Existe Filosofia Europeia? | A filosofia é contracultural e mesmo antinacional

Como poderíamos pensar em filosofia europeia se em boa parte a filosofia questiona essa cultura europeia?

imagem: FotoGuy/Wikimedia Commons

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Ao ver a chamada de textos e a pergunta se existiria filosofia europeia, a primeira coisa que eu pensei foi: “E existe filosofia de qualquer lugar?”

Claro, talvez essa relativização possa soar um pouco extrema. Hoje em dia se fortaleceu o estudo de filosofias étnicas, se podemos chamar assim, e são mesmo iniciativas importantes. Meu primeiro contato foi com a filosofia oriental (mais especificamente a filosofia indiana), ainda na universidade. Depois disso vi se popularizar a filosofia africana, até pela atuação do movimento negro. E, claro, já estávamos nesse ponto, então “por que ninguém fala de uma filosofia brasileira?!” era o que eu via os colegas se questionando. Mas eu não queria fazer filosofia brasileira, eu queria apenas fazer filosofia.

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Eu tinha muito interesse no conhecimento em si, em tentar entender as coisas. Sempre me pareceu por isso que era algo estranho ou arbitrário pensar o conhecimento por um viés geográfico. Ora, se eu queria entender um assunto como, digamos, a ética, então eu não via porque me limitar a buscar apenas referências brasileiras. Eu iria querer buscar qualquer referência que fosse relevante para entender o assunto. Entretanto, nesse ponto muitos poderiam me apontar: “Mas quando fazemos isso o que ocorre é que não por coincidência nós sempre buscamos as referências europeias”. Mas será que buscamos mesmo?

Se formos revisitar a história da filosofia como ela é contada por padrão, encontramos muitos filósofos europeus, outros poderíamos dizer que “nem tanto”. Algumas figuras no pensamento não encaixam tão bem no estereótipo de cristão europeu dominante, mesmo os que viviam na Europa. Sempre teve autores que eram estrangeiros em seus países ou que não eram cristãos (ainda que boa parte fosse). Spinoza era judeu, um grupo por toda a história perseguido na Europa, e mesmo entre os judeus ele foi excomungado por sua atuação intelectual (pelo que se diz, havia um temor justamente pela perseguição e não queriam associar sua comunidade àquelas ideias, até por motivos de segurança). Santo Agostinho, conhecido pai da Igreja, um dos símbolos máximos do cristão na filosofia, era ele mesmo de origem africana (e provavelmente negro). Que dizer então da filosofia antiga?

Numa versão mais superficial, muitos dizem que a filosofia nasceu na Grécia. Isso é algo que aquela filosofia étnica já, com razão, questiona. Houve filosofia anterior. Os gregos aprenderam muito com a filosofia indiana e com a filosofia egípcia. De fato mesmo a versão européia mais oficial – do modo que aprendi na graduação em filosofia bastante tradicional do departamento da USP – afirma também que a filosofia nasceu de um choque cultural. O que o professor de filosofia antiga me contou é que os gregos começaram a fazer viagens para outros países, conheceram povos diferentes, e inicialmente houve um choque. Eles tinham costumes e crenças diferentes, rezavam para outros deuses, lidavam com seus mortos de modos que para um grego seria tabu (e perceberam que o modo dos gregos igualmente seria tabu por lá). Munidos desses relatos os gregos começaram a questionar a sua cultura e crenças, já que não eram as únicas disponíveis, e se elas deveriam ser mesmo a referência para conhecer o mundo. Então surgiram os filósofos com a proposta de entender a natureza não pelas narrativas sobre os deuses, mas de uma posição racional, desencantada.

Verdade ou não, essa narrativa sustenta muito do que se entende por filosofia no mundo ocidental. A Europa se apropriou da filosofia grega, a viu como sua, e entende o seu nascimento como um rompimento da Grécia com ela mesma. Isso sem nem falar que a própria ideia de uma Grécia puramente europeia e ocidental está em xeque, pois o país sempre fez fronteira com o que hoje chamamos de Oriente, sempre se influenciou, e seria muito mais um meio do caminho que um país ocidental propriamente. De todo modo, a noção da origem da filosofia como questionadora da cultura anterior nos ensina uma coisa: a filosofia é essencialmente uma atividade contracultural e mesmo antinacional.

A busca do conhecimento na filosofia se dá questionando todos os limites, todas as fronteiras. A atitude filosófica pressupõe romper amarras. Quando alguém diz “a filosofia do seu local é isso” ou “você deveria fazer uma filosofia brasileira assim”, o bom filósofo iria antes de tudo questionar e se rebelar. Claro que pensamentos nacionais existem, são construídos, e muitos autores por livre vontade se engajam neles, mas não parece ser o papel da filosofia apenas acatar um projeto já decidido para ela, talvez por motivos ideológicos. Desse modo, como poderíamos pensar uma filosofia europeia se em boa parte a filosofia questionava essa própria cultura europeia? Estaria Spinoza pensando em criar uma filosofia da Europa cristã quando escandalizava a Igreja? Ou Galileu e Bruno antes dele, perseguidos pela inquisição? Ou Sartre, ou Foucault, estariam engajados pela França e um ideal europeu? Eles queriam apenas buscar o conhecimento. Se isso resultava em um pensamento para seu país, era consequência, não motivação. Alguém conseguiria afirmar que o marxismo, com sua visão internacionalista e questionadora de toda a organização social vigente, quer uma filosofia europeia, com todo o peso que isso carrega?

Ainda assim, tomado tudo isso como verdade, ainda temos um cenário em que uma filosofia europeia se exporta para o resto do mundo. Existe toda uma tradição, legado desses autores. E essa tradição é ensinada muitas vezes como a versão oficial da filosofia, relegando os pensamentos de outros países (por vezes nem reconhecidos como “filosofia”) aos bastidores, ou como uma galeria de curiosidades. Apontar a fraqueza da noção de uma filosofia europeia não faz essa realidade social das universidades de filosofia desaparecer.

Cabe, entretanto, questionar que tipo de filosofia se apega a um modelo rigidamente europeu e que tipo não se apega. No Brasil nós temos um modelo tradicionalista que nos foi implantado por uma missão francesa, que oficialmente “trouxe” a filosofia para o Brasil. Esse modelo é particularmente apegado ao estudo histórico e de autores clássicos. Ao unir o enfoque em erudição clássica e uma colonização explícita de um país europeu sobre o nosso pensamento é natural que aprendamos a ler os europeus quase que exclusivamente. Mas o modelo francês não é o único.

Concorrente a este modelo e de outros países surgiu uma alternativa mais questionadora do tradicionalismo. Em um período de desenvolvimento da filosofia num modelo organizado como temos hoje, em períodos históricos de valorização do nacionalismo – com a unificação dos estados nacionais da Europa, em que a filosofia de vários países com língua e cultura em comum queriam ser reconhecidos como filosofia alemã – passou a se consolidar modelos de pensamento de países, e a se apontar com anedotas prontas que os franceses pensavam de um modo, os alemães de outro e os ingleses de um terceiro modo. Mas os ingleses não estavam satisfeitos em pensar a filosofia como um modelo de tradição de países, e seus filósofos começaram a propor uma filosofia analítica. Como eles estavam na “ilha” (Grã Bretanha), passou-se a chamar a filosofia que não era analítica de filosofia continental.

A questão é que o modelo em que se tem uma imposição do pensamento europeu, do tradicionalismo e do estudo de autores clássicos que por coincidência sempre residiam na Europa, esse modelo é o modelo continental. A filosofia analítica se propõe a, ao invés de estudar autores, focar nos problemas filosóficos, nos temas. Ao estudar ética, eu não preciso me preocupar em estar estudando apenas um clássico europeu porque eu não vou ler Kant, mas vou ler um artigo ou livro atual inserido no debate internacional sobre ética que está ocorrendo neste momento. É um modelo menos de retorno incessante ao passado e mais de diálogo atual. Nesse modelo a filosofia europeia é uma não-questão. O debate internacional é aberto para filósofos do mundo todo, e de fato em anos recentes cada vez mais vemos minorias e intelectuais de países mais pobres integrando esse debate. Na filosofia analítica temos o reconhecimento de filósofas mulheres como Susan Haack, filósofos da índia como Amartya Sen, e tantos outros. Porque a nacionalidade e o prestígio de um grupo social dominante não é o foco, todos podem adentrar ao debate seguindo o modelo de pesquisa.

Claro, nem tudo são flores. As possibilidades de participação em um meio elitizado como o estudo acadêmico vai ser com certeza impactada pelas condições econômicas do mundo real. E com certeza os países mais ricos terão mais condições de treinar mais filósofos e investir em suas pesquisas, resultando em que eles ainda assim vão estar muitas vezes na dianteira em quantidade de filósofos reconhecidos. Isso é uma limitação decorrente da organização política e social do mundo, e para mudar isso é necessário o combate à desigualdade e o desenvolvimento econômico dos países pobres, levando essa liberdade (como queria Amartya Sen) para os residentes desses países.

Aqui entra também uma questão que pode ser delicada para alguns. Se a filosofia analítica não se importa com essas barreiras geográficas (apesar de contraditoriamente chamarmos os não-analíticos de “continentais”, um referência geográfica), então isso irá implicar que ela não vai igualmente se importar com a filosofia tradicional de outros povos? Mais ou menos. Os filósofos analíticos atuais demonstram sim um interesse em conhecer as perspectivas de filosofias nativas e de tradições orientais. Existem estudos de etnofilosofia voltados para isso. A questão é que na analítica o debate se pauta por critérios lógicos e argumentativos, por metodologias. Ou seja, não se vai adotar como verdade uma filosofia apenas por predileção ou por identificação com um povo. Talvez alguns continentais se sentissem confortáveis em pensar que “eu entendo o mundo através da filosofia chinesa”, mas para o analítico essa filosofia chinesa estaria em debate, assim como qualquer outra. As teses dela são muito bem-vindas e podem ser novas inspirações que vão trazer teses e movimentar o debate, mas ainda assim elas estarão sujeitas ao escrutínio da academia e do debate internacional, podendo ter as teses rejeitadas, por exemplo. Do mesmo modo um analítico não tem qualquer pudor em rejeitar totalmente as teses de um Descartes, um Kant, ou quem quer que for. Ainda assim, o conhecimento de novas culturas é sempre enriquecedor, porque a limitação de um local pode impor vieses para o pensamento mainstream e uma cultura diferente pode trazer pontos de vista que não estavam sendo considerados no debate apenas por não estarem disponíveis. Quanto mais diversidade mais forte esse modelo se torna.

O que podemos concluir desse debate é que a noção de uma filosofia europeia já é de toda artificial (mesmo historicamente), e que um modelo de estudo de filosofia menos tradicional não se deixa impor por esse viés geográfico e cultural. Isso naturalmente vai tornar o modelo analítico de saída mais democrático e acessível a diferentes povos. Você não precisa ser um famoso europeu para criticar um famoso europeu, você pode ser um jovem de um país pobre publicando um artigo com uma ideia inovadora ou uma crítica inesperada. Os europeus podem ainda estar em destaque, mas estão em decadência. Quem sabe um dia a predominância desse pensamento geográfico na filosofia mundial não será apenas um acidente histórico?

Autor

  • Bacharel em filosofia, largou um mestrado em filosofia da ciência. Teve formação bem tradicional, mas fugiu para a filosofia analítica. Possui interesse em diversas áreas filosóficas, questões políticas, sociais. Entusiasta da ciência no geral, da economia, e do bom diálogo aberto e democrático com o diferente. Atualmente, está mudando de área de atuação, estudando programação e tentando escrever romances no tempo livre.

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