A escritora tece, tece, costura com linha dupla as feridas abertas, tece, tece e aguarda que o leitor entre no céu de tempestade
“Não procuro Lygia: encontro-a dentro do meu coração”
– Carlos Drummond de Andrade em bilhete enviado para Lygia Fagundes Telles (1982)
Nas profundidades, lá no fundo, ela sente as ligações: pessoas com quem encontrou vida afora pareciam personagens suas. Foram personagens suas. Quando reconhece gente assim, a escritora ri, tem vontade de abraçar. Mas, para não dizerem que ela enlouqueceu, fica quieta, guarda em si a certeza de que há protagonistas seus andando por aí. Do papel para a carne, da carne para o papel: desse vaivém, surgem as tais conexões que ela percebe como ninguém. Ela, Lygia Fagundes Telles. Essa fala da autora1, repare, assume aqui o jeito de um aviso: ler Lygia demanda disposição para ultrapassar a superfície. Não se deixe enganar pela linguagem livre de truques espalhafatosos ou traços carregados. De modo paciente e seguro, a artista conduz o seu público em direção à matéria abafada, isto é, aquilo tudo que se põe atrás dos véus da sociedade. Ao avançar em uma ficção da grande dama, empreende-se o ingresso, pé ante pé, nas profundidades, lá no fundo, terreno onde são feitas as ligações humanas. Ela, Lygia Fagundes Telles, convida a todos: entrem comigo.
Entrar, por que não?, em uma cor. Em 1970, a prosadora lançou Antes do Baile Verde, reunião de dezoito contos, publicação seguida por uma Seleta (1971) e, após três anos, por seu romance mais famoso, As Meninas (1973). O livro em foco traz narrativas que alcançam as inquietações íntimas de sujeitos diversos: um garoto testemunha um adultério; duas moças, a patroa e a empregada finalizam uma fantasia de carnaval no quarto ao lado do lugar onde um homem agoniza; um rapaz leva a ex-namorada para passear em um cemitério. Note: a partir de uma gama de situações, a contista observa e se embrenha na fragilidade e no segredo humanos, indo ao âmago de suas criaturas, possibilitando que elas se aproximem do leitor. Ao mistério, agente efetivo nesses enredos, soma-se o contexto político de então. Ou melhor: os contextos, no plural, posto que as tramas foram elaboradas entre 1949 e 1969. Em duas décadas, é certo, muito aconteceu. O planeta mal saíra dos horrores do nazifascismo e caiu na Guerra Fria. No Brasil, o período compreende desde a eleição e o suicídio de Getúlio Vargas até o golpe militar e as primeiras três fases do regime ditatorial. Ressalta-se ainda que o título chegou às prateleiras em um momento filho do recrudescimento da repressão política provocado pela assinatura do Ato Institucional nº 5 (AI-5). Tamanho desassossego, saiba, não escapa à apreciação crítica e sensível de Lygia, para quem a profissão de escritor demanda ser testemunha de seu tempo. Nas entrelinhas, sem a tempestade da explicitude, estão as questões político-sociais, em nada ignoradas pela autora. As condições do país e o cenário global compõem as vísceras de uma obra premiadíssima2, realizada com palavras precisas, ironia fina e um campo sinestésico todo verde. Sim, entrar em uma cor, o verde, tomado enquanto símbolo de passagens – da existência ao óbito, da lucidez à loucura, da caçada do fantástico às revelações vertiginosas.
E é pronunciando o termo caçada (repita: caçada) que se atinge o cerne deste ensaio. “A caçada”, sétima história do volume em destaque, configura o interesse maior desta análise. Parênteses: nos dois parágrafos anteriores, não se tentou emular uma espécie de suspense a respeito do alvo perseguido nestas reflexões. Buscou-se construir um pequeno caminho para que, gradualmente, já tivessem expostas algumas qualidades tanto do universo lygiano quanto do livro em que se insere o conto. Ressalva informada, concentre-se agora no texto em estudo. Diante de uma tapeçaria surrada, à venda em um antiquário, um homem fica encantado de tal maneira que mergulha na cena retratada. Não custa lembrar que a literatura apresenta, com inúmeras feições, esse movimento de integração com o objeto de fascínio. Para as crianças, o autor inglês James Mayhew inventou uma série de peripécias comandadas por Érica3, mocinha que, de tão arrebatada pela pintura, mistura-se a quadros clássicos: pega os girassóis de Vincent van Gogh e as papoulas de Claude Monet, além de papear com Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. Mais perto de Lygia, há outro caso: G.H., protagonista de Clarice Lispector, come a massa branca da barata, episódio em que o conceito de união adquire o nível máximo (embora esse evento seja desprovido de um caráter extraordinário). Mulher e animal tornam-se um só. Homem e tapeçaria tornam-se uma só caçada (repita: caçada).
Caçar, você entende, pode ser um tipo de procura. O que o cidadão, afinal, procura na tapeçaria? Manifesta-se, pois, o impulso da maioria dos leitores (seu também, é provável): qual o assunto da trama? O argentino Julio Cortázar acreditava em uma aliança enigmática e complexa entre escritor e tema4, vínculo que Lygia Fagundes Telles fabrica com maestria. Porém, antes de abordar essa tônica ou o problema do espaço no enredo (pontos que devem receber, nas páginas seguintes, atenção redobrada), faz-se necessário passar, mesmo que de forma breve, por demais elementos da narrativa. As personagens, importante salientar, são duas: fora o homem, há a velha, dona da loja de antiguidades. Ele com cigarro. Ela com chá (bebida que, volta e meia, aparece na produção lygiana 5), óculos e um grampo, acessório que ora prende o coque, ora serve para limpar as unhas. Um moço e uma senhora, destituídos de nomes, fato que evidencia um projeto textual não preocupado em especificar ou pessoalizar os agentes envolvidos na ação. O rapaz extrapola o aspecto puído do pano e experimenta uma perturbação resultante do amálgama constituído por ele e pela imagem representada no tecido. A velha, por sua vez, não transcende o comum, não dilata as narinas, não enxerga uma seta, apenas um buraco de traça. A dupla denota, por assim dizer, o herói demoníaco, indócil, e o mundo do conformismo e das convenções: deslocando a noção do filósofo Georg Lukács sobre o romance6 (associada à concepção de corpo social burguês. Ao longo do texto, também nos apoiamos em “Narrar ou descrever”, texto do autor publicado em Ensaios sobre Literatura (1968.))) para o âmbito contístico, soa aceitável pensar no sujeito como alguém incumbido da função questionadora (apesar de ser mais um participante do sistema), em oposição à perspectiva limitada da proprietária do estabelecimento. Ele se arrisca, joga-se no bosque, os cabelos empastados de orvalho, os pés na lama, perde-se, acha-se, perde-se de novo, todo dentro de uma sequência que o direciona a um dilema: sou o caçador ou a caça? Ainda que não haja uma submissão do herói à realidade (até porque se trata de uma prosa afeita ao mágico) conforme sinalizou Lukács, o paralelo firma-se em razão da ânsia perguntadeira do homem de Lygia, possuidor de uma incansável vontade de penetrar e descobrir o que está no interior da tapeçaria (e dele próprio). A dona do antiquário, considere a diferença, expressa a visão acostumada, aquela que não acolhe outros prismas: na parede, encontra-se um pano velho, velho igual a ela e às peças remanescentes, a poeira a sustentá-lo e nada mais. E você: dedica-se a ver para além do óbvio?
Em depoimento concedido à ensaísta Beth Brait, publicado no livro A Personagem (1985), Lygia comenta que o escritor tem que atuar como se fosse um vampiro. À medida que as personagens nascem na cabeça do autor, ela aconselha, deve-se escrever rápido, usufruir da quentura da ideia recém-parida, não esperar o amanhecer para que as letras se avivem. Essa urgência vigorosa combina bem com o ritmo exigido pelo gênero de “A caçada”. O conto, afirma a criadora de Seminário dos Ratos (1977), equivale a uma forma extasiante de sedução. Em outra entrevista7, a artista esclarece: “É como um condenado à morte, que precisa aproveitar a última refeição, a última música, o último desejo, o último tudo”. Da velocidade acelerada, advém outra marca do texto curto: a intensidade. Cortázar, no texto já citado, diz que intensidade, em um conto, consiste na eliminação de excertos intermediários, etapas de transição. O contista ataca as presas de modo ágil e veemente. As presas: a essência da história e o leitor, aquele que demanda a conquista sem demora. A dama brasileira, não restam dúvidas, utiliza vários recursos para conceber essa captura irresistível, a exemplo da estruturação do foco narrativo e do arranjo temporal em que transcorre o enredo. A trama estudada articula-se com suporte de um narrador em terceira pessoa, o qual conhece os meandros do protagonista e, em alguns trechos, revela os pensamentos do indivíduo zonzo, atordoado. No que tange ao tempo, é pertinente sublinhar que a dinâmica se desenrola em dois dias: no primeiro, o moço constata que a pintura ganhou nitidez e se nausea; à noite, em casa, funde-se ao breu, remoendo a experiência de fusão com a imagem; no dia posterior, logo cedo, retorna à loja e vivencia o abalo interno final. Há também a sensação de tempo dilatado sempre que o rapaz se enfia, progressivamente, no redemoinho de interrogações. Ele consegue identificar a cena colocada no tecido? O que está acontecendo? Não se esqueça de que o antiquário, morada da ação em análise, e a própria tapeçaria, item que desencadeia toda a voragem, ajustam-se a uma intrínseca percepção cronológica: o passado. Ambiente e artigo, portanto, potencializam a atmosfera vetusta que domina o conto. Desse modo, Lygia organiza camadas temporais: o cordão das horas (dia, noite, dia), o alargamento dos momentos conflituosos, o ar pretérito inerente à “butique de antiguidades” e ao objeto hipnótico.
Dado que o estabelecimento onde ocorre o enfrentamento mor (sujeito versus pano) veio à tona, detenha-se a ele, o recinto, um pouco mais. Que se refere a um antiquário, isso já é sabido. Um lugar, detalha a autora, com cheiro de uma arca de sacristia. Essa informação, entregue no início do texto, indica tanto uma alusão ao catolicismo (e, em uma chave ampla, a uma das raízes, velhas raízes, do Brasil), corroborada pela menção a São Francisco linhas depois, como o trabalho com o odor. Este, aliás, junta-se ao manejo do olhar e da cor (verde, o verde) e ao comando rítmico, gerando um tripé que Lygia coordena a fim de mobilizar o público, deixá-lo seguir o percurso delirante da personagem principal. E, com a personagem, cair, suar, indagar, ir, ir mais, abrir a boca, gritar, verter sangue. Mas, volte, volte à questão do espaço. A peça central fica no fundo da loja, tomando uma parede inteira. A escritora, parece, não escolhe essa posição por acaso: a literatura lygiana não perscruta as entranhas do ser humano? Não é lá nas profundidades que a artista sente as ligações? Pois então. Para chegar ao objeto, o homem teve que se dirigir ao fundo daquela área, estágio prévio em relação ao ingresso na pintura e em si mesmo. Do antiquário à tapeçaria, da tapeçaria ao vórtice do eu.
Verifique, à vista do que este ensaio propõe, que se avulta a possibilidade de entender como sendo três os eixos territoriais da narrativa enfatizada. O conto começa desta maneira: a loja de antiguidades. De pronto, a prosadora realça onde se dá a história. O ambiente físico, anunciado antes que qualquer outro componente, corresponde à parte intuitiva, evidente até, da tríade. Gaston Bachelard, filósofo francês, alertava em A Poética do Espaço: a descrição não é a única ferramenta de que dispõe um autor para caracterizar um local ou um utensílio. Tal qual Rilke8, Lygia Fagundes Telles mostra um cenário que preserva a memória do imemorial (expressão cunhada por Bachelard). E essa zona de lembranças que é o antiquário, observe, essa zona de lembranças acumula um infinito de emoções e referências, da curiosidade (do protagonista e de quem o acompanha frase após frase) ao passado de uma gente, conjunto encarregado de ser o gatilho número um do mistério e do fantástico. Obter o atributo do inusual depende ainda do irmanamento de demais espaços: o pano e o indivíduo. Ao passo que a situação reproduzida no tecido transborda, para o rapaz, o limite do ordinário, o leitor assiste à transformação de uma mercadoria desgastada em palco de um devaneio. A tapeçaria adquire, de certo modo, o status de lugar, chão por onde o sujeito corre, vereda por onde ele se encaminha rumo a uma touceira. O entrelaçado invade, de acordo com o juízo do cidadão, o piso, o teto, a loja, uma mescla da ambientação material com o campo figurativo – alegoria que estilhaça a lente alusiva, projetando-se para a concretude de uma pilastra.
Coluna que vira tronco de árvore. Planta que, escondida atrás de uma mancha verde, o incessante verde, ajuda a formar a enorme viagem empreendida pelo homem: a travessia do estabelecimento para a cena pintada e desta para a interioridade dele, dele criatura humana. Lygia não havia feito um convite a todos? Entrem comigo, ela falou. E, agora, completa-se o chamado: entrem na mente e no peito de um alguém que, absorto na própria mata, está no encalço de um elã identitário. Exercitar a visão que vai além, ultrapassar o ramerrão banal, atirar-se no incômodo da pergunta primeva: quem eu sou? Eu sou o caçador ou a caça? Eu sou o pintor? Quem sou eu? A tríade espacial fecha-se, segundo a proposta interpretativa aqui destrinchada, com a terceira esfera tomada pelo frenesi: o dentro da figura criada por Lygia. O último fundo para o qual a contista leva o seu público é o pedaço recôndito da personagem, região dos questionamentos que existe também em cada psique. Na construção desse trajeto, em suma, enredam-se motivos associados (elementos vitais para os nexos de causa e efeito da trama) e marginais (reforços periféricos que fortificam o significado maior do escrito)9 em prol da consolidação de planos que acolhem e escancaram o desamparo humano.
Desprotegido. Em “A caçada”, a artista estrutura um herói cuja jornada representa o tema do texto: furada a superfície, abandonado o útero de costumes e etiquetas (não largado, por exemplo, pela senhora), o sujeito realiza uma odisseia rumo ao núcleo do núcleo. Como o príncipe shakespeariano Hamlet, o protagonista anônimo (despido, pois, de um traço fulcral de identidade) interroga-se acerca de ser ou não ser – artesão, caçador, caça. Nessa espiral de indagações e fios e folhas, o rapaz está desarmado (eis a ironia elegante da grande dama: uma caçada em que o agente primordial não porta nenhuma arma). Desprotegido, assim se acha o homem querendo se achar. À busca, acrescente aspectos do sobrenatural (o bosque ocupando a butique, as serpentes enleadas em um nó de barba, o lábio gretado), fomentadores de leituras que se orientam pela ótica do enlouquecimento. O indivíduo endoidece? Ele mesmo sustenta que não: eu não estou louco. Será? O narrador alfineta: seria uma solução fácil. Certeza de martelo batido não se tem. No entanto, o que esta análise almeja sai do domínio das respostas rígidas. Não se pretende apontar se o moço vem a falecer, se o enredo reflete uma dimensão onírica, qual a risca sutil entre a denotação e a conotação dos signos movidos pela autora. De que jeito a seta, a seta e o seu assobio, acerta o sem nome? Não se sabe. E tudo bem. Os sentidos continuam em disputa, múltiplos. No que estes parágrafos apostam (rota que, veja, põe-se em consonância não só com a história trabalhada, mas, em uma acepção generosa, com toda a obra lygiana) é, efetivamente, no caminho: a procura pelo eu vale mais do que uma pretensa conclusão. Caça ou caçador? Ele, um homem, o homem, todos os homens, ele pode ser um tipo de caçada: ele é a caçada. Você compreende, enfim, o porquê de Lygia reconhecer personagens suas em pessoas com quem ela se encontrou vida afora? A escritora elabora uma tapeçaria de palavras: tece, tece, costura com linha dupla as feridas abertas, tece, tece e aguarda que o leitor entre no céu de tempestade. Depois? Depois de entrar no verde, resta apenas um verbo: caçar.
Notas