Ressignificando os espaços públicos

Um (não tão) velho lema para uma (nem tão) nova questão

Festival Existe Amor em SP, em 2012 | imagem: Fora do Eixo

Poderia começar com os gregos, como é comum quando se pretende discutir alguma noção sobre democracia. Mas para refletir sobre a esfera pública e os espaços públicos prefiro algo contemporâneo, que resume muito bem o espírito do texto.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem como um de seus principais lemas o bordão “ocupar, resistir, produzir”. Acredito que isso ilustre melhor o que pretendo discorrer nesse texto, mais do que qualquer conceito filosófico da Antiguidade (o que não significa desconsiderá-lo, muito pelo contrário, trata-se apenas de uma opção argumentativa).

A questão, assim, pode ser transposta para os seguintes termos (pensando um pouco mais no contexto urbano): ocupar os espaços públicos, resistir contra a segregação e o higienismo social, produzir novos significados para a utilização dos espaços públicos efetivamente voltados para o uso comum e de todos os cidadãos. Devo ressaltar que talvez não estejamos falando de novos significados, mas sim requerendo aquilo que é o sentido mais estrito do público (agora sim, podendo rememorar os antigos), ou seja, como algo, de fato, de usufruto de todas e de todos.

Como exemplo, podemos falar de São Paulo, que presenciou dois eventos interessantes, no mês de outubro, na Praça Roosevelt, região central da cidade: a primeira, chamada de “Amor sim, Russomanno não”, e a segunda, “Existe Amor em SP”, organizadas de forma a não haver uma “comissão organizadora”, mobilizadas via Facebook, promoveram dois momentos de ocupação do espaço público de caráter político, contra uma série de medidas e acontecimentos que vêm tomando a cidade ultimamente. O embate eleitoral apenas tornou a situação mais evidente e acirrada.

Um e outro (na verdade, um continuidade do outro) foram mobilizações contra uma visão discriminatória que vem prevalecendo na sociedade paulistana do momento, de cunho racista, homofóbico e profundamente higienista e eugênico. Forma de pensamento que se manifestou em políticas públicas cada vez mais intolerantes, segregacionistas e excessivamente autoritárias, extrapolando para atitudes agressivas por parte de cidadãos contra determinados grupos sociais, como os mendigos e homossexuais. Sem falar na histórica ideologia racista que ainda prevalece em boa parte da sociedade brasileira, a despeito de sua invisibilidade.

E é significativo que o evento tenha se organizado de forma “espontânea”, procurando compreender a política em seus termos mais amplos, ainda que a motivação estivesse ancorada na pauta eleitoral. A ocupação da Praça Roosevelt foi um movimento que podemos comparar com as ocupações que atingiram boa parte do mundo ocidental em 2011 e continuam a mobilizar muita gente na Europa de 2012 (principalmente Portugal e Espanha). São manifestações contra um Estado antidemocrático, antipopular e contra os interesses públicos.

OCUPAR, nesse contexto, deve ter o sentido de recuperar o fortalecimento da esfera pública como espaço de convivência entre as diferenças, de fortalecimento da circulação de ideias de forma qualificada e verdadeiramente plural, sem a qual a experiência democrática e republicana são inviáveis, como tem sido até agora, numa São Paulo cada vez mais intransitável, em todos os sentidos.

RESISTIR é denunciar, como fez um grupo nas ocupações da Praça Roosevelt, a privatização desses espaços públicos, como praças e parques, onde, por exemplo, não há disposição de bebedouros (lembrando que a água é um direito básico e essencial de qualquer ser humano). Da mesma forma que significa denunciar a omissão do Estado, que concentra (como forma de manutenção das desigualdades sociais) as políticas desses espaços públicos no centro (rico) da metrópole, ignorando a importância de tais espaços de convivência em toda a cidade, espaços onde sejam oportunizadas todas as formas de manifestações públicas possíveis: arte, esporte, cultura, lazer, e porque não política.

PRODUZIR é a procura de uma democracia ativa, em que a população possa se sentir a real beneficiada de todos os aspectos que os espaços públicos democratizados devem produzir, ou seja, que cada vez mais haja o comprometimento e cuidado com o que é de todos – contra a individualização dos usos que tem sido feitas, como se a rua, as praças e os parques fossem o quintal do fulano, e seu carro a caixa de som ambulante.

Mídias Digitais

A ocupação da Praça Roosevelt vem acompanhada também de um fato novo na esfera pública, que os ativistas de países como Irã, Egito e Líbia “ensinaram” aos jovens descontentes da depauperada Europa: o papel das mídias digitais na mobilização política. Sem dúvida que o papel desempenhado pelas ditas “redes sociais” tiveram uma importância grande para a dimensão que os movimentos tomaram, bem como foram importantes para o seu efeito dominó, alastrando os protestos pelo mundo afora.

Isso demonstra que as tecnologias podem ser instrumentos eficazes para buscar uma nova forma de compreender a esfera pública e a atuação política; esta, porém, deve estar sempre atrelada à “desvirtualização” das suas posturas, ou seja, não basta um “participar” ou um “curtir” para que a sua consciência deite tranquila ao fim da noite. É colocar a sua cara na rua e demonstrar fisicamente as posições políticas que defende.

O lema abordado nesse artigo caminha no sentido de que há ainda uma cultura cívica a qual a sociedade brasileira como um todo não conseguiu efetivar e fazer prosperar, a nossa democracia não é plena, os resquícios autoritários ainda se fazem presentes em nossas vidas cotidianas. A violência policial, por exemplo, é um quadro bem restrito de uma ideologia muito mais ampla e sombria, que sente saudades dos presidentes generais.

“Ocupar, resistir, produzir” ganha, assim, a conotação política de demonstrar que os espaços públicos podem ser pensados sob outra ótica e devem ser fortalecidos para que possamos afirmar que vivemos de fato numa democracia. Assim como lá (na Europa e nos países árabes), aqui também podemos utilizar a ocupação das praças para reivindicar a possibilidade de uma outra democracia, quiçá um outro mundo possível…

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