Produção e representação social do conhecimento no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

No MST, o conhecimento vem de fora para dentro: a partir das lutas e do coletivo, o saber é produzido, representado e socializado

Assentamento Fazenda Annoni do MST (Rio Grande do Sul, 1987) | imagem: Arquivo MST

Não é de agora que a criminalização dos movimentos sociais, principalmente do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), aparece de forma enfática na mídia tradicional e nas redes sociais. Essa discussão vem à tona a partir da necessidade de realização de uma reforma agrária popular, do direito e da distribuição igualitária pela terra, preceitos que estão expressos na Constituição Federal de 1988. É preciso enfatizar que esses preceitos não vêm sendo respeitados, sobretudo no que diz respeito à distribuição da terra como função social por parte do Estado. Nessa linha de raciocínio é que foi criado o MST, cuja atuação seria demandar um pedaço de terra para viver e trabalhar, realizando ocupação de propriedades de terra que estão em situação irregular, ou seja, que não cumprem a função social.

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Somado a esse processo de criminalização estava em curso, até o final de agosto de 2023, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito no Congresso Nacional que, em aparência, se dispôs a investigar a origem do MST, mas que, na verdade, teve como objetivo criminalizar as suas ações e verificar quem são seus supostos “financiadores”. No entanto, por falta de argumentos consistentes, provas concretas e da pífia atuação dos parlamentares de oposição ao governo federal vigente, a CPMI caiu por terra, embora o relator e o presidente da comissão, respectivamente, o deputado federal Ricardo Salles (Partido Liberal/SP) e o deputado federal coronel Zucco (Republicanos/RS), insistam na tese de que existem provas irrefutáveis sobre as ações, ditas por ele, “criminosas” por parte do movimento. Até antes da finalização das investigações, não foram apontadas provas materiais que pudessem afirmar que o MST comete crimes de “invasão”, termo utilizado de forma preconceituosa pela sociedade, o qual, pelo seu apelo terminológico, serve para criminalizar o movimento. O correto é chamar as ações do movimento de ocupações, sendo essas uma das estratégias políticas pacíficas adotadas pelo Movimento Sem Terra desde a sua fundação.

Ao final, foi possível identificar que o objetivo da CPMI não era apurar supostas irregularidades causadas pelo MST ao longo dos anos, mas, sim, manchar a imagem de um movimento que há quase quatro décadas tem por anseio a luta pelos direitos da classe trabalhadora sem terra, além de apresentar e evidenciar cada vez mais as ações criminosas do latifúndio e do agronegócio. Curiosamente, a CPMI foi composta majoritariamente por parlamentares ligados ao agrobusiness.

Dois depoimentos da CPMI mereceram destaque: primeiro, o do ex-militante e ex-líder do MST José Rainha, que atualmente lidera a Frente Nacional de Lutas (FNL), movimento que visa aglutinar as reivindicações dos trabalhadores sem terra e sem teto, e, segundo, o do coordenador nacional do MST, João Pedro Stédile. A presença desses dois militantes na CPMI, trouxe à tona a necessidade de se desmistificar cada vez mais a imagem do MST como um movimento social que realiza “invasões” de terras, que trava conflitos com latifundiários e grileiros, entre outros crimes imputados ao movimento de forma errônea.

Nos dias de hoje, o MST está presente em 24 estados brasileiros, com mais de 450 mil famílias que, mesmo acampadas e assentadas, continuam a se empenhar nas ações sociais, políticas e culturais do Movimento. O MST, sendo um dos maiores movimentos sociais do Brasil e da América Latina, além da luta pela reforma agrária popular, emancipação das mulheres, comunidade LGBTQIAPN+, comunidades ribeirinhas, povos originários, movimento negro, dentre outras demandas sociais, infere-se que a partir de suas práxis, produz conhecimento exógeno, isto é, constituído de fora para dentro, em que fatores externos condicionam a ação e a intencionalidade dos sujeitos políticos de produzir significados e manter o registro de suas lutas.

Vale lembrar que essa forma de produção do conhecimento é diferente da universidade, já que no âmbito acadêmico, em sua maioria, o conhecimento representa a invisibilidade social dos sujeitos que se encontram na clandestinidade científica e que clamam por visibilidade de suas lutas. Nas reflexões dos filósofos Michel Foucault e Noam Chomsky, a universidade é uma instituição ideológica que não tem por função social a produção do conhecimento, mas sim manter uma determinada classe social no poder, como as próprias elites que ditam o rumo da ciência.

Deslegitimada pela academia, a construção exógena de conhecimento do MST

O MST, desde seu registro formal em 1984, construiu sua unidade em torno de três objetivos: a luta pela terra, realização da reforma agrária e por transformações sociais mais amplas. As ocupações de latifúndios, possibilitadas pela capacidade de organização de uma multiplicidade de sujeitos sem terra, são marca fundamental da sua estratégia e método de luta. No entanto, as ações do MST não se limitam a apenas esses três pilares, mas abrangem outras ações que são imprescindíveis para a sobrevivência humana.

Acampamento Eldorado dos Carajás do MST (Alagoas, 25 de julho de 1996) | imagem: Arquivo MST

A formação do MST vem de um acúmulo da luta agrária resistente no Brasil ao longo dos anos e foi intensificada na década de 1950 e 1960 com a criação das Ligas Camponesas, Via Campesina, União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas (ULTABs), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master). Somado a isso, o MST tem como parceira a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), instituição responsável pela formação política e cultural de seus militantes e simpatizantes, sendo eles assentados, acampados ou não.

Embora a produção do conhecimento do MST seja advinda de inúmeras lutas travadas contra o poder estatal e o latifúndio, no contexto acadêmico, principalmente na universidade, esse tipo de conhecimento não é levado em consideração, visto que o discurso científico é de que o conhecimento para ser validado precisa ser produzido em instituições burocráticas. Mas a questão é que o conhecimento dessas instituições não representa as lutas dos trabalhadores e das trabalhadoras sem terra. Logo, fica evidente a necessidade de se analisar e compreender a forma como os sujeitos políticos (assentados e assentadas do MST) produzem e representam esse conhecimento.

No modelo de produção do conhecimento tradicional, seguindo as análises de Mario Bunge e Hilton Ferreira Japiassu, importantes epistemólogos do século XX, determinados critérios de cientificidade devem ser levados em consideração, como: objeto de estudo, método científico, leis científicas, teorias, principais pioneiros e teóricos, comunidade científica, escolas de pensamento, terminologias, sistema conceitual, base filosófica e perspectiva epistemológica. Nessa reflexão, fica evidente que a adoção de determinados critérios e modelos de cientificidade reforça cada vez mais a ação do sistema hegemônico no processo de produção científica. Bunge, em específico, ao comentar sobre o método científico como um elemento que condiciona a construção do discurso científico, entende que este não é nem mais nem menos a maneira de fazer boa ciência, natural ou social, pura ou aplicada, formal ou factual. E essa maneira pode ser adotada em campos que antes não eram científicos, mas que se caracterizam, como a ciência, pela procura de normas gerais.

Experiências de alfabetização do MST, no Maranhão | imagem: Arquivo MST

A partir de uma relação sociointeracionista e construtivista, seguindo o raciocínio de Jean Piaget (um dos grandes pensadores da pedagogia), a construção do conhecimento que ocorre no MST pode ser descrita como exógena, ou seja, a práxis cultural e o modelo de construir o conhecimento realizada pelos assentados e assentadas determina como esses processos procedem. Desse modo, a produção do conhecimento é constituída de fora para dentro; na medida em que o acúmulo de lutas se intensifica, o MST, de forma auto-organizativa, estabelece critérios de produção, representação e socialização.

Assim, com base na reflexão do educador e historiador, especializado em Educação do Campo, Jean Marcel Caum Camoleze, a práxis cultural, ou seja, a ação dentro do MST consiste em uma construção social e coletiva, na qual suas ações, técnicas e práticas intelectuais desempenham funções nucleares na produção e representação social do conhecimento, tornando-se, muitas vezes, fontes de pesquisas para responder às indagações e os anseios da sociedade em geral.

A arquivista teórica Luciana Duranti afirma que o ato de produzir um conhecimento está associado ao actio, caracterizado pela intencionalidade de agir sobre um determinado fato/contexto; por sua vez, essa ação gera a conscriptio, ou seja, o registro e a documentação desse conhecimento, que tem por função a disseminação do saber e a preservação da memória. No caso dos movimentos sociais, a criação e o registro de uma ação é internalizado como algo inconsciente, uma vez que esses movimentos não levam em consideração a obrigatoriedade de materialidade do conhecimento para a manutenção de uma determinada classe social no poder, como é preconizado pelas instituições do saber. Pelo contrário, o objetivo é a representação, a mediação e a preservação da memória, a realização de um registro das lutas e da evidenciação dos trabalhadores rurais na conquista de seus direitos fundamentais. Os conjuntos de documentos, esquemas de representação que condicionam a significação, também constroem memórias, produzidas como ato simbólico de perpetuação ou ressignificação de discursos sociais a partir dos registros do conhecimento custodiados nos acervos documentais e que necessitam ser mediados.

A partir do actio e da conscriptio, isto é, a produção e a representação social do conhecimento, ocorre o que podemos denominar de mediação, em que, a partir de um processo de interferência humana, se materializa e se condiciona a ação, mesmo que de forma simbólica. O processo de construção, representação e de mediação do conhecimento, se faz presente nas lutas do MST, seja em um ato político, manifestação política, ocupação de terras e latifúndios improdutivos, na produção de alimentos agroecológicos ou em suas mais diversas formas de manifestações simbólicas e que estabelece formas de romper com o sistema hegemônico e com paradigmas vigentes .

No sentido geral, no contexto dos movimentos sociais, a construção do conhecimento é evidenciada pelo conflito político entre os grupos sociais e o Estado, que estabelece uma correlação de forças políticas, em que, de um lado está o poder estatal e do outro um grupo que reivindica suas lutas e direitos. Assim, o processo de construção do conhecimento no MST, embora não seja legitimado pelo discurso científico, se dá por meio das lutas, da resistência e do sentido de que as estratégias e os ideais necessitam de uma dinâmica social sedimentada na luta dos trabalhadores rurais sem-terra, bem como em outros movimentos sociais que anseiam por uma sociedade mais justa, igualitária, inclusiva e democrática.

Autor

  • Bacharel em Arquivologia, mestre e doutorando em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Membro do Conselho Científico da revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília (RIPPMar) e do Journal of Sustainable Urban Mobility (Josum). Pesquisa arquivos de movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos. É militante do Partido dos Trabalhadores (PT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

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