Ao ler mulheres LBTQIAP+, eu marco o meu lugar de existência

Foi a partir da literatura que o feminismo se tornou uma questão importante para mim. Apesar de ter sido leitora de Clarice Lispector na adolescência e meu livro preferido ter sido escrito por uma mulher (A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende), quando pensava sobre literatura, vinham à minha cabeça, majoritariamente, nomes de homens escritores.
O problema se agravava quando considerava a produção de mulheres racializadas e mulheres LBTQIAP+, ou seja, mulheres que estão fora da bolha heteronormativa-branca-cisgênera-rica-cristã. Não é coincidência que as obras de Carolina Maria de Jesus, Maria Firmino dos Reis, Conceição Evaristo, Cassandra Rios e outras tantas só estejam sendo levadas em conta muito recentemente.
Quando fazemos um recorte mais específico, como o da sexualidade, o apagamento se adensa. Regina Dalcastagné, em uma pesquisa de fôlego apresentada no livro Literatura Contemporânea Brasileira: Um Território Contestado (2012), demonstrou, em uma análise que envolveu 258 obras publicadas ao longo de 14 anos (1990–2004), que 72,7% da autoria era masculina. Quando se tratava de representatividade LBTQIAP+, apenas 3,9% eram ou apresentavam, por exemplo, personagens homossexuais, sendo que entre estes, 79,2% eram de homens gays.
Quando proponho um recorte sobre esse grupo, de mulheres lésbicas ou sáficas, estou fazendo uma referência à falta de representatividade dentro da literatura. Esses são os modos como a dominação masculina se manifesta e muitas pessoas sequer questionam essas estratégias de controle. As mulheres foram historicamente privadas de uma existência política e esse apagamento se agrava quando tratamos de grupos que escapam às normatividades impostas.
Até quando existe certa representatividade homossexual, esta prioriza os grupos masculinos, daí a importância de diferenciar a sexualidade feminina da masculina como reforça Adrienne Rich. Ao considerarmos a sexualidade das autoras, retiramos essas mulheres do lugar de não-existência e, principalmente, questionamos essa visão mística da arte (ainda seguindo o pensamento de Rich) que faz com que ela seja considerada como dom e vocação e a destitui de seu caráter político.
A literatura é política.
Ela demarca lugares sociais de poder. Ela exerce influência. Então, quando me perguntam porque estou tão interessada na sexualidade das autoras que leio, a resposta é muito simples: eu recuso o poder masculino. Eu recuso ler uma literatura que obedece a norma, que não contesta, que não apresenta outros modos de ser e viver.
Ao ler mulheres LBTQIAP+, eu marco o meu lugar de existência. Ao priorizar a escrita dessas mulheres, estou dizendo ao mundo: o seu projeto de nos apagar não venceu.
Estamos aqui.
Existimos.
Resistimos.
Aceitem.
Referências
DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura Brasileira Contemporânea: Um Território Contestado. Vinhedo: Editora Horizonte / Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012.
RICH, Adrienne. Heterossexualidade Compulsória, Existência Lésbica e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: A Bolha, 2019.
- Quem tem medo de uma escritora lésbica? - 19/09/2021