Minha vida em “Escolas sem Partido”: 1984-2017

Tudo numa escola reflete uma ideologia

Capa do jornal A Ofensiva, de 1936

texto originalmente publicado no Medium e republicado aqui com permissão

Veja também:
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A “História sem Partido”, por Primo Deusdeti
>> Faculdade, pra quem vem debaixo, é luta diária, por Karine Arruda

Falemos de um estudante que um dia foi menino. E, como tal, um objeto de disputa.

Nem faz tanto tempo, houve entre nós um acordo político frágil como a flor, chamado Nova República”. Coincidentemente nosso jovem iniciou a vidinha de estudante junto a isso, ali por 1984. Sem muitos recursos na ocasião, os pais recorreram à rede pública. Tinha 7 anos e era um aluno de perfil incomum: já havia sido alfabetizado em casa e tinha facilidade com operações matemáticas básicas (o que sempre lhe pareceu natural, anos depois entendeu ser um distintivo privilégio de classe). Assim foi encaminhado a uma escolinha da rede estadual do interior das Minas Gerais.

1984. O campinho de concentração

A primeira instituição que lhe foi apresentada como “escola” se situava à beira de uma rodovia na zona siderúrgica de Minas. Sem que imaginasse o que fosse um campo de concentração, percebia aquela escola exatamente como tal. As crianças tinham cara de desespero, de alma atormentada e pareciam — como ele — odiar estar ali. Nem a doçura da abnegada professora aliviou a aversão imediata àquele ambiente desbotado e limítrofe: como já sabia ler, o ritmo lento das aulinhas, com uma letra sendo apresentada por dia, pareceu-lhe totalmente desestimulante. Preferiu muitas vezes pular o muro e ficar pela rua, dando sopa para o azar e trabalho para o seu anjo. Poderia ter tido problemas numas das várias vezes que brincou com cães sarnentos, deambulou com moleques da vizinhança pelos terrenos baldios e pegou carona em caminhões em movimento, mas ainda assim qualquer experiência era mais interessante do que aquela escola. Até mesmo morrer brincando, ou afogado no riachinho ao lado, seria melhor do que gastar as preciosas tardes numa sala pobrinha em que as horas passavam em câmera (muito) lenta. A infância, naquela escola, era um crime a ser castigado. Sim: havia uma professora falando em Deus e como era bela a Sua Criação. Ignorou quase tudo que a doce mulher dizia: já sabia ler, como dito anteriormente.

1985–1987. Oração às 7 da manhã, Hino Nacional e grandes vultos da Pátria

Em 1985, Belo Horizonte ainda era uma cidade pacata onde uma criança podia andar sozinha pelas ruas do Centro — e se encantar com os letreiros em néon do comércio, com as bancas de revista, os cartazes dos cinemas, o parque municipal, enfim, vivenciar a cidade, sentir-se uma cidadã. Escola Estadual Cesário Alvim, no baixo Centro. Simplesinha, mas bonitinha. O nome da escola homenageia um político do antigo Partido Liberal, ex-governador de perfil conciliador na República Velha e por acaso bisavô de Chico Buarque (ninguém lá sabia disso). Nessa escola nosso herói aprende um punhado de coisas importantes. Aprende que a escola tinha horários rígidos e muros bem altos, para proteger as crianças. Aprende a ter um uniforme sempre asseado e passado pela sua serviçal doméstica, que no caso era sua mãe mesmo. Aprende a rezar o Pai Nosso e a Ave-Maria às 7 da manhã, antes das aulas (já foi mencionado aqui que era uma escola pública e talvez fosse desnecessário mencionar que o Estado, mesmo antes da promulgação da Constituição de 1988 e muito antes do voto pouco republicano de seis ministros do STF em 2017, já era oficialmente laico). Aprende a primeira parte do Hino Nacional Brasileiro, bem como a postura correta de se ouvi-lo. Em seu último ano nessa escola, 1987, ganha o único livro que lhe foi concedido nos 3 anos e meio em que lá esteve: uma edição do Novo Testamento, com trechos selecionados e adaptados, para não dizer reescritos e pervertidos. Para muitos de seus coleguinhas, este seria o único livro que terão ganhado na vida.

1988–1991. OSPB, mas sem partido

Quinta série, 1988. Escola Estadual Olegário Maciel. O nome da escola também homenageia um político do antigo Partido Liberal, ex-governador da província, articulador do golpe de 1930 que impediu a posse de Julio Prestes e resultou na ascensão de Getúlio Vargas. As avenidas de Belo Horizonte são generosas com a memória dos golpistas e dos facínoras. Agora os alunos tínhamos disciplinas: Português, onde se ensinava que nossa língua era cheia de regras e que leitura e escrita, antes tão prazerosas, poderiam ser infernais; Matemática, onde se ensinava que geometria e outras matérias no fim do livro eram só para alunos de escolas particulares; Ciências, onde líamos sobre os fenômenos em vez de experimentá-los; História, lecionada de forma tão chata que aprendíamos a odiar qualquer assunto relacionado ao passado; Geografia, onde aprendíamos que a natureza do gigante Brasil era linda e maravilhosa e o problema eram as pessoas; e por fim Educação Física, uma hora e quarenta minutos para gastarmos nossa energia reprimida nas caixas de cimento em que ficávamos confinados 5 horas por dia. No ano seguinte teríamos também uma aula semanal chamada Práticas Comerciais, na qual aprenderíamos a obedecer a um velho meio burro e outra chamada Educação Moral e Cívica (EMC), onde nada se aprendia e ninguém entendia para quê servia aquilo. Anos depois, percebi: essa disciplina, junto com Organização Social e Política Brasileira (OSPB), havia sido implantada pela ditadura militar em substituição às aulas de Sociologia. Ou seja: EMC e OSPB eram só para ocupar espaço na grade sem ensinar nada mesmo. Esse era o plano. Anos antes, um bom antropólogo, dos melhores que já tivemos, disse algo assim: a esculhambação do ensino era o projeto em si, e não uma falha do projeto.

1992–1994. Curso científico com Ensino Religioso

“No colégio sem partido eu havia sido formado em decoreba e aplicação de fórmula. Comecei talvez ali a alimentar um perigoso recalque contra a universidade pública e as ciências humanas” | imagem: Colégio Arnaldo, por Andrevruas

Segundo grau, 1992. Aqui se oferece uma escolha ao jovem: curso técnico ou científico. Pouco se sabia sobre ambos, mas havia uma impressão geral de que o curso técnico seria física e mentalmente massacrante, visando formar operários braçais ou buchas de canhão, enquanto o científico seria mais light e “intelectual”. Em nossa casa o curso técnico era considerado para meninos abrutalhados, sem sensibilidade artística, intelectual ou estética. Claro que isso não tinha lá muito embasamento mas mesmo assim a família moveu esforços desmedidos para me pagar um curso científico, num colégio particular. O menos caro era um tradicional colégio de padres, o Arnaldo, embora eu preferisse na ocasião um colégio laico da moda, cuja grade e ritmo pareciam mais sintonizados com o funil do vestibular.

O Colégio Arnaldo parecia em 1992 uma congregação de outsiders do Vaticano. A chamada Congregação do Verbo Divino, cujos membros se designavam divulgadores da ciência e das artes. Eu nunca entendi bem qual era o lance deles, e o perfil da escola naqueles anos pós-Collor e pré-Plano Real parecia um balaio de gato em que nas salas de aula se encontravam e se misturavam asseclas da TFP e da Teologia da Libertação. Essa guerra surda era talvez a cena mais interessante daquele lugar, mas passei batido por isso. A coisa mais parecida com pensamento crítico e social aconteceu curiosamente nas aulas de Ensino Religioso. Disciplina considerada hoje o cavalo de batalha do Estado Laico, essência da cooptação religiosa no ensino, foi no entanto a oportunidade que padres progressistas (e notavelmente inteligentes) encontraram para fazer um necessário contraponto à ideologia neoliberal que conduzia aquela proposta pedagógica. Esses padres eram pessoas dignas, de sincero comprometimento com a formação ética dos alunos e queridos por eles (e também por mim). Estudei no Arnaldo durante uma das muitas crises de identidade da congregação mantenedora do colégio. Nessa época queriam se modernizar, ou se maquiar com publicidade, para acompanhar a concorrência dos colégios laicos que se tornavam queridinhos da classe média alta. Não deu muito certo e minha experiência foi um limbo pedagógico que talvez tenha sido bom, exatamente por permitir certas fissuras — e respiros — num contexto de sufocante pensamento liberal que se mostraria anos mais tarde hegemônico por toda parte. Não faço ideia de como a coisa está hoje, talvez igual, dividida entre conservadorismo liberal e trabalhismo antifascista, sob o sempre ambíguo véu da cristandade.

Diferente da esculhambada escola estadual, o conteúdo programático ali era de fato dado em sala de aula. Mas tudo era maçante, nada sedutor. Uma Biologia resumida a desenhos naïf no quadro negro e rios de nomenclaturas. Uma Geografia resumida a descrições vazias de lugares e climas distantes da cidade que eu queria amar. Uma física e química resumida a fórmulas duras. Uma Língua Estrangeira reduzida a erros gramaticais. Uma Literatura resumida a livros com linguagem antiquada e fora de nosso contexto. Uma matemática resumida a maratona de exercícios. Virou uma piada recorrente durante as aulas alguém perguntar: “quando é que eu vou usar isso na minha vida?” Alguns professores reagiam com um silêncio e um risinho de canto de boca. A reflexão crítica sobre a matéria havia perdido para a decoreba autoritária, na qual alguns até se saíam bem. Quem decorava mais, tinha melhores notas. Eu era bom de decoreba, embora já desconfiasse que lá na frente isso não me serviria para porra nenhuma. E não serviu mesmo: em 1994 estávamos ainda muito longe de ter um ENEM, apostei todas as fichas num único vestibular e levei surra de vara da reflexiva prova da UFMG. No colégio sem partido eu havia sido formado em decoreba e aplicação de fórmula. Chances reduzidas num concurso que exigia pensamento crítico e transdisciplinar. Comecei talvez ali, com essa inapelável derrota, a alimentar um perigoso recalque contra a universidade pública e as ciências humanas que me eram tão inacessíveis e misteriosas.

1995–1996. Dois anos de cursinhos da moda — e sem partido!

Em 1995, fazer um cursinho da moda era um sonho adolescente. Havia um life-style em torno da ideia de cursinho. Gatinhas e gatões, festas em quadras esportivas com cobertura pela saudosa Rádio 107 (destruída pelos charlatões evangélicos em nossas guerras culturais), o bom rock dos anos 90, provas simuladas nas manhãs de sábado, um lugar para se desfilar com o tênis Nike, o jeans Vide Bula, a mochila Company e o moletom Pakalolo. E camisas de futebol, é claro. Enfim, sentidos e identidades para uma vida sem muito sentido e identidade. Os cursinhos cobravam os olhos da cara mas precisávamos daquilo: aquele ambiente, aquele astral, aquela energia burguesa que parece energia mas é só distorção.

Nos cursinhos acumulei mais ansiedade do que o conteúdo das matérias propriamente. Os alunos eram fiscais de gestos e comportamentos uns dos outros, um ambiente competitivo e tóxico. Professores começavam as aulas lembrando-nos sempre a altíssima relação candidato-vaga, lembrando-nos como nossos pais estavam pagando caro, lembrando-nos como tínhamos que nos esforçar até a bunda ficar quadrada, lembrando-nos que somente os melhores seguiriam em frente e, claro, lembrando-nos como a exorbitância gasta naquele cursinho era um excelente investimento. All that shit. A ansiedade e o terror do funil eram o motor de seu business, e não propriamente a qualidade das aulas. Na real, era decoreba do mesmo jeito, adornada com performance pop, piadas de salão e stand-up comedy machista, ao gosto da freguesia. A única coisa que aprimorei no cursinho foi mesmo o pensamento liberal: o individualismo vazio, a concorrência insana, o permanente stress do culto meritocrático, o pragmatismo boçal das escolhas, status como meta, e é claro: a naturalização e a imutabilidade de tudo isso.

Sim, havia espaço para um pensamento crítico em aulas de História e mesmo Literatura, mas era quase como uma reles curiosidade, dentro de uma estratégia para se passar numa prova num dia X. Emoldurado como exotismo, o pensamento crítico só devia ser utilizado para matérias da área de Humanas, sendo dispensável em todas as outras áreas.

1997–2002. Universidade pública em tempo de desmanche liberal

Enfim, a universidade. Ao desistir da Arquitetura e das fórmulas da Física, o jovinho foi tentar a sorte na Comunicação Social. No primeiro semestre é enfim apresentado, pela primeira vez na vida, a aulas introdutórias de Sociologia, Filosofia, Economia e Política. O chamado ciclo básico de Humanas era a parte mais interessante do curso, que de resto é raso e muito decepcionante, inicialmente ancorado num historicismo pedante e no adestramento à ética de um mercado midiático controlado por famílias conservadoras. A prática do curso se fia menos na busca de uma linguagem pessoal do aluno, de uma mínima intervenção crítica em nossa catastrófica telerrealidade, e mais numa emulação pobrinha de formatos hegemônicos. O pensamento crítico inerente às ciências humanas faz muitos jovens calouros, forjados na ética liberal, se sentirem de início “um peixe fora dágua”. Este estudante, já um nerd caricato, apresenta dificuldade com tudo, especialmente a Sociologia: pareceu-lhe inócua. Sente pela primeira vez o gostinho da reprovação. Nas outras, desempenho medíocre. Reencontra a Sociologia já no fim do curso, e então surge uma percepção bem diferente. Fazer as pazes com a perspectiva sociológica foi uma pequena vitória num sistema social e político que nos convida a todo instante a abdicar do pensamento.

Naquela época, como hoje, era recorrente uma crítica enviesada de muitos colegas à própria universidade em que estudavam. Todo processo burocrático era interpretado como “incompetência estatal”, ao passo que todo processo eficiente era creditado a soluções terceirizadas, ao “mercado”. Exemplo: quando faltava papel higiênico nos banheiros, a culpa era do Estado ineficiente. Quando o banheiro estava limpo, era mérito do serviço terceirizado de faxina. Uma psicopolítica que opera nos detalhes e alimenta o mito — difícil de ser desconstruído — da “eficiência” do setor privado. O transporte público, ineficiente, irritante, deprimente, um personagem na vida de todo estudante, era (é) um capítulo à parte. O campus da  UFMG na Pampulha (e da PUC-MG, e de todas) é por si só uma permanente e insidiosa afirmação do culto ao automóvel, incutindo de forma violenta nos jovens estudantes a distinção entre cidadãos com carro e os que dependem do transporte público. O jovem formado numa universidade brasileira tem muitas dúvidas e uma certeza: ele precisa de um carro. Se a família não lhe der um, ele se endividará por dez anos para ter o seu.

Vivia-se então um momento que chamaria de “ressaca do Plano Real”: a coisa já não andava nada bem para a maior parte da classe média, mas ainda não se enxergava ou se admitia uma opção ao PSDB. Lula, pré-candidato em 1997 com poucas chances de vitória no ano seguinte, esteve na faculdade para um pequeno comício bem debaixo da nossa janela na Fafich. A professora neolib não se dignou a cancelar a aula. E vivemos um momento especialmente ridículo de afirmação sem partido da universidade, em que a voz da professora de um curso de JORNALISMO era abafada pelo comício simultâneo de um candidato à presidência que, gostássemos ou não, ali representava um conjunto de forças à esquerda do neoliberalismo vigente. Apesar do ridículo da situação, a presença na aula foi ok. Os alunos do 1º período de jornalismo da UFMG, mesmo não gostando muito daquelas aulas introdutórias à matéria, não pareciam demonstrar qualquer interesse em eleições ou mesmo nos rumos políticos e econômicos da nação em 1998. Depois da aula encontrei o deputado Paulo Delgado pelos corredores. Eu disse que havia votado nele em 1994, ele abriu um sorriso e me cumprimentou como um amigo. Da minha parte não havia repertório ou mesmo interesse para prolongar a conversa para além de um cumprimento. Eu não acompanhava o mandato, não sabia se ele era bom mesmo. Anos depois soube que era dos bons. Naquele ano votei em Lula preferindo intimamente que FHC se reelegesse. Eu votava no PT mas acalentava fetiches consumistas e privatistas, e além disso não me identificava com os brados contra-hegemônicos. Ou seja: eu já era um petista comum, conservador imaginando-se de esquerda. E obviamente não foi numa escola neoliberal, “sem partido”, que pude entender isso. Foi na sarjeta, com amigos e vivências, nessa irreprimível utopia de dar algum sentido à vida e não querer o discurso tão clivado das ações.

Ah, sim: havia o pessoal ligado a partidos e movimentos de esquerda, bem mais presentes nos cursos de História e Sociologia. Naquele contexto já eram tidos como “radicais” e até evitados nas rodinhas pequeno-burguesas. Ninguém parecia inclinado a discutir luta de classes e agenda de movimentos sociais no intervalo das aulas ou numa noite de sábado. Da confortável arquibancada dos espectadores, achava os militantes bitolados e alienados (risos). Empatia pessoal é importante. Tudo é pessoal. Hoje reconheço grande mérito em algumas figuras com quem evitei maior contato naquele tempo. A “escola sem partido” que havia e operava em mim impediu-me uma vivência e uma troca mais rica com eles. A “escola sem partido” que havia e operava em mim cumpriu seu objetivo de encher minha cabecinha de preconceitos, e por fim, numa escala geracional, enfraquecer nossa luta por uma universidade melhor para nós e para quem chegou depois. Perderíamos aquela briga, porque as lutas do tempo talvez não sejam decididas por posiçõezinhas pessoais, mas teria hoje algo melhor a dizer de mim.

Um único edifício foi incendiado na noite do golpe de 1964: a sede da União Nacional dos Estudantes, no Flamengo. Nenhuma das minhas escolas, todas sem partido, me permitiram saber disso enquanto fui um estudante. O edifício ainda está de pé na Rua do Catete, enigmático, vazio e vigiado, um museu em desacontecimento. Entre o que foi e o que poderia ser, metáfora perfeita do projeto brasileiro para os jovens.

Epílogo. Uma pós-graduação, sem partido

Durante anos recusei um percurso acadêmico via MBAs cujos garotos-propaganda são rapazes barbeados e moças de tailleur. Ícones da classe média gerencial, satisfeita com migalhas no entreposto extrativista colonial, para mim são a imagem acabada da subserviência e do cinismo. Enfim, o pós-graduando que se vende hoje em anúncios de pontos de ônibus nunca foi o meu herói. É uma figurinha patética. Cheguei a desistir de tudo disso mas afinal vislumbrei um reencontro com os estudos, além-mar.

Meu curso propunha um reencontro com o manual, com o artesanato do design, com a essência original da tipografia e das artes caligráficas. Era mais propaganda do que a realidade dura da troika portuguesa tinha a oferecer, mas afinal foi um percurso enriquecedor.

Concluí o mestrado na Universidade de Lisboa. O menino que fugia daquele campinho de concentração em Fabriciano nos anos 80, estudante das redes públicas sob os governos dos pecuaristas Helio Garcia (a “Velha Raposa”) e Newton Cardoso (o “Trator”), foi até longe demais. Mais do que o recomendável pela autossuficiente e prostrada mineiridade, sempre sujeita a vetores de inércia, aquela que evita qualquer confronto enquanto desenvolve uma sofisticada linguagem passivo-agressiva.

Tentei escrever minha dissertação com tensão política, sociológica, histórica e filosófica. Uma angulação heterodoxa, e possivelmente destinada ao ostracismo, no repositório monográfico da Faculdade de Belas Artes. Passei uma vida em escolas sem partido, mas fui uma falha do sistema: sobrevivi à pressão das dóxias autoritárias, à insistência cristã do pensamento mágico (que retira do sujeito a responsabilidade por suas escolhas e deixa tudo “nas mãos de Deus”), preservei uma estrutura crítica de pensamento, preservei a aversão a um sistema excludente mantido por essa elite cleptomaníaca, escravocrata e sádica; mantenho algum sonho utópico internacionalista de menino que um dia fugiu de casa achando que com a Caloi aro 14 chegaria às avenidas iluminadas de outros países.

Acima de tudo, uma percepção absolutamente refratária à balela da “Escola sem Partido”. Vejamos: arquitetura, regimentos, salários, conteúdos, métodos. O uniforme dos meninos, o uniforme das meninas. Aulas de 50 minutos. Priorização de conteúdos lógico-matemáticos em detrimento de conteúdos reflexivos. Tudo numa escola reflete uma ideologia. E tudo nas escolas onde pus os meus pezinhos é fruto de uma ideologia de direita. Uma direita que reage a qualquer pensamento crítico, mas que controla a realidade concreta das nossas vidas.

Os chacais que bradam pela “Escola sem Partido” querem, mais que uma escola sem ideologia de esquerda, uma escola sem perguntas.

Certamente a grande lição que aprendi nas minhas escolas-dos-outros, talvez tenha sido esta: existe uma senha, que nessa percepção reativa da existência, te sentencia, te relega a um grupo de pessoas problemáticas a serem cooptadas ou reprimidas.

A senha é uma simples pergunta:

“Por quê?”

( FIM )

Antigo prédio da UNE
Antigo prédio da União Nacional dos Estudantes (UNE) | imagem: Henrique Milen

P.S.

escrevi isso em 2017, deixei o rascunho salvo numa conta duplicada e inativa do Medium, reencontrei por acaso em 2021, quando então publico senão com alguma surpresa, visto que a maldita pauta da “escola sem partido” continua muitíssimo em voga — salve!, minha amiga e seu grupo de pais da escola no WhatsApp — e, veja, só, a coisa vem de muito tempo atrás, como ilustra a capa de A Offensiva, jornal integralista impresso em Nichteroy em 1936 (achei isso no livro Integralismo em Foco — Imagens e propaganda política, de Tatiana da Silva Bulhões, editado pelo Arquivo Público em 2012 no Rio). Ao fim do texto, essa foto do antigo prédio da UNE, que registrei numa horinha de almoço por essa rua do Catete tão farta de histórias esquecidas.

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