Esse é o título do segundo capitulo de Mil Platos, e a retomada do assunto proposto no Anti-Édipo. Como mencionei no artigo anterior, o Anti-Édipo é a crítica à psicanálise Freudiana e, apesar de Mil Platos não se focar nessa crítica esse capitulo discute o famoso caso Freudiano: o caso do Homem dos Lobos.
Neste caso, Freud desenvolve um extenso tratado sobre a teoria psicanalítica abordando os mecanismos da relação analítica que atuam no processo de reconstrução do sujeito.
Serguéi Pankejeff (O Homem dos Lobos) tinha 22 anos de idade e acabara de herdar a fortuna de seu pai morto a dois anos. Quando começou seu tratamento com Freud sua saúde estava frágil e era totalmente dependente dos outros. Sua infância tinha sido dominada por perturbações neuróticas que passou por fobia de animais até se transformar em uma neurose obsessiva de conteúdo religioso.
‘No fim de contas, existem nele, lado a lado, duas correntes contrárias. Uma abominava a castração, enquanto a outra estava disposta a aceitá-la e a se consolar com a feminilidade a título de compensação. (…) Mas, sem dúvida nenhuma, a terceira corrente, a mais antiga e mais profunda, que simplesmente rejeitara a castração, aquela para a qual não podia se tratar, neste momento, de um JULGAMENTO sobre a REALIDADE ainda era capaz de entrar em atividade’. (Freud)
Não é nenhuma novidade que Freud ‘moldou’ todos os ‘sintomas’ apresentados pelo Homem dos Lobos para que eles se encaixassem em seu complexo de Édipo, assim como faria com qualquer pessoa que sentasse em seu divã. Quando Serguéi começou o tratamento ele era considerado neurótico, depois de doze anos no divã de Freud não é de se assustar que ele tenha se tornado psicótico. Mas deixemos minhas conjecturas de lado e vamos ao começo da crítica proposta nesse capítulo.
‘Naquele dia o Homem dos lobos saiu do divã particularmente cansado. Ele sabia que Freud tinha o talento de tangenciar a verdade, passando ao lado, para, depois, preencher o vazio com associações.’ (Deleuze e Guattari)
Deleuze e Guattari falam sobre pegadas de lobos na neve, o que se vê é o rastro de um lobo, mas lobos andam em matilha pisando todos nas mesmas pegadas, dando assim a ilusão de que há apenas um lobo. Freud caiu nesse armadilha e constrói sua teoria achando que por ali passou apenas um Lobo solitário. Basicamente, o reducionismo Freudiano o cegará para outras possibilidades, sacrificará a multiplicidade em prol da confirmação de sua teoria.
‘No primeiro episódio, que Freud declara neurótico, o Homem dos lobos conta que sonhou com seis ou sete lobos em cima de uma árvore e desenhou apenas cinco. Quem ignora efetivamente que os lobos andam em matilha? Ninguém, exceto Freud. O que qualquer criança sabe, Freud não sabe. Freud pergunta com um falso escrúpulo: como explicar que haja cinco, seis ou sete lobos no sonho? Posto que ele decidiu tratar-se de neurose, Freud emprega então outro procedimento de redução’ (Deleuze e Guattari)
Claro que não precisamos ser filósofos rabugentos para perceber que o reducionismo Freudiano foi um dos grandes problemas da psicanálise ortodoxa. Se você conta um sonho para Freud ele moldará o sonho para encaixar na patologia que ele acha que você apresenta, a cadeia de interpretação Freudiana é tão limitada que aqui eles zombam das possibilidades dentro do sonho descrito acima:
‘A operação é feita pela associação do sonho com o conto O lobo e os sete cabritinhos (dos quais somente seis foram comidos). Assistese ao júbilo redutor de Freud, vê-se literalmente a multiplicidade sair dos lobos para afetar cabritinhos que não têm estritamente nada a ver com a história. Sete lobos que são apenas cabritinhos; seis lobos, posto que o sétimo cabritinho (o Homem dos lobos em pessoa) esconde-se no relógio; cinco lobos, posto que talvez tenha sido às cinco horas que ele viu seus pais fazendo amor e que o algarismo romano V está associado à abertura erótica das pernas femininas, três lobos, posto que os pais fizeram amor três vezes; dois lobos, posto que eram os dois pais more ferarum, ou mesmo dois cães que a criança, antes, teria visto copularem; depois, um lobo, posto que o lobo é o pai, o que já sabia desde o início; finalmente, zero lobo, posto que ele perdeu sua cauda, não menos castrado do que castrador. Zomba-se de quem?’ (Deleuze e Guattari)
No final das contas, tudo se resumirá na castração, castra-se o lobo e transforma sua neurose numa psicose. Freud não quer enxergar o Rizoma, não quer perceber a multiplicidade. Freud transformou seu próprio desejo de matar o pai e comer a mãe no desejo que cada ser humano, a psicanálise é mais uma doença que uma cura. O egocentrismo de Freud foi tão doentio que mesmo quando Jung, seu discípulo mais promissor, tentou abrir-lhe os olhos ele vira as costas e passa a falar sobre como os poros da pele podem ser símbolos ocultos de uma fazenda de ânus.
‘Jung, surpreso, leva-o a observar que havia vários crânios, não somente um. Mas Freud continuava’ (Bennet)
Como podemos dar credibilidade a uma psicanálise que não quer saber da complexidade de seu enunciado, mas sim busca uma simplificação extrema dessa multiplicidade para encaixar na teoria edipana.
‘Não se reprova a Psicanálise só por ter selecionado enunciados edipianos, pois estes enunciados, numa certa medida, ainda fazem parte de um agenciamento maquínico em relação ao qual eles poderiam servir de índices a corrigir, como num cálculo de erros. Reprova-se a Psicanálise por ter se servido da enunciação edipiana para levar o paciente a acreditar que ele ia produzir enunciados pessoais, individuais, que ele ia finalmente falar em seu nome.’ (Deleuze e Guattari)
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Referências:
Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, Gilles Deleuze e Pierre-Félix Guattari.