Jeffery Deaver e seu Sherlock Tetraplégico

Como abertura de série sobre os romances policiais de Deaver, Carla Silva fala sobre personagem que é releitura estrutural do detetive de Conan Doyle

A herança deixada por Conan Doyle e seu Sherlock Holmes – uma criatura tão grande que eclipsou seu criador – é intensa, podendo ser pesada. Na história do romance policial, escritores de talento frequentemente evidenciaram sua influência.

A saída diante de tamanha força pode ser caricaturar o personagem de Doyle, satirizando-o, e, de saída, sendo bem sucedido na empreitada, como fez Agatha Christie por meio de seu Hercule Poirot desde O misterioso caso de Styles (1920) — ou, levando-o a sério, “trabalhar” sobre sua estrutura, suas características básicas. Esta foi a solução adotada por Jeffery Deaver com seu herói detetive, o criminalista Lincoln Rhyme (estonteantemente interpretado por Denzel Washington nas telas), que estreou em O Colecionador de Ossos (1998). Rhyme, uma máquina de raciocínio lógico, parece ter essa faceta sherlockiana acentuada por suas limitações físicas: desde sua estreia, o detetive é apresentado como um tetraplégico devido a uma acidente ocorrido anos antes da ação do primeiro romance.

Rhyme, como seu modelo, Sherlock Holmes, privilegia a razão. Como Holmes, sente-se à vontade com deduções e o frio universo do pensamento e do uso da lógica. Cientista forense, olha qualquer evidência não tangível com ceticismo. Ainda: assim como o detetive inglês era capaz de descrever com exatidão os tipos de solo da sua Londres do século XIX, Lincoln parece conhecer solo, flora e fauna da sua Nova York.

Se Deaver retoma o “tipo” de Sherlock Holmes, explorando-o e trabalhando sobre suas características, acrescentando outras – se Rhyme é igualmente impaciente com mentes menos ágeis do que a sua, faz um desvio ao manter uma relação curiosamente afetuosa com uma mulher (embora, iremos ver, o desvio do modelo sherlockiano não é tão grande assim) – retoam também o fiel auxiliar de Holmes, o Dr. Watson? Sim e não.

Sim: o “Watson” de Rhyme é igualmente fiel, igualmente leal. Não: o “Watson” de Rhyme chama-se Amelia Sachs; é uma jovem policial inteligente, sim, mas que embora acredite no poder das evidências físicas de um caso, em tudo o que a ciência forense pode fazer — acredita também (e aqui Deaver retoma seu modelo, o Dr. Watson) no poder do sentimento e do coração humano; no instinto e na intuição.

Assim, Jeffery Deaver, sofrendo a influência da mais forte figura da ficção policial, mostra-se suficientemente talentoso para retomá-la modificando-a, deformando-a — num procedimento que críticos literários como Harold Bloom , no seu A angústia da influência (1973, 1997) consideram como passo natural do artista: sofrer a influência de um predecessor forte, fazer uma “releitura” desse “rival” que seja “errada” – e modificá-lo, vencendo-o no processo.

No Brasil, Deaver teve publicados quatro dos seus livros da série de Lincoln Rhyme- Amelia Sachs: O Colecionador de Ossos [The Bones Collector] (1998); A Cadeira Vazia [The Empty Chair (2000); O Macaco de Pedra [The Monkey Stone (2002); e, neste ano de 2010, Lua Fria [Cold Moon (2006).

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