A doutrina diabólica e capitalista em “A igreja do Diabo”, de Machado de Assis

O projeto do diabo machadiano é ainda mais ambicioso que aqueles vistos em outras obras de tradição fáustica

Estátua de Machado de Assis na entrada da Academia Brasileira de Letras (ABL) | imagem: Viviane Gouveia

Tudo começa, para o leitor, de uma ideia. Uma ideia mirífica, extraordinária, ousada. O Diabo resolve fundar a sua própria igreja e aniquilar todas as outras religiões. Não aceitará nenhum profeta, não aceitará nenhum reformista que divida a sua religião. Há muitos modos de afirmar, diz o Diabo, mas apenas um de negar tudo. A partir daí, o Diabo sabe que precisa falar com Deus e comunicar a sua ideia, a fim de desafiá-lo. Com os olhos cheios de ódio e vingança, parte para o Paraíso num gesto tão poderoso que abalou o Inferno, partindo da sombra para o infinito azul.

É dessa forma que Machado de Assis abre “A igreja do Diabo”, conto publicado em 1884, que pode ser lido em algum nível na tradição dos estudos literários como ciclo do demônio logrado, definido por Jerusa Pires Ferreira como um tipo de narrativa “em que o demônio é sempre vencido pela astúcia do homem ou da mulher, com ou sem intervenção divina”1. O projeto do diabo machadiano, no entanto, é ainda mais ambicioso que aqueles vistos em outras obras de tradição fáustica, como o Fausto da danação de Marlowe ou o Fausto da salvação de Goethe. Aqui, Machado imagina um tipo de diabo que desafia Deus não apenas pelo servo Fausto, mas por todos os Faustos do século e dos séculos que virão. É um Fausto às avessas, e seu Mefistófeles ocupa o centro da narrativa enquanto há uma metonímia de Faustos e os manipula ao passo que constrói um mundo em que o indivíduo se torna cada vez mais egocêntrico, sem a noção de seus pares, e em um sistema exploratório. Seria a empreitada diabólica um projeto de fundamentos liberais levado ao seu limite? Liberar o sujeito no limiar de sua própria consciência e de seus mais profundos desejos teria qual poder transformativo para a sociedade? Nesse sentido, o objetivo deste ensaio é procurar ler o conto sob uma perspectiva de uma possível crítica ao modelo liberal, e compará-lo à sua influência maior: Fausto, de Johann Wolfgang Goethe.

Mefistófeles à brasileira de Machado

O Diabo machadiano é arguto e irônico, à maneira de tantas outras personagens criadas por Machado, mas é possível notar forte intertextualidade com o Mefistófeles de Goethe, especialmente quando se compara o capítulo II, “Entre Deus e o Diabo” com “Prólogo no Céu” – é preciso ressaltar que este também guarda intertexto com o Livro de Jó, cujo centro narrativo também é o encontro entre Deus e o Satanás, bem como um servo (Jó) que terá sua fé testada: “Iahweh disse ao Satã: Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e se afasta do mal’. […] Então Iahweh disse ao Satã: ‘Pois bem, tudo o que ele possui está em seu poder, mas não estendas a tua mão contra ele’. E o Satã saiu da presença de Iahweh”2.

Machado concebe um Diabo retórico como Mefistófeles, que busca persuadir Deus em sua tarefa. É razoável inferir isso nos trechos a seguir:

“– Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para a minha igreja; atrás delas virão as de seda pura…
– Velho retórico! murmurou o Senhor”3

“Perdão, não sei fazer fraseado estético,
Embora de mim zombe a roda toda aqui;
Far-te-ia rir, decerto, o meu patético,
Se o rir fosse hábito ainda para ti.
De mundos, sóis, não tenho o que dizer,
Só vejo como se atormenta o humano ser” (vv. 275-80)4

Há decerto outras aproximações intertextuais entre o conto machadiano e a peça, como a presença de arcanjos nas cenas, e a forma respeitosa em que Deus/ O Altíssimo e o Diabo/ Mefistófeles se tratam. O desfecho do capítulo e do prólogo se assemelham com o consentimento divino à ideação diabólica:

“– Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens… Mas, vai! vai!”5

“Pois bem, por tua conta o deixo!
Subtrai essa alma à sua inata fonte,
E leva-a, se a atraíres para teu eixo,
Contigo abaixo a tua ponte.
Mas, vem, depois, contudo confessar
Que o homem de bem, na aspiração que, obscura, o anima,
Da trilha certa se acha sempre a par” (vv. 323-9)6

É, portanto, notável como, mesmo se inspirando no gênio alemão e em toda uma tradição fáustica, Machado impõe voz própria ao seu Diabo, dando-lhe personalidade e humor distintos, ao mesmo tempo em que o mantém próximo bastante ao anjo caído goethiano. Feita a aproximação, faz-se necessário investigar o tipo de Diabo que se apresenta ao leitor no conto e suas motivações. Qual é o Diabo que cria a sua própria igreja? Talvez uma hipótese para essa resposta resida na doutrina criada pelo Diabo nas fundações de seu templo, conforme nos deteremos a seguir.

Seria a doutrina do Diabo capitalista?

Em sua célebre leitura do Fausto de Goethe, Marshall Berman enxerga como uma das chaves para compreensão da obra o seu caráter desenvolvimentista, especialmente em sua segunda parte, quando a modernização se torna tema central. Segundo Berman, a metamorfose assumida por Fausto como fomentador industrial resulta em uma radical negação da liberdade emocional, em oposição ao desenvolvimento da indústria. Nesse sentido, Goethe faz surgir um Diabo da modernidade, diferente de outras encarnações, como o Mefistófeles de Christopher Marlowe, o Lúcifer de John Milton, e o próprio Satã que testa a fé de Jó no Antigo Testamento da Bíblia cristã. Este Satanás moderno reflete as profundas transformações da sociedade em meio ao pleno estabelecimento do capitalismo, com seu modo de produção mais revolucionário da história, ao mesmo tempo em que se ergue como um sistema sumamente explorador que cometeu e comete incontáveis atrocidades contra a humanidade. Não há freios morais que impedem as ações do homem na ótica do Mefistófeles goethiano – do tipo “deveria fazê-lo?” –, a legítima questão no mundo do autodesenvolvimento passa a ser: <em>Como</em> fazê-lo? E Mefistófeles oferece a Fausto os conselhos para tanto:

“Com a breca! pernas, braços, peito,
Cabeça, sexo, aquilo é teu;
Mas, tudo o que, fresco, aproveito,
Será por isso menos meu?
Se podes pagar seis cavalos,
As suas forças não governas?
Corres por morros, clivos, valos,
Qual possuidor de vinte e quatro pernas.” (vv. 1.820-7)7

Berman aponta que o dinheiro exerce papel central na fundação de Fausto, aludindo a Lukács no sentido de que o dinheiro promove a ampliação do raio de ação humana, e age como extensão do sujeito, afirmando o seu poder sobre os outros homens e circunstâncias. Para Berman, é inequívoco afirmar que “o capitalismo é uma das forças essenciais no desenvolvimento de Fausto”8.

Considerando sua inspiração goethiana, o Diabo de Machado também nasce no seio do capitalismo, e funda a sua igreja sobre novas virtudes. De imediato, o Diabo transforma os sete pecados capitais nas virtudes naturais e legítimas do homem: a soberba, a luxúria, a preguiça são reabilitadas, e a avareza, pedra fundadora do capitalismo, é batizada como “a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada”9. Ira e gula são também reabilitadas, assim como a inveja, defendida pelo Diabo como a principal virtude, “origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento”10. Acrescentadas às novas virtudes, estão a fraude – denominada como braço esquerdo do homem – e a venalidade. Esta virtude é tratada de forma hiperbólica, e o direito à venda (por consequência, à propriedade privada) deve ser tratado de modo irrestrito, não se limitando apenas a bens materiais, mas também a intangíveis como palavra, voto, opinião, fé. Nisto se nota uma interseccionalidade do conselho de Mefistófeles a Fausto (compra), mencionado acima, com a proposta do Diabo a seus novos fiéis (venalidade), denotando uma lógica mercantilista, ainda que de maneira rudimentar:

“A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a sua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. […] Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária.”11

Essa doutrina diabólica, erguida a partir das novas virtudes, prometia aos fiéis e seguidores todas as delícias da terra, todas as glórias e os deleites mais íntimos. É uma doutrina formada por virtudes que reforçam o comportamento egoísta do sujeito, seu caráter mesquinho e exploratório, desprovido de qualquer tipo de noção coletiva de colaboração e bem-estar. Com a extinção do amor ao próximo, considerado pelo Diabo como um obstáculo para o seu templo, faz-se admissível apenas a hipótese em que há amor por mulheres alheias, pois este demonstra apenas o amor do indivíduo por si mesmo – logo, uma espécie de amor narcísico.

É preciso também comentar sobre uma diferença fundamental entre Fausto e “A igreja do Diabo”: o cenário de modernização brasileiro do final do século XIX, muito mais particular e periférico que o modelo eurocêntrico. A sociedade brasileira das décadas de 1870-80 já convivia com a inevitabilidade do fim da escravidão e com um regime monárquico em absoluta decadência. Lilia Schwarcz lembra o crescente desinteresse de d. Pedro II por assuntos políticos no período, culminando com a consolidação e uma oposição fortemente organizada por três grupos: abolicionistas, republicanos e o Exército. Durante boa parte da década de 1870, d. Pedro parecia entediado com seu país e se preparava para visitar o mundo que conhecia apenas pelos livros. Reunindo uma comitiva de mais de duzentas pessoas, numa longa excursão que passou por Estados Unidos, Canadá, parte da Ásia e da África, Alemanha, Dinamarca, Suécia, Noruega, Rússia, Turquia, Grécia, Áustria, Bélgica, Holanda, Suíça, Portugal, e especialmente uma estadia de seis semanas em Paris. Enquanto estava reunido com Graham Bell e Victor Hugo (notório republicano), d. Pedro via crescer na oposição e na imprensa críticas ao seu reinado, que o enfraqueciam politicamente. Lembra Schwarcz: “[…] não por obra do acaso foi que na década de 1870 uma política deliberada de denúncias acerca dos gastos extremados da Coroa tomou lugar na imprensa. Enumeravam-se despesas, verificavam-se as finanças do país e se cobrava transparência nas prestações de contas do Estado Real”12. Esse enfraquecimento produziu um vácuo de poder que atrasava o desenvolvimento e fortalecia as elites que seguiam explorando trabalhadores escravizados – sabidamente, o Brasil foi o último país a abolir o regime escravocrata.

Seguindo o cenário político, o plano econômico refletia o momento de sua maior transformação da história brasileira. Caio Prado Jr. destaca que “um incipiente capitalismo dava aqui os seus primeiros e modestos passos. A incorporação das primeiras companhias e sociedades, com seu ritmo acelerado e apesar dos exageros e certo artificialismo, assinala assim mesmo o início de um processo de concentração de capitais que embora ainda acanhado, representa o ponto de partida para uma fase inteiramente nova”13. Um dos efeitos do nascente capitalismo brasileiro foi o arrefecimento do regime escravocrata e o subsequente fomento à imigração para alocar trabalhadores nas fazendas, especialmente as lavouras de café paulistas. Prado Jr. salienta que tal fomento decorre de uma situação internacional favorável: a restrição estadunidense com imigração; a perturbação política e social de países como a Itália, que resultava na migração de seus trabalhadores; e o florescimento econômico do Brasil. Ainda que o efeito do prenúncio da extinção da escravidão esteja no horizonte, uma marca sumamente brasileira não deixaria de existir: a desigualdade. No ponto de vista liberal, desigualdade não é um defeito do capitalismo, mas uma necessidade, como um tipo de modelo defendido por William Graham Sumner, seguidor do filósofo do liberalismo Herbert Spencer, que entendia que, “em uma sociedade de homens livres e independentes, baseada em uma ordem contratual, distinções de classe resultam do sucesso dos homens em aproveitar suas oportunidades. Logo, não haveria possibilidade de realizar a igualdade sem ferir o princípio maior da liberdade”14.

E é justamente neste cenário de intensas transformações sociais e de enorme desigualdade que a igreja do Diabo machadiana é erigida. Ora, qual seria o motivo de tamanho sucesso inicial do templo senão as imperfeições da sociedade sobre a qual este templo é construído? E, ainda mais importante, a exploração deste modelo doutrinário do Diabo pode levá-lo à sua ruína?

A derrocada da igreja do Diabo

Em seus ensaios sobre o mal, Terry Eagleton investiga um ramo do pensamento tradicional denominado teodiceia, que significa “justificação de Deus”. O termo é associado à busca de sentido e meio a alguma tragédia ou desastre natural indizíveis, quando se procura explicação para um mundo tão lamentavelmente imperfeito, que nem mesmo um Deus supostamente todo-poderoso pôde interferir com sua misericórdia. A teodiceia arrisca a justificativa de um mal forte o suficiente para isentar Deus de ter faltado com suas obrigações. A existência de Deus se justificaria ao permitir que grandes tragédias acontecessem para que a Humanidade possa viver num mundo real e que o sofrimento servisse de passagem ao sublime.

É possível estabelecer uma aproximação do conceito de teodiceia com o desfecho de “A igreja do Diabo”: anos após a criação da igreja, o Diabo percebe que muitos fiéis passam a praticar as antigas virtudes, entendidas aqui como judaico-cristãs, às escondidas. Avaros davam esmolas aos mais necessitados; glutões moderavam suas refeições em alguns períodos do ano; sonegadores devolviam pequenas quantias; ladrões se envergonhavam de seus atos; fraudadores que gratificavam os empregados e passaram a se confessar. Em choque, o Diabo volta ao Paraíso e indaga Deus o motivo do fenômeno, que o responde apenas que, assim como as antigas virtudes mostraram suas falhas, as novas também o fizeram. E arremata: “Que queres tu? é a eterna condição humana”15. Ainda que a conclusão de Deus aponte para uma noção complexa e ambígua da compleição humana, quem sabe seja presumível também fazer uma leitura do pensamento eagletiano do desfecho do conto, no sentido de que os fiéis aos poucos abandonavam o caos moral da igreja do Diabo para retornarem aos antigos hábitos e às antigas virtudes – talvez estas inatas ao homem.

Eagleton amplia o entendimento semântico da teodiceia para o marxismo, uma vez que os males do capitalismo e as atrocidades cometidas contra a maior parte da Humanidade podem ter uma significação positiva por conduzirem a uma condição mais desejável conhecida como socialismo. As ricas tradições liberais e iluministas do capitalismo representam um legado imprescindível para qualquer socialismo viável – o próprio Marx reconheceu isto. Prossegue Eagleton: “Portanto, a ‘Queda’ da história no capitalismo não é apenas afortunada, mas necessária? Poderia haver qualquer socialismo verdadeiro sem ela? O capitalismo não é necessário para aumentar a riqueza da sociedade até o ponto em que o socialismo pode assumi-la e reorganizá-la no interesse de todos?”16. Logo, assim como uma forma de explicar a teodiceia é o uso do sofrimento como instrumento de expiação, é também cabível entender o retorno às antigas virtudes no conto machadiano como uma ruptura com a doutrina diabólica e suas bases capitalistas. Naturalmente, como aponta Eagleton, existem socialistas que defendam de forma geral o marxismo como um exemplo de teodiceia, e essa afirmação carrega em si uma problemática de que os males do mundo – por mais lamentáveis que sejam – foram e são necessários para justificar o bem que nascerá deles. Todavia, a genialidade de Machado vive entre as lacunas do relativismo absoluto, entendendo sabiamente que nenhuma teoria alcança tudo, e a soma de outras teorias em experiências particulares formem em si uma teoria única. O Diabo edifica a sua igreja sobre bases capitalistas e muito pode se pensar sobre o que levou seus fiéis a encontrarem rachaduras em sua doutrina. Inclusive o seu desgaste por erigir-se em fundações frágeis e defeituosas, desgaste este que abrirá espaço para um novo tempo. De forma brilhante, Machado interrompe o conto antes de sabermos qual foi o desenlace da igreja do Diabo, e deixa para o leitor a tarefa imaginativa de fazê-lo.

Autor

  • Nascido em São Caetano do Sul (SP), no ano de 1980, é graduando em Letras com dupla habilitação em português e inglês pela Universidade de São Paulo (USP). Sua área de interesse de pesquisa é a obra do autor estadunidense William Faulkner, em especial com aproximação a escritores brasileiros como João Cabral de Melo Neto e José Lins do Rego.

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