Desencobrindo o Outro do Descobrimento: Enrique Dussel e os Povos Originários

O filósofo evidenciou a violência da colonização e exibiu um horizonte de libertação para os povos da América Latina

“Nos rostos e feições de indígenas, de escravizados africanos, de mestiços, de criollos, de camponeses, de operários e de marginalizados, Dussel vê a constituição do povo latino-americano do bloco social dos oprimidos que irá criar sua própria cultura.” | imagem: Secretaria de Cultura da Cidade do México

Em 5 de novembro de 2023, “ancestraliza” o destacado professor, filósofo, escritor Enrique Dussel, deixando-nos, todavia, um imenso legado bibliográfico e investigativo cujas perspectivas teóricas surgem incontestes de uma praxe histórica, constitutiva à formação dos povos ibero-americanos.

Entretanto, doravante o que nos servirá de guia, oriente e horizonte é sua obra máxima: 1492: O Encobrimento do Outro.

Os motivos que derivam nessa escolha são o processo teleológico que envolve o conceito de “desencoberta” de um “outro” que ainda parece-nos distante e até mesmo desconhecido, mas que sabemos que está aí, existe e, sobretudo, resiste, reexiste, retoma e retorna o ensejo de resgate daquilo tudo que lhe foi retirado à força das circunstâncias dessa história, ainda que contada desde a perspectiva eurocêntrica.

Esse “outro” se refere aos povos originários de Abya Yala/Pindorama, nomenclaturas essas que devêm de um consenso entre os mais de 800 povos da América Latina, que compõem a maior densidade demográfica indígena do planeta. O Brasil é o segundo país das Américas com o maior percentual de indígenas na composição de sua população, com mais de 300 povos e 275 línguas-vivas.

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Ao termos essa “aproximação” e essa “proximidade” com a obra de Dussel, navegamos em oceanos antes intangíveis, remando em direção às origens ancestrais dos milhares de povos indígenas que sobreviveram ao embate colonizador do expansionismo ocidental. Esse retorno – por chamá-lo assim – possui vértices culturais e/ou espirituais. Porém, seu indicador comum consiste em evidenciar a contingência subjetiva que diferencia dois mundos abalroados por fatos até então imprevisíveis. Em termos históricos, é pertinente ao que aconteceu durante os cinco séculos de “grande” colonização e que, a partir desse princípio, durante o percurso e, na medida em que, aprofundando o conceito de “outro”, mergulha no denso inconsciente psicológico que permeou o pensamento do homem cristão-medieval e, consequentemente, a passagem para o homem moderno-colonial. O imbróglio a destrinchar é justamente o tema do “outro” em tanto diferença e em tanto pertencente ao mito fundador da modernidade. Esta é uma categoria-chave da crítica que o grande campo intelectual “pós-moderno”, inspirado na filosofia de Nietzsche e Heidegger, utilizaram para colocar em xeque a pretensão de racionalidade e universalidade que, noutro ângulo, também outros autores como Foucault, Derrida, Deleuze, Vattimo ou Rorty acusaram-na de impostora.

O trânsito entre o Velho Mundo em direção ao desconhecido funda o Novo Mundo, nessa passagem uterina dá à luz a História o grande acontecimento que viria mudar os destinos da Humanidade. E, nessa esteira, surge a contrapelo da historicidade aquele Outro que não se terminou de ceifar, de apagar, de silenciar, senão que dentro desse processo que coloca no convés da embarcação a visão descolonizadora desse mundo pretenso dentro de uma outra perspectiva fundadora, a saber, a alteridade.

É esse acontecimento que funda a construção do Outro no âmbito ontológico: penetra no cerne da terra o madeiro da cruz, modelo de fé, legitima a posse do senhor do absoluto, legaliza as ações e produtos que vão se perpetuando na medida em que a moral institucional incorporam-se nos espíritos, nos corpos e nas carnes daqueles inferiorizados ontologicamente. O Ego Conquiro, transformado em pátria potestade, vai impondo a marca registrada muito aquém e além das inferências determinativas no bojo das hierarquias e o poder de influência, poder de decisão de acumulação e, portanto, de autoridade. O Ego Cogito pensa sua conquista e se refere somente a quem tem como pátria potestade os elementos-chaves desse processo ambientado na forma lógica do sistema privatista, detém o auto-reconhecimento do ser do absoluto, impõe marcas indeléveis na História linear, reduz o Outro a um mero aspecto figurativo esvaziado de conteúdo e passa a ser então, o enigma deontológico durante o processo de (de)formação dos indivíduos que contribuem religiosamente com a re-produção da ideologia dominante em curso.

Para ao filósofo e teólogo argentino-mexicano, peregrino de sua própria convicção em tanto pensador da alteridade, a modernidade tem um conceito emancipador racional que deve ser defendido. Mas também cria, desenvolve e oculta o “mito irracional” de justificação da violência sobre os diferentes, que deve ser negado e superado. Na obra supracitada, Dussel procura desvendar exatamente o nascimento deste mito sacrifical irracional que é inseparável da constituição da própria modernidade e que sempre fez dos latino-americanos vítimas da modernização capitalista. Nesse ensejo é que abre as portas para a descolonização, processo que envolve a consciência dos colonizados como parte que se institui pela formação de outros mitos que surgem com a modernidade. É o caso da modernização como atualização do mito da modernidade e os conceitos de progresso e desenvolvimento que vêm para pactuar os dois lados confrontados com uma mesma e só história.

Dir-se-ia que a obra de Dussel funda a Filosofia da Libertação amparada nos construtos semânticos e categorias ontológicas, abrindo um leque de possibilidades e de probabilidades de reconstrução dos mundos que foram arduamente avassalados pelo rolo compressor da civilização moderno-ocidental. Quanto a proposta da decolonialidade, por exemplo, intimamente imbricada na obra 1492: O Encobrimento do Outro, a figura filosófica se inscreve dentro de um parâmetro que sugere uma sequência de formulações que convidam o/a leitor/leitora a perscrutar essas vias fluviais, se internando em rios, igarapés, baias e portos seguros; cria retóricas e sinais imagéticos, transportando-se no tempo e gerando um fluxo imaginário nunca antevisto. Imaginemos por um momento o “primeiro encontro” após o desembarque em Guanahani (atual Bahamas) e os nativos “aparecendo” dentre folhagens, mata virgem e uma fauna considerada até então, parte da ambiência. Todos se encontram, se desencontram e se descobrem, entretanto, um dos lados não se percebe indo ao esse “outro” desconhecido já que a subjetividade em que se inscrevem está impermeabilizado no sistema de crenças que fizeram do absoluto o ser imaginário que se assentaria em terras de Abya Yala, mudando radicalmente o curso dos acontecimentos.

O reconhecimento é adverso ao encobrimento.

Da falsa ilusão da modernidade e da emancipação brotam as florestas com voz e acentos próprios, os rios e seus afluentes com sua caminhada que lhe é própria, a mãe-terra como gestora e cofundadora de uma cosmo-esfera e o pé que sulca essa terra, que caminha sobre a superfície dela e que lega atribuições espirituais e materiais nessas corporeidades ressurgentes que assumem o papel ancestral de santuário sagrado, de um movimento multiétnico e até mesmo de resgate linguístico, já que uma língua-viva, significativamente, é a retomada ancestral dos modos de ser e de viver indígenas.

O Outro agora fala, escreve, argumenta, arregimenta, discorda, desenha e resiste; se regozija e assume o papel protagônico da história negada; conta sua história dentre milhares de histórias que compõem a pluridiversidade de mundos. No interregno de dois mundos, surgem outros mundos possíveis em tanto mundos que referenciam espiritualidades diversas, culturas múltiplas, subjetividades que sugerem singularidades próximas de um sentimento em comum, isto é, rompe com o quadrante da individualidade. Irrompe no cenário a figura do eixo comunitário onde estão envolvidas todas as espécies de seres vivos que são parte integrante e não exclusivo das singularidades. Quebra definitivamente o elo cartesiano que une o Ego Cogito ao Ego Conquiro.

O Indígena é, pois, o elemento-chave que reúne todos os outros elementos que conformam esse escopo da “desencoberta”. O mérito desta obra impregnada de domínio íntegro do saber aliado à honestidade intelectual do mestre Dussel é a autenticidade dos fatos históricos que abrem portas e janelas para as atuais lutas, embates e debates que aproximam a história às circunstâncias políticas do nosso tempo. É o elo entre um passado ainda em processo de desvendamento e o Futuro Ancestral, parafraseando o título da obra do pensador indígena Ailton Krenak, igualmente, fruto dessa “desencoberta”.

Essa obra como nenhuma proferida em Frankfurt por ocasião do quinto centenário da chegada de Colombo ao nosso continente analisam as consequências da passagem da Europa Ocidental, até então periferia do mundo árabo-muçulmano, à condição de centro de um mundo que teria não apenas a América, mas logo também a Índia e a Ásia sob seu domínio. A consciência do novo lugar da Europa no mundo desenvolveu-se no confronto com o seu Outro, quando controla, vence, violenta o não-europeu, o indígena. Define-se, assim, um ego descobridor, conquistador, violento, patriarcal, colonizador da alteridade constitutiva da própria modernidade, que 150 anos mais tarde, seria teorizado filosoficamente por René Descartes no Discurso do Método, obra de 1636.

A primeira parte da obra do professor Dussel percorre as figuras que vão constituir-se na relação dos europeus com os “americanos”, com o Outro como dominado, como periferia atrasada controlada a ferro e fogo pelas metrópoles através das figuras das Coroas de Leon y Castela e de Aragão e, logo mais, pelos diferentes reinados lusitanos após a independência de Portugal em 1640. Essas figuras propiciarão a formação na Europa da subjetividade moderna. Lugar de destaque na sistematização teórica de uma visão de mundo eurocentrista cabe a Hegel, que apresenta os povos não-europeus como desprovidos de direitos perante aqueles que têm um “direito absoluto” por serem portadores do “espírito” naquele “momento do seu desenvolvimento”, Sob formas diferentes, ela sobrevive ainda hoje na falácia desenvolvimentista, que apresenta os outros povos e culturas como atrasados ou incompletos, como vítimas a serem imoladas no altar do progresso modernizador, isto é, o poder sacrifical.

A narrativa de Dussel acompanha a “invenção” do “ser-asiático” da América por Colombo (que só existia na imaginação dos europeus renascentistas) e sua mudança para a figura da “descoberta” de um Novo Mundo por Américo Vespúcio. Negado em si mesmo, o indígena imediatamente é encoberto como o Outro e, conseguintemente, negado, silenciado, proscrito e apresentado como “bárbaro”, desprovido de toda e qualquer identidade e sujeito de direito face ao “civilizado”. Isso legitima a conquista como práxis de dominação de pessoas e povos denegados e invisibilizados. Algo similar ocorre quando das cartas de Pero Vaz de Caminha, que apresenta o Outro como o “pardo”, constituindo-se semanticamente dentro das regras subjetivas com as quais os europeus daqueles séculos viam aquele Outro, diferenciado em sua forma espiritual e material de ser:

“O conquistador é o primeiro homem moderno ativo, prático, que impõe sua individualidade violenta a outras pessoas, ao outro.”

Estabelece-se, assim, uma nova relação, violenta, militar, disciplinar de corpos e mentes do “ego” europeu com o estrangeiro absoluto, relação em seguida desdobrada em colonização, em “conquista espiritual” e, finalmente, apresentada pelas elites coloniais como “encontro” de dois mundos ocultando o abalroamento mencionado nos parágrafos anteriores na figura das “águas” como em Tristão e Isolda ou nas impressões dos loucos foucaultianos em História da Loucura.

O genocídio de um dos mundos e a subsequente dominação, dominação que se traduz em outros cídios que procedem aos próprio genocídio: ecocídio, biocídio, arboricídio, similares, será a marca d’água de um mesmo e só processo. Daí que a colonização do Brasil embora tardia, subjaza ao primeiro período “civilizatório” apenas em seguimento, andamento e consequente dominação absoluta dos territórios. Basta abrir o livro de Warren Dean A Ferro e Fogo: história da devastação da Mata Atlântica, em que o autor apresenta, como simbolismo dessa dominação iniciada por Pedro Álvares Cabral, o corte da primeira árvore para a construção da primeira cruz dando ensejo e abertura à primeira missa celebrada no Brasil.

A dominação que se traduz nessa “guerra justa”, nessa “violência justificada” exercida sobre o Outro é apresentada como emancipação, como “utilidade”, como “bem” do bárbaro que se civiliza, que se desenvolve, que se “moderniza”. Este mito da modernidade acomete o inocente, “declarando-o causa culpável de sua própria vitimação e atribuindo-se ao sujeito moderno plena inocência com respeito ao ato sacrifical”.

O sofrimento do conquistado, aquele colonizado, subdesenvolvido, quase subumano, será o sacrifício ou o custo necessário ao próprio processo de modernização e desenvolvimentismo. Não por acaso é possível perceber o discurso que carrega o neoliberalismo dirigindo-se às “vítimas do progresso”, aos excluídos do mercado, não acidentalmente a imensa maioria da população de nossos países, tratando-os como “culpados” de sua própria ineficácia. Em tanto foram lhes dadas as lições necessárias para que se comprometam com sua civilização, esses não assumem o compromisso, são negligentes, preguiçosos, faltos de maturidade, infantis, despojados de fé cristã e, no fim, condenados na eterna fogueira do castigo secular. A narrativa cumpre o ciclo que lhe foi cominado a praticar mediante os numerosos concílios, que além de deturpar espiritualidades de outros lugares do mundo e universalizando a unicidade da fé religiosa que atemoriza os colonizados, estes acabaram incorporando essas ideias à sua própria subjetividade torando-os reféns de si mesmos.

A figura do Cristo crucificado justificou as torturas de Torquemada durante todo o período que durou a Inquisição, o primeiro tribunal da modernidade. O mito sacrifical da modernidade agora é arregimentado pelas leis e o direito romano que dá plena potestade para que os juízes fizessem o papel de procuradores para banir todo aquele Outro que não se dispõe a seguir os mandamentos dessa justiça que envolve um ser divinal que todo o vê, todo sabe e todo julga e cujos emissários diretos dessa figura divinal pudessem manter as leis rígidas que castigam os infiéis.

Este discurso já tinha sido “desconstruído” e denunciado no próprio século XVI por alguém que servindo a essas premissas conquistadoras, se opõe ferrenhamente a elas, no caso, o frei Bartolomeu de las Casas em Breviário das Índias Ocidentais. Com base na relação de negação do outro, nenhum verdadeiro diálogo tornar-se-ia possível. Dussel elucida admiravelmente isso na sua oitava conferência, relatando o único diálogo que poderia ter ocorrido, no contexto da conquista e colonização, entre doze missionários franciscanos “modernos” e os últimos “tlamatinime“, os sábios mexic, mostrando-o como um abalroamento de universos incomunicáveis.

Nos rostos e feições de indígenas, de escravizados africanos, de mestiços, de criollos, de camponeses, de operários e de marginalizados, Dussel vê a constituição do povo latino-americano do bloco social dos oprimidos que irá criar sua própria cultura.

Mas “dificilmente” – lembra o autor – “esse povo pode realizar a modernidade da qual sempre foi a parte explorada, oprimida, a outra face que pagou com sua morte a acumulação do capital original, o desenvolvimento da centralidade geopolítica”. Por isso, o projeto libertador na América Latina é uma tentativa de superação da modernidade, não no sentido pós-moderno, mas como um projeto de racionalidade ampliada, em que a razão do Outro tem lugar numa comunidade de comunicação na qual todos os seres humanos possam participar como iguais, mas ao mesmo tempo no respeito a sua alteridade, ao seu ser-outro.

A vastíssima obra desse pensador que pensa a posterior conquista e colonização de corpos e territórios de Abya Yala (América Latina), abriu um precedente até então desconhecido: a figura histórica protagonizada pelos deserdados da terra, permitindo-lhes sustentar o tripé desse novo processo de libertação, uma guinada decolonial e descolonizadora rumo a uma outra etapa da existência terrena no âmbito espiritual e material (leia-se materialismo histórico) que inclua os Outros não mais como Outro, senão como parte de uma multiplicidade de formas de se estabelecer no mundo.

Se o ser humano é o ser supremo para o próprio ser humano, o que deveria estar no construto dessa nova etapa socioambiental e sócio-histórica, ainda que numa transição dolorosa, é a possibilidade de que todos os mundos se abram e sejam contemplados não mais à imagem e semelhança do Uno, senão de pluriversalidade de opções, cujas reivindicações e demandas estejam no bojo da justiça histórica em termos de reparação, da justiça territorial, em termos de restituição dos mesmos e na justiça comunitária, isto é, a recomposição dos modos de ser e de viver ancestrais e que essas se comprometam a reformular o tipo de sociedades nas quais queremos e desejamos conviver, coexistir e coabitar sem o lacre de uma modernidade que, nas palavras de Anthony Giddens:

“Não é a crise do capitalismo como modo racional de gerenciamento econômico que acabou por dominar a nossa era. É, sem dúvida, a crise ecológica em torno da qual muitas tensões – mas também muitas possibilidades estão, hoje, agrupadas. A crise ecológica é a crise de uma modernidade danificada..(…) recursos não são recursos, nunca o foram, nunca o serão….”

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