte no período de 1808 a 1823, ano de sua extinção pela legislação brasileira, apontam para o diminuto número de cerca de 120 processos. Mais: naquele texto mais recente, publicado na Revista do IHGB, Cavalcanti diz que, segundo suas pesquisas na documentação, apenas 19 pessoas pediram casa para alugar, usando a lei da aposentadoria. Daqui se conclui que, se o episódio do “ponha-se na rua” ocorreu em 1808 ou 1809, envolveu bem poucas famílias.

V

Monteiro também repete o que a historiografia oficial consagrava sobre a presença da missão francesa de 1816 no Rio de Janeiro, com base em estudos de Afonso Taunay (1876-1958) e Donato Melo Júnior, sem levar em conta a importante revisão que Lilia Moritz Schwarcz fez sobre o assunto em O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d.João (São Paulo, Companhia das Letras, 2008), talvez porque o lançamento dos dois livros praticamente coincidiu. E não tenha havido tempo para correções ou aditamentos.

Monteiro ainda informa à pág.216 que, ao embarcar em Lisboa para o Rio de Janeiro, o príncipe regente trazia consigo alguns dos melhores músicos da corte, mas não relaciona seus nomes nem diz em que nau teriam vindo como tampouco aponta qualquer fonte de arquivo que possa corroborar sua informação. Seria mais um palpite.

Mas, a título de colaboração, pode-se dizer que há passaportes passados em Lisboa, ao final do ano de 1809, para os músicos Antonio Pedro Gonçalves, João Mazzioti, Joaquim Antonio Gomes Calão (padre cantor), José Caparica, José Joaquim Borges (cantor) e Nicolau Heredia. E que, em 1812, chegaram ao Rio de Janeiro Simão Portugal (mestre de música) e os músicos de câmara Eugênio José Farnese, Policarpo José de Faria e Vicente de L. C., cujos passaportes estão no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), de Lisboa.

Seja como for, estas observações não tiram a maior parte dos méritos do livro, uma importante contribuição para a reconstituição do que foi “um momento rico em informações e prática musical sofisticada e atualizada” que é “o período de permanência da nobreza portuguesa no Brasil”, conforme diz o maestro Júlio Medaglia no prefácio. E que mostra também que d. João não era o bobalhão que pretensos historiadores até hoje procuram mostrar em livros que vendem muito e minisséries de TV, mas que não têm nenhum compromisso com a verdade histórica dos documentos.

Como mostra Monteiro, d. João era, isso sim, um homem de gostos refinados, preocupado com a música e as artes, na medida das possibilidades de sua corte que, em comparação com as cortes europeias, seria de uma pobreza franciscana. Aliás, bem menos numerosa e aparatosa do que imaginaram muitos historiadores. E que, aliás, por isso mesmo, sempre exercitou a hoje chamada política de privatização, pois sempre que podia passava o chapéu entre os ricos comerciantes ou delegava a algum deles o direito de atuar em seu nome, como, por exemplo, recolher impostos, tal qual o governo luso atual que anda a privatizar consulados pelo mundo.

Nada disso, porém, impediu d. João de, a rigor, fundar a Nação brasileira, criando as instituições básicas do que viria a ser um país independente. Mas é claro que o príncipe regente continuará a ser apresentado como um tipo grosseiro e de maus bofes por aqueles pretensos historiadores — até porque nunca ninguém perdeu dinheiro por apostar na estupidez humana.

Autor

  • Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (1999), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (1997); Bocage – o Perfil Perdido (2003), e Tomás Antônio Gonzaga (2012), entre outros.

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