Contra a cultura do descarte: entrevista com Nicole McLaughlin

Para a artista, é necessário perceber as potencialidades de algo tido como lixo

“JanSport Capsule”, de Nicole McLaughlin

Imagine itens como um colete feito de bolsas de viagens ou bermudas feitas de sacos de bala: pois esse é justamente o tipo de trabalho que a norte-americana Nicole McLaughlin faz.

Descobri a designer no Instagram, talvez por meio dos stories de Allan Sieber (acredite: é possível conhecer muitos talentos nos stories de Allan). Na mesma hora que vi algumas fotos dos trabalhos de Nicole, fiquei fascinado: as suas criações misturam graça (a exemplo de um sutiã feito de espremedores de limão) e crítica – as suas produções, afinal, jogam luz em questões como desperdício de materiais, consumismo de moda desenfreado e valorização excessiva de marcas.

Nesse sentido, as obras dela se aproximam bastante da arte pop de nomes como Andy Warhol. Ademais, como são peças utilizáveis, há muito de performance em seus projetos, o que faz com que sua arte seja polivalente.

“Sandwich Shorts”, de Nicole McLaughlin

Quando surgiu a oportunidade de entrevistá-la, não tive dúvida, só certezas: queria conversar com ela, demonstrar o quanto admiro o seu trabalho. Mandei um primeiro e-mail e, depois de 25 horas, veio uma resposta simpática confirmando que Nicole responderia às minhas perguntas. O que posso adiantar é: trata-se de uma artista atenta aos nossos dias e aborda, de modo encantador e leve, temas como moda e ecologia. Confira!

Nicole, como você começou no universo de design de moda? Quando a arte e a costura entrarem em sua vida? 

Não sou uma designer de formação: comecei a fazer as minhas peças como uma exploração pessoal. Estava trabalhando como designer gráfica na indústria de roupas esportivas e enquanto, estava lá, fiquei surpresa com a quantidade de desperdícios que aconteciam durante os processos de criação, amostragem, abastecimento etc. Ao invés de jogar isso fora, levei um pouco dessas sobras para casa: separei-as e comecei a experimentar com elas. Era um hobby, o meu desafio de criatividade que se tornou um emprego de tempo integral.

“Toothpaste”, de Nicole McLaughlin

Muito de seu trabalho tem alguns aspectos de Andy Warhol e Claes Oldenburg. Quem são os artistas e designers que influenciaram (e influenciam) você? Por quê?

É legal saber que você vê traços de Warhol e Oldenburg no meu trabalho. Acho que isso vem da graça que tento inserir no que crio. Mas também incluo funcionalidade. Um item é menos suscetível a ser jogado fora se você puder usar ele. Desse modo, o meu foco é construir essa consciência. Para mim, é, às vezes, menos sobre inspiração e mais sobre apreciar o que os outros fazem dentro de seus campos – e, por esse motivo, cito Tom Sachs e Eileen Fisher.

“HermesVest”, de Nicole McLaughlin

Um pouco do seu trabalho consiste tanto em roupas feitas de peças e resquícios de marcas consagradas, como também é constituído de objetos contemporâneos e lixo (sacos de balas, caixas de suco, lâmpadas elétricas etc). Quanto do seu trabalho é uma roupa utilizável criativa e quanto dele é uma obra de arte focada em questionar o consumo exagerado e o descarte na contemporaneidade? Essa divisão que faço existe mesmo no seu trabalho ou tudo aqui é arte (ou roupas)?

Olho aqui para um panorama maior, que são os materiais: estou usando o que é prontamente acessível itens encontrados em brechós e latas de lixo. Tipicamente, são coisas que as pessoas consideram lixo, mas a ideia de lixo é objetiva. E, quanto à forma como o meu trabalho é caracterizado, deixo isso para os outros decidirem.

“JanShorts”, de Nicole McLaughlin

Quanto o humor e o ridículo são importantes na sua obra? Como você gerencia noções como um status de quase totem de algumas marcas e criações absurdistas (por exemplo, a jaqueta feita de luvas da Puma)?

Não acho que ridículo é a palavra certa, porém, certamente, há um pouco de humor. Humor é digerível: ele ajuda a derrubar barreiras, alcança tópicos que as pessoas não compreendem totalmente. Se você está atento quanto à sustentabilidade, isso pode virar só palavras. Pessoas precisam da ação. Tento, então, mostrar ao público o potencial e as possibilidades da ação através do meu trabalho.

Agora, sobre as marcas: elas vêm até mim em razão da minha perspectiva criativa. Não trabalho dentro de um quadrado e não me procuram para fazer isso. Você não consegue nada de novo trabalhando com pessoas que só compartilham da mesma mentalidade e não estão dispostas a desafiar o status quo. Seria como gritar para o vazio.

“Puma Goalie Jacket”, de Nicole McLaughlin

As suas criações também focam na reutilização de lixo, como bandejas de ovos, sacos, embalagens e similares. Quão importante é o debate ecológico no seu trabalho? Como essa questão influencia você?

Desperdício é uma imensa categoria de coisas. Nós precisamos religar nossos cérebros e aprender como dar valor ao “lixo”. Ao invés de focar no negativo, encontre potenciais. Sim,  uso bandeja de ovos e sacos Ziploc, mas essas coisas são reutilizáveis. Assim, como é que uma coisa reutilizável, que inerentemente tem um valor por conta da funcionalidade, vira lixo? Há uma questão maior: trata-se de uma crescente cultura do descarte, na qual jogar fora coisas boas é a regra. E eu odeio isso.

“Charger”, de Nicole McLaughlin

Você acha que, frente ao colapso ecológico dos últimos anos, a indústria da moda vai mudar? E como a arte pode contribuir para isso?

Quero ser otimista, pensar que veremos alguma mudança, porém há sempre o medo de que já seja tarde demais. Arte, como tudo o mais, pode fazer muito, mas precisamos medidas acionáveis. Precisamos de responsabilizações, regulamentações e multas mais duras para aqueles que se recusarem a mudar seus modelos de negócios. Precisamos de governos que se preocupam mais com pessoas do que com lucros. Não acho que aquilo pelo qual as pessoas estão brigando é pedir demais. Como que o desejo por um futuro melhor agora é um mau investimento?

“Shoe case”, de Nicole McLaughlin

Sou um escritor, por isso gosto de perguntar a todos que entrevisto: o que você tem lido?

Comece pelo Porquê: Como Grandes Líderes Inspiram Pessoas e Equipes a Agir (Start with Why: How Great Leaders Inspire Everyone to Take Action), de Simon Sinek, e Tudo o que Podemos Salvar: Verdade, Coragem e Soluções para a Crise Climática [em tradução livre, sem edição em português por enquanto] (All We Can Save: Truth, Courage, and Solutions for the Climate Crisis), editado por Ayana Elizabeth Johnson e Katharine K. Wilkinson. 

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

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