Reivindicando os espaços sociais on-line (um manifesto)

O artista Ivan Papiol propõe uma transformação ética da maneira como ocupamos internet e convivemos nela

Uma ilustração do manifesto “Reivindicando os espaços sociais on-line”. Baixe o original; a interação imagem/texto feita nele não foi possível reproduzir aqui

texto original publicado no Itch.io, traduzido com permissão
por Ivan Papiol/Coletivo Sprout
tradução por Duanne Ribeiro

A internet se tornou uma insuportável e insaciável hidra desprovida de olhos e com cem cabeças

Minha geração é uma geração nutrida por uma internet de micro-comunidades, de fóruns e dos primeiros jogos multijogador on-line. Durante os anos da nossa formação, a internet era um monte de adolescentes atuando como nossos mentores em um momento no qual nossos pais e professores falhavam em construir uma conexão real conosco.

Mas a internet que conhecíamos e na qual crescemos, relativamente intocada pelos males do capitalismo, foi devorada por uma hidra de mil cabeças e não vai voltar mais. Em vez de nos dar espaço para processar o luto de termos perdido a mãe digital que éramos um para os outros, essa hidra é um insaciável, gigantesco filhote de cuco cuja fome só pode ser saciada com a nossa atenção.

Este manifesto nasce da necessidade de coexistir com o monstro que a internet se tornou. O objetivo é transformar o relacionamento que temos com ela de algo predatório para algo mutualista, de tal maneira que o doomscrooling1 seja só um sonho ruim deixado para trás.

A canibalização das redes sociais

Não é segredo que as redes sociais não consistem mais em serem sociais. Pelo contrário, elas são feitas sob medida para que empresas vendam e anunciem produtos e ideologias facilmente digeríveis, e para que os consumidores tenham necessidade disso e depois não use nada disso.

O modus operandi dessas redes envolve lotar tanto os seus próprios servidores quanto os nossos cérebros com um burburinho humanamente impossível de processar. Isso tem a função de ultrapassar nosso limiar de atenção e nublar nossos verdadeiros desejos. O modo pelo qual elas estão sendo bem-sucedidas nisto consiste ao mesmo tempo em jorrar mais “conteúdo” do que qualquer um seria capaz de engolir e em programar o algoritmo para deixar nossos receptores de serotonina famintos por bocadinhos de informação, embalados em pacotes cada vez menores.

Isso pôs minhocas na cabeça de todo mundo, que fazem ser extremamente desafiador formar conexões humanas reais e genuínas a partir das nossas redes sociais. Esse processo, somado à chegada do capitalismo à sua fase tardia, fez dos limiares de atenção e dos espaços mentais das pessoas recursos escassos.

As redes sociais e a internet no geral deveriam ser usadas levando em consideração que o espaço mental das pessoas é limitado por natureza pelo fato de ser orgânico, e que, para além disso, ele está sendo canibalizado por algoritmos digitais programados para servir as necessidades do mercado ao invés das necessidades das pessoas.

Reconectar-se com a natureza (digital)

O objetivo não é fugir da internet e se tornar um ermitão digital. Mesmo que essa seja uma abordagem nobre, ser capaz de existir sem outras pessoas ou dos sistemas estabelecidos pela civilização só pode ser realizado estando a serviço de ou tendo nascido em posições de privilégio. Humanos precisam de outros humanos para que suas necessidades sejam satisfeitas, e a nossa sociedade atual foi construída sobre a carcaça esmagada e morta de sistemas de suporte locais e não-digitais.

Não, nosso objetivo (embora de curto ou médio prazo; a meta de longo prazo será discutida mais tarde no manifesto) é criar um modo de usar a internet de maneira mais consciente. Os algoritmos das redes sociais foram desenhados para subjugar qualquer tentativa de usar esses aplicativos para de fato socializar, e não há transgressão maior da sua essência do que reivindicá-los para se conectar com as pessoas reais por trás das telas.

Para que essa transgressão produza realmente uma marca no sistema, nós precisamos retomar o controle do que colocamos na internet e do que deixamos se infiltrar nos nossos cérebros quando navegamos por ela.

Aplique a lei do silêncio; dissemine boas sementes; priorize pessoas, não empresas | imagem: Ivan Papiol

Sem flood, sem spam, sem flame2

O CORPO DO MANIFESTO

Seja restritivo quanto às vozes que você deixa entrar no seu cérebro

  • Siga, apoie e interaja com humanos, não empresas. Sempre tenha em mente que elas não se importam com o seu bem-estar e que vão, por definição, preferir o lucro.
  • Busque algo que traga valor à sua vida. Entretenimento não é menos valioso que coisas que te deixam mais bem-informado ou que são mais éticas, e tudo isso pode ser igualmente usado como uma muleta quando caímos no doomscrolling. A chave é interagir de maneira consciente.
  • Alguns humanos usam a internet sem ter consideração pelo espaço mental dos outros ao seu redor. Às vezes, talvez, por boas razões, e você deve sempre ter consideração por eles; mas o seu bem-estar vem primeiro.

A lei do silêncio

Uma das principais ferramentas para gerar atenção on-line é induzir as pessoas a entrar em discussões e debates apaixonados. Esse é o modus operandi próprio da direita, mas também é frequentemente cooptado por empresas que desejam um rápido estímulo de atenção. O melhor jeito de lutar contra isto é aplicar “a lei do silêncio”.

  • Não participe de discussões de trending topics.
  • Limite a sua participação a debates com os quais você tenha proximidade local e humana. Você não tem motivo para participar de tretas do outro lado do mundo cujas camadas de complexidade você não vai entender completamente. Além disso, ao entrar nessas discussões você torna mais difícil que as vozes que importam sejam ouvidas.
  • Não usa ferramentas que geram visibilidade para denunciar pessoas, empresas e comportamentos nocivos. Na mesma medida em que você mostra a todos o quão ruim aquilo é, você está alastrando um vírus e dando a ele um alcance infinito (que é exatamente do que um vírus gosta).
  • Cultura do cancelamento não existe e desplataformizar extremistas e abusadores exige mais força do que um grupo de desconhecidos esparsos na internet poderia sequer aspirar a ter. O barulho da internet às vezes colaborou com a situação oposta, empoderando abusadores após um breve período de silêncio ou um pedido de desculpas vazio. Por favor, trabalhem coletivamente off-line e/ou criem conexões no privado para que consequências da vida real tenham lugar nas vidas de quem precisa delas.

Garanta que as boas sementes sejam aquelas que são disseminadas

  • Fale sobre o que trouxe valor à sua vida, mas também explique por quê. A admiração basta, mas esteja consciente do quanto ela é uma muralha entre você e as coisas de que você gosta. Um valor maior e mais diversificado pode ser encontrado ao se engajar com ideias e criadores interessantes e tratá-los como iguais (se você tiver o espaço mental para isso).
  • Priorize compartilhar obras, discussões, eventos e coletivos locais.
  • Selecione, compartilhe, interaja com e discuta coisas que são inspiradoras e/ou valiosas. Isso não significa que você deve montar o seu espaço como uma arca repleta de positividade: notícias sobre lugares e movimentos que não passam na TV são valiosas, o ativismo é valioso, a solidariedade com grupos marginalizados pelo sistema é muito valiosa. Quando nos engajamos com coisas que podem não ser tão positivas não temos de nos manter autoconscientes para não cair no doomscrolling. Nós dependemos uns dos outros para permanecermos em um meio termo confortável onde não dispomos muito ruído diante dos nossos companheiros e seguimos atentos a como nós nos sentimos.
  • Faça com que o que você espalha seja contido e significativo, em vez de bens de consumo curtos e resumidos. Mas uma extensão maior não implica que seja mais significativo, a partir de certo ponto, deixar os posts muito longos só os torna inacessíveis.
  • Limite a quantidade de posts que você propaga. Uma média segura seria de 3 a 5 ideias por dia no máximo, na medida em que essa é a quantidade que um humano pode conscientemente digerir e processar de modo significativo. Compartilhar mais do que isso embarga o alcance de bons materiais e contribui para a sobrepujante enchente de “conteúdo”.
  • Não espalhe coisas sobre as quais você não se importa apenas para se manter ativo ou não ser esquecido. Ser esquecido não é relevante quando existimos em um sistema que se apoia em conexão genuína.
  • Embora ferramentas de inteligência artificial (IA) com sólidos fundamentos morais* possam hipoteticamente ser implementadas como práticas criativas de formas interessantes, tudo o que a IA pode fazer por si só é ruído que exige um consistente input humano para ter qualquer valor. Independentemente das ferramentas que você usa, permaneça agressivamente humano.

* Eu não conheço nenhuma ferramenta de IA com sólidos fundamentos morais e eu realmente não me importo se elas existem agora ou se existirão no futuro. Por favor, não entre em contato comigo ou qualquer um dos meus amigos para falar sobre assuntos de IA.

Priorize pessoas, não “conteúdo”

O termo “conteúdo” tal qual a internet o usa hoje é a raiz de todo o mal, e nós podemos indicar que tudo foi pro caralho quando começamos a usar essa palavra de forma não-irônica. Em nenhuma circunstância, cogite pensar que esse é um conceito razoável. “Criação de conteúdo” é podridão cerebral. Trate qualquer um usando esses termos sem aspas ou sem sarcasmo como tendo sido corrompido. Essas pessoas vão precisar de reabilitação para se tornarem capazes de usar a internet de modos que não incluam danoso, performativo ou desgastante.

Reabilitação é sempre possível, guiada pela compaixão por si mesmo. Aqui seguem algumas linhas de ação se você suspeita ter sido corrompido3:

Não chame o que você cria de “conteúdo”. Chame de arte, chame de escrita, chame de música… simplesmente o chame do que ele é.

Não se chame de “criador de conteúdo”. Você é um artista, um criador, um humano… o que cair melhor.

Você não é um gerador de clicks e acessos, permita-se conectar-se com o seu trabalho nomeando-o de maneira adequada e reconhecendo a si igualmente.

  • As plataformas preferem negatividade em vez de gentileza, então seja gentil para dar o troco.
  • Se você decidir se engajar em discordar de um post, não ponha o foco na pessoa por trás dele. Se é um babaca, não precisa de mais exposição; se é um cidadão bem-intencionado com uma ideia ruim, não precisa ser humilhado sob um holofote.
  • Avisos de gatilho são importantes, e por isso devem ser usados de forma razoável. Avisos de gatilho de mais faz com que se tornem inúteis rapidamente, e de menos torna toda a rede insegura.
  • Não obstante o que um meme é em sua essência, memes na internet devem ser feitos para nichos e vir do coração, não de um desejo de ser visto e compartilhado pelas maiores quantidades possíveis de gente.

O anonimato é um canivete suiço, pode ser usado para muitas coisas

A história da internet é cheia de acontecimentos que provam que o anonimato é uma ferramenta aterrorizante. Tendo se tornado um dos principais pilares da internet, possibilitou que grupos anônimos tivessem o poder de mobilizar protestos e movimentos sociais e gerar mudanças na vida real, mas também foi usado, com recurso a bots, para manipular processos democráticos. Tem sido fundamental para que grupos marginalizados criassem espaços seguros em situações que tornavam impossível realizar isso no mundo off-line, mas igualmente fácil foi torná-lo uma arma para assediar pessoas e expulsá-las desses mesmos espaços de segurança. É um aspecto muito complicado da internet para que este manifesto possa fazer uma declaração preto no branco sobre ele!

Acima de tudo, faça o que te mantém seguro.

A análise de como o anonimato nos afeta como humanos é decisiva: ele pode facilmente ser transformado em um ponto de apoio para usar a internet de forma desonesta e sem pagar o preço disso na vida real, mas, para outras pessoas, pode ser uma ferramenta muito valiosa que permite navegar pelos espaços on-line de um modo exatamente inverso, com uma honestidade que não se consegue por em prática na vida real.

O anonimato pode ser um instrumento de extrema desconexão e desengajamento, mas também pode ser usado para explorar sem ser julgado ou sem se comprometer, por ora, com uma identidade.

Deve-se levar em conta as condições do leitor na vida real para de fato analisar como o anonimato pode estar sendo prejudicial ou benéfico no que se refere à sua habilidade de se conectar com os outros. Se este manifesto tiver de fazer uma afirmação cabal sobre esse tema (e eu sinto que tem, considerando o quão importante para a internet ele é), essa pode ser: seja tão genuíno, rudimentar e humano quanto possível sem se colocar em risco.

O que o anonimato tem feito contigo e por ti? | imagem: Ivan Papiol

Tome cuidado com as minhas palavras, sou uma das cabeças da hidra

Uma sombra que tem pesado sobre a minha consciência enquanto escrevo este manifesto é o fato de que eu sou atualmente parte de um grupo de humanos organizado na forma de uma empresa que precisa convencer as pessoas na internet a gastar dinheiro com as coisas que criamos, de modo que não tenhamos que trabalhar para outra empressa em que não tenhamos controle sobre o nosso próprio trabalho.

Como criadores que precisam de dinheiro para pagar as contas de luz, a conexão à internet salvou nossa pele e continua a fazer isso, nos ajudando a atingir contatos genuínos com outros criadores e com as pessoas que estão dispostas a nos dar dinheiro. Além disso, os jogos de videogame que fazemos precisam ser vistos por um monte de gente paa que a gente possa fazer mais deles!

Isso significa que não importa o quão boas sejam as nossas intenções, como uma empresa não dependemos da participação nos sistemas que construíram e refinaram os algoritmos responsáveis pelo doomscrolling. A realidade é que eu não consigo seguir o meu próprio manifesto durante as 24 horas do meu dia, e a maioria das pessoas lendo isso provavelmente não conseguirá também.

O cenário ideal para mim seria que todos nós puséssemos a nossa segurança e bem-estar à frente de tudo, até o ponto em que a publicidade empresarial se torne imprestável nesses espaços. Isso, para fazer com que a internet seja um lugar onde nós, de maneira autêntica, compartilhamos e nos engajamos com coisas de que gostamos, não aquelas que trabalham melhor com o algoritmo.

Ter de continuar com essa dança faz com que eu e todos que trabalham comigo nos sintamos infelizes, então, se as empresas não pudessem se safar nós seríamos livres!

Eu não acho que é realista esperar que isso ocorra no curto espaço de tempo que uma empresa como a nossa pode sobreviver, mas talvez nós possamos ver esse aspecto da nossa vida profissional se tornar menos desprezível se pessoas o suficiente transformarem o modo como usam os espaços on-line.

Sinto que devo falar sobre as perspectivas de longo prazo a que este manifesto aspira, mas, na verdade, este não é o sentido dele

A internet antiga era boa. Os fóruns, os blogs, as páginas pessoas interconectadas… nós sentimos tanta falta de tudo isso! Mas conforme os anos vêm um depois do outro, nós temos de entender o mundo como organismo que envelhece e que não pode voltar a ser como era. A internet, sendo um sistema orgânico feito por seres orgânicos que o alimentam com pensamentos, não é diferente.

Na medida em que o mundo e os seus sistemas envelhecem como os humanos, nós temos de lidar com a a melhoria deles como alguém que se reconecta com coisas de que gostava antigamente. A nostalgia pode ser um bom impulsionador para tal, porém, no ato de reconstruir os bons tempos que perdemos, temos de entender que o resultado será diferente. Algumas coisas não poderão ser recuperadas. E tudo bem, isso faz parte do envelhecimento.

A nova internet que aspiramos construir será livre desse ruído que percebemos nunca ter sido necessário. O burburinho vai permanecer, mas ele soará como o zumbido de abelhas polinizadores interconectadas. Um amplo conjunto de vozes sendo ouvidas não se torna uma experiência esmagadora quando há sistemas de comunicação fortes e de qualidade em ação. No futuro, os espaços sociais on-line serão uma cidade erguida dentro da carcaça de uma hidra que nós matamos juntos, e cada uma das suas cem caveiras será uma casa. Um dia.

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