Rodrigo Guim: “O mundo é todo cúmplice do que acontece no Afeganistão”

O diretor do documentário Em Nome do Meu Povo – que retrata os efeitos de 40 anos de guerra no país afegão – fala da situação política por lá e da coragem da verdade da ativista Malalai Joya

A ativista Malalai Joya, central no documentário Em Nome do Meu Povo. Na legenda, lemos sua declaração: “Estou especialmente honrada por ser a voz da minha nação oprimida” | imagem: frame do documentário

Com a saída das tropas americanas que há 20 anos ocupavam o Afeganistão, concluída em 30 de agosto, o movimento fundamentalista e nacionalista islâmico Talibã, que havia sido apeado do poder pelos Estados Unidos, retomou o país – já no dia 15, havia conquistado Cabul, a capital, após dominar centenas de distritos em somente cinco meses de ofensiva. A derrocada do estado de coisas deixado pelos governos do EUA evidenciou os fracassos dessa operação militar e chamou atenção internacional para os riscos que adviriam à população afegã – o Talibã é conhecido por sua brutalidade, em que se destaca a opressão às mulheres. Nesse cenário, conversamos com Rodrigo Guim, diretor de Em Nome do Meu Povo (In the Name of My People, na versão em inglês), documentário que retrata a situação política e o sofrimento de afegãos sofrendo os efeitos de uma sequência de guerras que remonta à invasão soviética, em 1979. Lançado em 2019 no exterior, com previsão de lançamento no Brasil em 30 de setembro, na plataforma Filme Filme, o filme fala do ponto de vista de 40 anos de conflito, e antecipa questões que vemos se desenrolar hoje. Rodrigo comenta a produção do longa e o presente do país asiático.

Em Nome do Meu Povo demonstra como a reconquista talibã não é ruptura com algum avanço que a ocupação americana pudesse ter trazido ao Afeganistão, e sim um novo desdobramento da disputa de poder entre senhores da guerra que existia antes da invasão dos Estados Unidos (que, na Guerra Fria, havia armado e treinado milícias da região para combater a União Soviética). Submetido a forças estrangeiras e opressores locais, o povo afegão sofre com violências diretas e com efeitos perenes da guerra, como as deformações congênitas em recém-nascidos. Amparado pelo forte depoimento de diversos afegãos, o documentário é centrado na luta de Malalai Joya, ativista que confronta os poderes locais e denuncia os interesses dos EUA. Além dela, também falam no documentário o especialista em relações internacionais Stephen Walt e o linguista Noam Chomsky, entre outros. O diretor quer, sobretudo, que o filme seja uma ferramenta para a melhora da situação afegã: “É importante que possamos apoiar diferentes formas de resistência do povo afegão, e para isso é preciso começar a entender o que acontece por lá. Precisamos de alianças entre povos, porque nossos estados têm falhado miseravelmente. Meu filme foi feito para isso, e se puder ser usado dessa forma, tanto melhor”.

Personagem central do documentário, a ativista Malalai Joya lhe descreve a certa altura: “Um professor universitário, alguém que tem as mesmas visões que nós, [que] tenta usar sua profissão como realizador para servir o nosso povo”. Pode contar como a conheceu e o que lhe atraiu a contar sua luta e documentar a situação afegã?

No ano de 2001 eu tinha iniciado estudos numa universidade estadunidense, na cidade de San Francisco. Ganhei uma bolsa integral para um mestrado em antropologia social e cultural. Era um programa centrado em estudos pós-coloniais, feminismo e pós-estruturalismo, e na prática ativista do conhecimento. Quando aconteceu o atentado às Torres Gêmeas, em 11 de setembro daquele ano, fui levado a um dia a dia em que discutíamos sobre terrorismo, intervenções estadunidenses pelo mundo, e logo em outubro veio a invasão americana, inicialmente pelo apoio à Aliança do Norte, um punhado de senhores da guerra de diversas províncias afegãs que tinha um longo histórico que eu começava a estudar. Fui logo querendo saber mais sobre a história do Afeganistão e me questionava por que razão mais uma guerra estava acontecendo por lá. Ao ler sobre a história das guerras e ficar atento aos acontecimentos dali, fui aos poucos conhecendo ativistas afegãos, e Malalai Joya se destacou para mim nos anos que se seguiram. Terminei o mestrado com um estudo sobre os discursos sobre o terror, em que eu analisei discursos de especialistas estadunidenses, da mídia dominante de lá, e também da cultura. Esse trabalho era sobre os discursos que estavam questionando ou legitimando o que eu diagnosticava como discursos dominantes sobre o terrorismo. Entre aqueles que, para mim, traziam críticas interessantes sobre o que é terrorismo estavam Noam Chomsky, e ele está no documentário.

Em 2009, Malalai Joya foi a San Francisco, e lá estava eu novamente, dessa vez para um doutorado também em antropologia. Ela tinha ido lançar sua autobiografia intitulada A Woman Among Warlords (Uma Mulher Entre Senhores da Guerra), e meu projeto de documentário já estava na minha cabeça, porém naquela época eu pensava em fazer um filme sobre cinco mulheres ativistas afegãs, e Joya era uma delas. Assisti à sua palestra, depois peguei um livro e fiquei na fila para que ela o assinasse. Quando chegou a minha vez, lhe contei sobre meu projeto de filme e perguntei se ela topava ser uma das personagens, ao que ela rapidamente disse que sim e me passou seu e-mail de contato. Falamos por e-mail por cerca de dois anos até que eu lhe escrevi dizendo que tinha compreendido que não precisava de ninguém mais além dela para contar o que precisava ser contado sobre as histórias de guerras no Afeganistão. Ela topou e comecei a buscar recursos para realizar o trabalho. O que Malalai Joya representa é uma visão de luta por justiça, direitos e fim das guerras, mas sem esquecer que para isso os velhos inimigos do povo não podem ter espaço no poder político do país.

Após a debandada americana do Afeganistão e a rápida reconquista por parte do Talibã, o documentário ficou liberado para streaming por alguns dias. Por que você achou importante liberar esse material antes mesmo que ele estreasse no Brasil? O que podemos compreender melhor do presente afegão a partir do seu filme?

O que está acontecendo hoje, a volta do Talibã, só prova tudo o que Malalai Joya vinha dizendo: que os EUA e a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] não invadiram para melhorar a vida dos afegãos, que eles estavam lá apenas por conta de seus interesses. Os interesses de elites que ganham grana e poder com guerras, e é isso o que Malalai Joya deixa claro: essa guerra foi travada pelo estado dos EUA em nome de seu povo, mas o povo estadunidense mal sabe o que fazem em nome dele. Os EUA apoiaram os grupos de senhores de guerra contra o Talibã, mas, no meio da guerra, quando eu estava filmando, já estavam apoiando o Talibã politicamente, conversando com eles e os deixando ocupar cargos no governo, fazendo acordos na frente e por detrás das cortinas. Eles foram tratados como parceiros esse tempo todo. Agora estão aí de volta. Não há surpresa alguma.

Meu filme ajuda a entender que a guerra já estava fadada ao fracasso há muito tempo, que ela vinha sendo um fracasso e uma matança generalizada. O filme foi liberado porque estava em pauta toda aquela história, com a chegada do Talibã a Cabul. E é importante dizer que esse filme foi muito rejeitado quando o assunto do Afeganistão tinha sumido das manchetes nesses anos todos. Muitos festivais e canais de TV receberam o filme e não deram atenção. Mas tão logo se tornou notícia, o interesse pelo filme foi grande. Canais de TV e festivais que não tinham notado o filme antes de repente estavam querendo mostrá-lo. Acho que isso diz muito do mundo em que vivemos – alguns assuntos só têm atenção esporádica conforme surgem novas manchetes, as supostas novidades. Um filme tem atenção e provoca efeitos nas pessoas conforme as manchetes do dia. Isso é muito triste. Estou finalmente conseguindo lançar o filme no Brasil, mas por conta do contexto triste. E é triste saber que um filme só consegue espaço por conta da realidade martelar a cabeça das pessoas sobre sua importância. Mas a importância já estava lá, a importância do mundo conhecer essa história já estava lá, pois o mundo é todo cúmplice do que aconteceu e do que acontece no Afeganistão. A invisibilidade do país é apenas uma das faces da cumplicidade.

Pelas falas de Joya, Noam Chomsky e Stephen Walt, entre outros, notamos como o nation building —  o dito motivo dos EUA para se manter no Afeganistão — é farsesco: a população afegã se manteve vítima do poder e da violência, como sob o Talibã antes. Como você vê as motivações dos EUA e a situação em que deixaram o Afeganistão?

Guerra dá grana, muita grana para alguns. Temos que lembrar do vice do [ex-presidente americano George] Bush, o Dick Cheney, que era um megaempresário da  guerra. Mas ele é somente um exemplo. Muitas empresas lucram muito com a guerra. E quando essa guerra começou a custar demais e a dar lucro de menos o desinteresse começou. Porém outros presidentes anteriores ao Biden, muito provavelmente prevendo que sair seria ver o caos se instalar novamente no país, evitaram a saída. Obama chegou a falar em sair da guerra, depois fez o contrário e aumentou o número de soldados. As motivações das guerras não são o que os estados dizem. As motivações primeiro eram acabar com o terrorismo, mas temos então que perguntar: por que não destruíram apenas a Al Qaeda? Por que precisaram entrar num país? Podemos imaginar os políticos, em suas salas de conversas privadas, falando que o Afeganistão fica bem ao lado do Irã, e que ter bases ali seria estratégico. E, claro, novamente, fazer guerra dá muita grana pra alguns, e eles souberam aproveitar o apoio que tinham com o atentado de 11 de setembro para destilar o ódio da população em qualquer lugar. E infelizmente é assim que o Afeganistão é visto pela população do mundo: como “qualquer lugar”. Nisso somos todos, cidadãos do mundo, cúmplices.

O documentário apresenta um Afeganistão dividido entre senhores da guerra, cuja população é violentada por todos os lados. O peso do luto, as marcas das guerras nos corpos — feridas, deficiências, anomalias congênitas — e a pobreza sobressaem. A conquista do Talibã nos é noticiada como grande retrocesso. Mas houve avanço?

Malalai Joya é a primeira a dizer, como ela faz no filme, que não se pode falar em avanços. Que nesses últimos 20 anos, as pequenas mudanças significaram pouco, dado que isso foi feito por ocupação. Como ela diz, não se pode forçar ninguém a ser livre. Então, nesses anos, os pequenos avanços se mostram ilusórios nesse momento atual. Malalai Joya e outros que, no filme, questionam a suposta democracia trazida pelos EUA tinham e têm razão.

Nesse sentido, salta aos olhos a condição das mulheres. Joya mostra esses dados:

“80% das mulheres afegãs sofrem violência doméstica; 57% dos casamentos afegãos são com mulheres abaixo da idade legal de 16 anos 60% dos casamentos são sob coerção; mais de 25% das mulheres sofrem violência sexual; a cada 25 minutos uma mulher morre durante o parto; a expectativa de vida das mulheres é abaixo dos 40 anos.”

O documentário traz vários depoimentos fortes de mulheres que têm sofrido todo tipo de abuso e violência. Como foi ouvir essas histórias, o que mais te marcou nisso?

Não foi nada fácil ouvir todas as histórias que ouvi em pouco tempo por lá, por mais que eu já tivesse ouvido muito e lido muito antes de estar lá. Porém estar ali com as pessoas, vê-las chorar, se emocionar, sentir seu luto e sua luta, tudo isso me afetou profundamente. Fiquei uns dois meses sem conseguir assistir às imagens depois das filmagens. E o filme mostra apenas uma pequena parte de tudo que vi e ouvi, obviamente. Muitas histórias não entraram, pois filmes têm essa condição de ser um compilado pequeno de algo muito maior.

Gostaria neste ponto de voltar a Joya. Sei que você é um leitor de Foucault, e ela me é um exemplo como poucos do que significa a parresia, essa “coragem da verdade”, esse dizer a verdade que denota autonomia, que ocorre sob risco. Você concorda que podemos lê-la por esse viés? O que ela pode nos ensinar sobre a política?

Excelente pergunta, eu não tinha me dado conta de que sim, ela é uma parresiasta, no sentido de que ela corre perigo ao falar a verdade, e no sentido de que ela sabe do risco e quer falar mesmo assim, ela prefere morrer do que não poder expressar o que ela sente que precisa ser dito. E ela se coloca nessa posição de ser uma porta-voz de seu povo. E ela não apenas reproduz o que todos dizem a ela quando são vítimas de senhores da guerra, de fundamentalistas ou de estados, ela ao mesmo tempo visa criar uma nova maneira de viver. O filme começa do mesmo modo que a autobiografia dela, dando ênfase à sua identidade como afegã, quando ela diz que não importa de qual etnia se é, o importante é que todos são iguais e são, como ela, afegãos. Essa fala é um modo parresiasta de falar e viver, pois ninguém poderá corrigi-la sem se declarar contra o modo de vida afegão, sem se declarar sectário. Ao mesmo tempo, ela quer mostrar que em todos esses tempos de guerras, a maioria do povo foi vítima e não algoz, e que essa voz é que precisa falar, custe o que custar, pois já deu, chega de guerras por conta de milícias locais e internacionais.

Ainda me referindo ao filósofo: sabemos que a visão foucaultiana da política instrui a não ver o poder como algo localizado em um ponto, que pode ser tomado e retomado. O poder, diz ele, se exerce em rede, com áreas de influência, pontos de ação e reação. O fracasso do nation building americano parece um sinal do acerto dessa perspectiva: não bastou “tomar o poder”. Como analisar o Afeganistão com esse instrumental?

Eu entendo que Foucault diz que não se pode pensar o poder “apenas” como localizado no Estado, por exemplo. Ao mesmo tempo em que o estado é de grande importância quando falamos em relações de poder, ele não resume o poder político. E, sim, o Afeganistão é um exemplo de como o estado não é uma estrutura universal ou que define onde está o poder. Ainda que o poder também lá atravesse o estado, as dominações locais, regionais, o poder das milícias dos senhores de guerra, definiram como se distribui recursos, direitos etc., pelo país nos últimos 40 anos. Inclusive o Talibã continuou esse tempo todo desde 2001 a dominar algumas cidades e províncias. E a Aliança do Norte, sempre também manteve seus senhores de guerra dominando suas províncias. O estado nacional não tinha quase nenhuma ou nenhuma entrada em muitas cidades e províncias. E o estado, com apoio dos EUA e OTAN, se tornou, na definição de Chomsky, “um governo de senhores da guerra”. Ou seja, o poder do Estado nada mais era do que o poder de províncias que estavam ali para angariar ainda mais privilégios para si. Também é importante lembrar que Foucault fala que o poder também opera através da dominação, quando a possibilidade de reação é pouca ou nenhuma. E, nesse caso, penso que os senhores da guerra, e mesmo o Talibã, quando estiveram trabalhando dentro do Estado, estavam ali para buscar formar estruturas de dominação, para qual o estado é sim importante. E conseguiram roubar e lucrar muito com isso. E conseguiram se manter fortes, no caso do Talibã, para tomar o poder do estado. Porém o Talibã sabe que não basta ocupar o governo central em Cabul e não ocupar cada cidade e cada província também. É isso que eles estão fazendo agora: atacando todos os grupos que resistem, como o Vale do Panjshir.

Joya fala que o caminho para criar um Afeganistão melhor só seria possível com a saída dos invasores estrangeiros, os americanos. Só aí haveria abertura para que os afegãos pudessem construir o seu destino. Hoje, com os EUA fora, com o Talibã de volta, quais perspectivas você vê para o povo afegão?

Sim, ela fala que com a saída dos EUA, o povo afegão teria um inimigo a menos. E ela tem razão. Uma hora os EUA teriam que sair, e teria sido melhor que tivessem saído antes, causando menos guerra por lá. Eles demoraram demais. Deram bastante tempo para o Talibã se organizar, marcaram até data de saída com um ano e meio de antecedência, dando tempo demais para o Talibã programar como ia fazer o que fez. Agora o povo, a maioria dos afegãos, não aceita o Talibã. Agora nos resta apoiar o povo de todas as formas que pudermos. Dando chance para quem quer sair do país, pressionando todos os países para que pressionem o Talibã de todas as formas, apoiando todas as ONGs e ativistas locais. Tudo isso que aponto é o que era para ser feito em 2001, quando o Talibã estava no poder. Se o povo de lá se erguer em guerra contra o Talibã, temos que saber quem é quem, e não sair apoiando qualquer senhor da guerra como Dostum ou Ismail Khan ou outros. Temos que apoiar as pessoas de lá de todas as formas, e a melhor forma é saber quem apoiar, e como querem ser apoiados. Se você pode apoiar, deixei uma lista de organizações interessantes no site do filme. Se você não quer ficar alheio ao Afeganistão, além de seguir Malalai Joya no Facebook ou outros ativistas nas redes para ficar atento ao que dizem e fazem, pode buscar apoiar seus trabalhos como você puder. É importante que possamos apoiar diferentes formas de resistência do povo afegão, e para isso é preciso começar a entender o que acontece por lá. Precisamos de alianças entre povos, porque nossos estados têm falhado miseravelmente. Meu filme foi feito para isso, e se puder ser usado dessa forma, tanto melhor.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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