Todorov: Comunismo e Neoliberalismo – irmãos?

As similaridades entre duas correntes de pensamento que se querem opostas: o comunismo e o neoliberalismo

Um trecho de Os Inimigos Íntimos da Democracia, de Tzvetan Todorov:

(…) observando-se os diferentes elementos da doutrina neoliberal, somos levados a perguntar-nos se a oposição entre esses dois modelos de governo é sempre tão completa quanto acreditam os que a formulam.  (…)

Vários comentaristas já insistiram quanto à singular concepção de história que constitui a base das doutrinas neoliberais. Como vimos a respeito de [Frédéric] Bastiat, elas postulam que, se os homens simplesmente não se metessem a impedir o curso natural das coisas com seus projetos e seus planos, tudo iria da melhor maneira no melhor dos mundos. Esse curso natural consiste na ausência de todo obstáculo erguido ante a livre concorrência, e portanto de toda intervenção estatal para corrigir os eventuais efeitos indesejáveis dela. “Foi a submissão do homem às forças impessoais do mercado que, no passado, possibilitou o desenvolvimento de uma civilização”, escreve Hayek. Dir-se-ia que, tal como Deus, o mercado não pode agir mal. Desse ponto de vista, o neoliberalismo, que apresenta seus objetivos como inteiramente “naturais”, não se opõe de fato à teoria comunista, cujas “proposições teóricas” são supostamente, como vimos, “a expressão geral de relações efetivas”. E, visto que o homem obedece às leis da natureza, basta conhecê-las para saber em que direção seguir. Ao “socialismo científico” de Marx e Engels vem, portanto, acrescentar-se o liberalismo “científico”: os dois compartilham as mesmas premissas cientificistas.

No entanto, viu-se que essa reivindicação de uma submissão total às forças da natureza descreve mal a ideologia neliberal em seu conjunto: essa renúncia às ações voluntárias só concerne aos agentes coletivos; quanto aos indivíduos, longe de recomendar-lhes uma dócil obediência ao destino, os neoliberais inflam sua liberdade e seu espírito de iniciativa. Portanto, imprimem ao seu programa de submissão à natureza mais uma torção, que os aproxima novamente dos socialistas. A doutrina marxista combina a crença em um sentido inelutável da história, que é indispensável conhecer para melhor submeter-se a ele, com a exigência de uma intervenção voluntarista que permite acelerar a história. Os neoliberais, por sua vez, tomam distância quanto ao laisse-faire do liberalismo clássico e preconizam uma forma de intervenção estatal, a saber, a supressão sistemática de todo impedimento à concorrência. “A atitude de um neoliberal em relação à sociedade”, escreve Hayek, tecendo uma metáfora que os dirigentes soviéticos não desprezaria, “é como a de um jardineiro que cultiva uma planta e que, para criar as condições mais favoráveis ao crescimento dela, deve conhecer o melhor possível sua estrutura e suas funções”; seu objetivo, é verdade, é diferente: “criar deliberadamente um sistema em que a concorrência exercerá o papel mais benéfico possível”. Essa combinação entre a fé cega nas leis da natureza e a história, com a convicção de que é possível atingir todos os objetivos fixados, é característica do cientificismo, comum aos comunistas e aos neoliberais: uma vez que a ciência pode conhecer tudo, a técnica pode fazer tudo. A remodelagem da sociedade é um problema técnico entre outros.

Em si, tal decisão não é realmente surpreendente: como admite Hayek, “todo homem que não é totalmente fatalista é um planista, todo ato político é um ato de planismo”. As reformas impostas no fim do século XX por dirigentes políticos como Tatcher, Reagan ou Pinochet, em seus respectivos Estados, aí estão para comprovar essa atitude voluntarista. O mesmo se dá com a famosa “terapia de choque”, aplicada nos países do Leste Europeu após a queda do Muro; ou ainda com as intervenções dos Estados ocidentais, por ocaisão da crise financeira de 2008-9, na salvação dos bancos privados. Doravante, enquanto os benefícios permanecem individuais, os riscos são socializados. Trata-se aí de um “neoliberalismo de Estado”, contradição em termos que faz duvidar da coerência interna do projeto. [Benjamin] Constant [um dos fundadores do liberalismo] não tinha previsto que o Estado podia, simultaneamente, reforçar sua ascendência sobre a vida dos indivíduos e colocar-se a serviço de alguns deles. Após os atentados de 11 de setembro, os Estados que adotaram essa ideologia, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, aumentaram seu controle sobre as liberdades civis, enquanto deixavam plena liberdade aos agentes econômicos individuais. A partir desse momento, entramos no ultraliberalismo, terceira fase dessa doutrina.

O neoliberalismo também compartilha com o marxismo a convicção segundo a qual a existência social dos homens depende essencialmente da economia. Já não se trata simplesmente de isolar a economia das outras atividades humanas, mas de atribuir-lhe um papel dominante. Tal dominação figura na doutrina marxista, embora a prática dos Estados comunistas não a tenha ilustrado muito. O princípio reaparece entre os teóricos do neoliberalismo, e dessa vez é posto em ação. Não por acaso, a obra máxima do fundador dessa corrente de pensamento, Ludwig Von Mises, traz como título A ação humana e como subtítulo “Tratado de economia” (1949). Hayek, por sua vez, dispõe-se a criticar o lugar excessivo atribuído às necessidades e às estruturas econômicas no “planismo”, escrevendo: “Seres inteligentes jamais se propõem objetivos essencialmente econômicos”; no entanto, é significativo que o único outro objetivo que ele identifica seja “o desejo de facilidades gerais e de pder”. E, sbretudo, que esqueça até esse acréscimo minimalista quando se volta para os efeitos da pura economia de mercado: “Os únicos bens que mantêm o conjunto de uma grande sociedade são puramente econômicos”, escreve. (…)

Ao exigir a adesão cega aos seus postulados, apresentados como verdades científicas e não como opções voluntárias por certos valores em detrimento de outros, o ultraliberalismo torna-se por sua vez uma religião secular, aliás difundida às vezes por meio de estratégias de promoção que lembram as utilizadas pelos comunistas. A presença desses traços comuns certamente não basta para fazer do ultraliberalismo um totalitarismo, ainda que soft. Mas sugere que os dois não se opõem tão radicalmente quanto o afirmam os defensores de uma e outra doutrina. O ultraliberalismo não é apenas um inimigo do totalitarismo; é também, ao menos por alguns de seus aspectos, um irmão dele: uma imagem invertidade – e no entanto simétrica. Seu projeto nos faz passar de um extremo a outro, de “o Estado é tudo” totalitário ao “o indivíduo é tudo” ultraliberal, de um regime liberticida a outro sociocida (…).

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