Um poema sobre os sentidos do escrever

escrever é psique, lápis e papel
sair do abstrato do pensamento para o registro rabiscado, primeiramente
com estrutura, ordem e legibilidade – no que tange à visão e ao entendimento de quem lê aí que começa o problema
existem formas variadas de comunicação
linguagens que compõem diferentes narrativas para diferentes ouvidos
você pode escolher com quem quer falar
eu escolhi falar comigo
à beira do precipício
para me iludir com o eco
além dos desafios práticos,
a escrita chega a ser um ofício de regurgitar
não consigo deixar de percorrer
a faringe antes de fazê-la
ilustrada pelo açougueiro que corta pequenas lascas da própria carne
da parte interna da coxa
é botar na vitrine de tempos em tempos
em condolências aos outros bichos
que estão ali expostos também
e não podem ou não conseguem
se manifestar
a missão de Prometeu
acho que é por isso que lançar um livro tem status de realização de um ideal
desde o momento em que é lançado
digital ou impresso, acende meu nome
acho que essa é minha única exigência
ter o físico nas mãos
o primeiro exemplar, um troféu
tento fazer bastar
tento não colocar a escrita num lugar sacrificante
de venda do tempo
se assim eu o fizer vou querer cobrar dela
de novo
o prazer que já me deu
vou querer os juros
coloco a palavra no lugar do desejo livre
que iluminado
junta as letras de linhas soltas
formando um corpo de fiapos-gatilhos
que estavam desencapados pelos cantos, na penumbra
por motivo de mudança, negação
ou falta de faxina mesmo
revelados
aos choques na espinha
pelo inconsciente mergulhado naquela mesma espreita
feito resistência sensível à vida
ressignificada quando transcorre para o verbo
me deparo com aquele corpo
exoesqueleto
de pé, postura consciente
de que fez o que podia
então eu decido
deixar ir
totalmente independente
não nos responsabilizamos mais
sentimentalmente um pelo outro
não há dívidas
só entrega
por isso, talvez o lançamento de um livro também ganhe a alcunha de filho,
que acabou de nascer
o meu já nasceu emancipado
expressar a minha experiência
correr o risco das consequências
e assumir a reciprocidade dos encontros
mesmo que cause dor
me deixa menos inteira
abre novos espaços
enquanto materializam a minha existência
não valeria de nada
montar uma personagem escritora para perseguir algum gênero
ou tipo de escrita que seja mais aclamada
só consigo escrever a partir de quem eu acho que sou
do que eu consigo acreditar, não só por idealismo
mas por não conseguir
fugir
por isso, considero que me lançar em livro,
seja equivalente
ao parto de mim mesma
à troca de pele
o meu corpo, visto de fora pelos meus dedos
sem estar preso e estático ao espelho
uma ferramenta de reconstrução
pessoal
do abandono
não sou meu livro, eu fui.
- Carta aberta à minha escrita - 20/07/2021
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