“Eros e Psique”, de Fernando Pessoa: poesia e alquimia

O poeta aproveita um mito grego para transmitir o princípio alquímico da analogia, que seria o caminho perfeito para conhecer o oculto

Psique reanimada pelo beijo do amor (1787-1793), de Antonio Canova | imagem: WikiMedia

São conhecidas as relações de Fernando Pessoa com o ocultismo, seja nas evidências presentes em sua poesia, no seu polêmico encontro com o ocultista inglês Aleister Crowley ou nos inúmeros mapas astrais traçados para si e para seus heterônimos. Em carta ao escritor Adolfo Casais Monteiro, que havia indagado anteriormente se Pessoa acreditava no ocultismo, o poeta responde que há três caminhos possíveis para o oculto: o perigoso caminho mágico, que corresponderia a práticas do espiritismo e da bruxaria, o caminho místico, incerto e lento, e o caminho alquímico, considerado pelo poeta o mais difícil e também mais perfeito de todos, “porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm”.

Embora na mesma carta o escritor afirme que não participava de nenhuma ordem iniciática, ele revela ter tido acesso a livros e documentos que descreviam rituais de várias ordens, o que permitiu, por exemplo, a transcrição de um trecho de ritual de iniciação da Ordem Templária de Portugal como epígrafe do poema “Eros e Psique”:

[…] E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

(Do “Ritual do Grau de Mestre do Átrio
Na Ordem Templária de Portugal”)

Aparentemente paradoxal, essa epígrafe traz alguns princípios alquímicos retomados do primeiro trecho da Tábua de Esmeralda, cujo texto, do alquimista Hermes Trimegistus, é datado entre os séculos I e III: “É verdade, certo e muito verdadeiro: O que está embaixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está embaixo, para realizar os milagres de uma única coisa.”

Vemos, aí, a lei da analogia, que pode ser identificada não apenas na citada epígrafe, como também no poema em si. Publicado em 1934 na revista Presença, os versos de “Eros e Psique” contam a lenda de uma princesa encantada que dormia, com a fronte ornada de hera, e apenas despertaria quando chegasse um Infante, que viria pela estrada enquanto vencia o bem e o mal, chegando até ela já libertado. O poema nos remete imediatamente ao conto da Bela Adormecida, inclusive nos versos heptassílabos, que evocam as cantigas populares ou infantis. No poema, ambos se ignoram,

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E quando o Infante vence a estrada e transpõe os muros, aproxima-se da Princesa e, então, dá-se a surpresa:

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Para a compreensão desses versos, é fundamental relembrarmos o mito de Eros e Psique, que dá título ao poema. Com ciúmes da mortal Psique, que atraía muitos admiradores por sua beleza, a deusa Afrodite condena a jovem a se apaixonar por um monstro. Entretanto, o próprio deus do amor, Eros, se apaixona por ela, e a leva ao seu palácio. Ali, eles viveriam em pleno idílio amoroso, encontrando-se todas as noites, mas com a condição de que Psique jamais visse o amante e nem perguntasse a sua identidade. Ela, como o desconhecia, pensava ser ele o monstro a que fora condenada pela deusa e, recebendo a visita de suas invejosas irmãs, deixa-se convencer por elas a aproximar-se do suposto monstro com uma lamparina, enquanto ele dormia, e matá-lo para recuperar sua liberdade. Ela o faz, mas quando encara Eros, fica fascinada por sua beleza e deixa cair sobre ele uma gota de azeite, com o que o deus do amor foge, ferido.

Entretanto, na conhecida história da Bela Adormecida e no mito de Eros e Psique, aquele que se aproxima e aquele que dorme são inversos: no mito, a figura feminina se aproxima da masculina e é ela quem precisará, por sua falha, passar por quatro provações impostas por Afrodite para que possa recuperar Eros, as quais consistirão em sua iniciação para conquistar a condição de imortal. Já na lenda, é o homem quem enfrenta as provações, inclusive na figura de um dragão, as quais serão seu rito iniciático para chegar à princesa.

Nesse sentido, como o poema de Fernando Pessoa retoma as duas histórias, as figuras dos opostos – masculino e feminino – se fundem tanto naquele que procura, como no que é encontrado. E ao ver o outro que é encontrado, aquele que procurava (o Infante, ou Neófito) vê a si próprio, como atesta o trecho do rito de iniciação na epígrafe do poema: as verdades encontradas em diferentes graus de iniciação são opostas e, ao mesmo tempo, são as mesmas. Assim, Fernando Pessoa, poeta e estudioso de ocultismo, transmite aos leitores a importante lição da alquimia, na qual a transmutação dos elementos químicos representa a transformação da própria alma do ser humano: aquilo que está embaixo é como o que está em cima.

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