Independentes na Flip: Uma Versão Não-oficial

Diferenças locais, reafirmação de heranças negras e indígenas, novas proposições – tudo que de rugoso desponta na literatura, são as pequenas casas editoriais que o acolhem

O Google não sabia. E, ao contrário, o caminho era liso. Para alcançar as 12 editoras independentes da Gueto, primeiro viemos em direção ao cais e achamos a rua Fresca com seu chão de terra planado e vegetação natural. O Google não encontrava pelo nome atual da rua e se confundia na numeração. Eu e minha amiga achamos nosso Gueto por reconhecer pessoas em grupo animado em jardim, quadras de fresca à frente.

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As mesmas paredes e telhado que abrigaram a Casa do Desejo na Flip de 2018, também em coletivo de editoras independentes, foi, em 2022, batizada de Casa Gueto em homenagem a Rodrigo Novaes de Almeida, escritor, editor e idealizador da revista Gueto, que deixou o plano terrestre cedo e recentemente. O amplo espaço simpático de branco azul e paredes rústicas abrigou as casas editoriais Aboio, Editacuja, Feminas, Kotter, MoMa, Mondru, Patuá, Primata, Quase Oito, Reformatório, Rizoma e Urutau com suas editoras, autoras e vendedoras, seus editores, autores e livreiros em conversas literárias nas mesas de debate, nos cantos de paredes, debruçadas sobre os livros à venda e nos saraus, entre alegrias de cerveja, goles de sorrisos e abraços. Muitos abraços.

Recebo a antologia da Gueto, de distribuição gratuita, e reparo na capa o desenho com gatos (mas é claro!) e citação do geógrafo Milton Santos. Esse intelectual também estava na primeira mesa a que lá assisti, com o tema “Bibliodiversidade e pequenas editoras como rugosidades do tempo presente.” E se a globalização terraplana a cultura, dentre as diferenças locais, reafirmação de heranças negras e indígenas, novas proposições – tudo que de rugoso desponta na literatura, são as pequenas casas editoriais que o acolhem, como a experiência relatada das três editoras e dois editores na roda de debate e os livros expostos por toda Gueto comprovam.

Inversamente à metáfora, para chegar até a Casa que tem 12 casas desde a Matriz – com sua programação Flip oficial –, de novo, o caminho era liso. Da rua lateral da Capelinha vizinha da Gueto, eram 88 passos em terra batida até encontrar as típicas pedras irregulares do chão colonial de Paraty, que lemos ser parte da festa literária. Só mais uma quadra e já se chegava à praça central e tudo que é Flip – a lona de circo do espaço infantil, o telão e a Matriz.

Mas não são necessários 88 passos para que autoras e autores independentes apareçam na cena literária reconhecida. Lado a lado no gueto, enquanto pedi o prêmio SP de literatura de Cristina Judar na Reformatório, incentivei senhora na Patuá que já pagava a trilogia da recém-premiada de Jabuti, Micheliny Verunschk, a também levar a sua “santa suicida.”

A Gueto me trouxe Lilian Sais do gozo à morte. Lida no sarau Poético e Herético da sexta à noite de velas, poesias picantes e surpresa mascarada. Discutida no sábado no clube de leitura de O funeral da baleia. Com assepsia, Sais é finalista do Prêmio SP e atual prêmio Cepe de Literatura em poesia.

E por falar em prêmio Cepe, minha amiga Vanessa Molnar tanto estava sendo vendida no estande dessa editora na livraria oficial da Flip, quanto teve fala em mesa da Casa Gueto com Eric Nepomuceno, Fernando Molica e Amanda Lacerda em encontros de gerações, de diferentes especialidades e visões para a debater a sempre ardilosa e necessária pergunta trazida ali por Rogério Duarte: “O que pode a literatura frente à ditaduras?”.

Na prova de que as rugosidades das independentes são férteis de encontros, também testemunhei Teresa Cárdenas ao lado de Esmeralda Ribeiro na Casa de Poéticas Negras. Cárdenas lembrou a revolução cubana. Ribeiro também falou de ditadura brasileira, dos infiltrados nas reuniões do grupos de escrita dos primeiros Cadernos Negros e das ameaças à vida de quem se reunia.

Até lá era ainda mais difícil chegar. Fui para livro de conterrânea do ABC paulista, já que a editora Feminas se dividia entre a Casa Gueto e a Casa das Poéticas Negras. Bem que colega avisou que o Maps “mandava para Nárnia” com base no endereço que constava na página da Flip. Eu e Vanessa dando voltas pelos caminhos rugosos de Paraty e nada de achar as poéticas negras. Foi necessário que seguíssemos a própria Sandra de Souza, editora da Feminas, e mesmo assim telefonar a quem já estava naquela Casa.

Finalmente nela, descobrindo que por ali também poderíamos jantar, pois o cardápio de bobó de camarão, feijoada, baião de dois, entre outras iguarias, tinha também preço de dar água na boca. Vi que no Instagram próprio dessas poéticas a referência de chegada era outra, como rua lateral de certo café.

Aqui o real e a metáfora se igualam, só quem é do mesmo gueto se acha. Assim como o Google, como coletivo, o Mercado não nos encontra.

Havia sim o espaço reservado da própria Flip oferecido para os e as independentes. Mas para lá chegar era necessário atravessar a ponte e dar as costas à Matriz. No Pontal de Paraty, um semicírculo de barracas de pastel, de brincos, de tapioca, de caldos, de bolsas etc findava na estrutura identificada como “independentes”. Ali, cerca de uma dezena de mesinhas abrigavam desde escritor solo com seus vários livros de editoras diversas, o coletivo Escreviventes – de autoras que dividiram entre si o valor do espaço e o tempo de nele estar ao público – até a badalada Lote 42 com sua Banca Tatuí.

Nessa mesma relação perto-longe, apenas dois espaços maiores com tapumes e de oferecimento diverso, como camisetas e doces, separavam os independentes do espaço Auditório Flip do Areal, que recebeu tanto escritoras e escritores consagrados quanto fenômenos recentes como Andrea Del Fuego e Pedro Rhuas, respectivamente. Porém, vizinhos pelos dois lados de artesanatos diversos, roupas, salgados e guloseimas era fácil confundir como adereços os livros dos independentes ali expostos.

Ao lado de Teresa Cárdenas nas poéticas negras, do alto do palco e dos seus 40 anos de carreira literária, foi esperando a carne louca ser preparada que incorporei  as dicas de Esmeralda Ribeiro para escrever em meio ao caos. Nesse fazer-se escritora para quem não tem como dispor de oito horas/dia para a escrita, como a busca da madrugada para o ofício, as horas roubadas do descanso.

Eu já me fartava de lanche com sabor de infância quando Cárdenas se voltou ao público, de cerca de 100 pessoas, e pediu que viessem até ela e Ribeiro as escritoras negras jovens. As matriarcas literatas puxaram o coro de axé e benção da ancestralidade para as debutantes ao seu lado, para que não esmorecessem no caminho da arte da palavra, para remoção dos obstáculos impeditivos e deixando-as de corpo fechado para os venenos de quem diz que elas não podem escrever.

E eu, que não creio, senti muita falta de também ter fé numa ancestralidade para poder fazer o mesmo pedido-oração para mim.

Autor

  • Formada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), é professora de roteiro e de escrita criativa na Fundação das Artes de São Caetano. Lançou o livro de contos Travessências (2020) e o de crônicas Via por 7 minutos (2022), ambos pela editora Patuá.

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