Os Amesha Spenta, platonismo e zoroastrismo em Sohravardî

A religião iraniana antiga e os anjos que seriam como ideias platônicas e “os verdadeiros governantes deste mundo”

Detalhe do Templo de Fogo, local de culto a Zoroastro, no Irã | imagem: peuplier

Platão disse no Primeiro Alcibíades que o príncipe herdeiro persa foi instruído, ainda jovem, no magismo de Zoroastro, que consistia no culto dos deuses (PLATÃO, 2007, p. 263). E, na Antiguidade, já circulavam histórias de supostos contatos entre Platão e os magos persas: Platão, velho e doente, teria recebido a visita de um mago persa interessado em conhecê-lo; em outra versão, Platão é homenageado por um mago por ter completado 81 anos (HORKY, 2009).

Plutarco (2022) situou Zoroastro como tendo vivido 5000 anos antes da Guerra de Tróia; Apuleio (1909) afirmou que ele tinha sido o mestre de Pitágoras; Clemente de Alexandria (2005) afirmou que se este se entusiasmou com os ensinamentos do mago persa ao viajar pelo Oriente. Já os neoplatônicos – especialmente Porfírio (2022) e Proclo (2012) – fizeram alusões a Zoroastro, desde mencionar a existência de várias figuras com esse nome até relacioná-la aos mistérios de Mitra, a divindade indo-iraniana.

De Platão e os neoplatônicos até Gemistos Plethon no Renascimento, existe, portanto, uma longa tradição de vinculação entre platonismo e zoroastrismo. E incluído nela, mas situado no Islã oriental e medieval, encontra-se o filósofo persa Shihâboddin Yahiâ Sohravardî (1155-1191), que teria antecipado o próprio Plethon, como lembra Corbin (2007, p. 214).

Veja também:
>> “Mundo Imaginal Em Sohravardî“, por Daniel Plácido

Neste texto discorreremos sobre essa síntese entre platonismo e zoroastrismo realizada por Sohravardî, à luz das figuras conhecidas como Amesha Spenta, entidades angélicas zoroastrianas que ele identificou com as ideias ou arquétipos platônicos. Para tanto, falaremos primeiro, um pouco, do próprio zoroastrismo, e depois de Sohravardî e da angeologia.

Zoroastrismo

Segundo Eliade e Couliano (2003, p. 277-278), a religião iraniana pré-zoroástrica tinha semelhanças com a religião da Índia védica, provavelmente com remissão a uma origem comum, pois ambas, entre outras coisas, faziam uma divisão dos deuses em ahuras (asuras) e devias (devas).

Zaratustra (chamado pelos gregos de Zoroastro) seria um sacerdote e ao mesmo tempo um reformador religioso, que nasceu no Irã oriental em uma data bastante controversa. Para alguns, teria sido entre 1500 e 1200 AEC (TATSCH, 2012, p. 104); para outros, por volta de 1000 AEC (ELIADE E COULIANO, 2003, p. 277); e, para outros ainda, entre 1000 AEC e o século VI AEC, provavelmente 700 AEC (FILORAMO, 2005, p. 21-24).

Zoroastro a princípio teria abolido os sacrifícios de animais e o uso da planta sagrada haoma, representando uma revolução puritana nos costumes, assim como teria introduzido uma mescla de monoteísmo e dualismo que contrastava com o antigo politeísmo. Nessa visão teológica e ética, Ahura Mazda (daí essa religião também ser chamada de mazdeísmo), o Senhor Supremo ou o Sábio Senhor, teria criado o contraste metafísico entre a verdade (asha) e a mentira (druj), possibilitando que seus dois filhos, Spenta Mainyu (Espírito Benfazejo) e Angra Mainyu (Espírito Negador), escolhessem entre asha e druj. Dessa forma, Spenta Mainyu representaria os bons pensamentos, palavras e atos, e Angra Mainyu representaria os maus pensamentos, palavras e atos. Neste ínterim, em uma remodelação teológica, os ahuras tornaram-se deuses bons e os asuras deuses maus (ELIADE E COULIANO, 2003, p. 278-279).

Não adentraremos aqui em detalhes da rica cosmologia e escatalogia zoroastrianas. Apenas indicamos que ela enfatiza não tanto uma dualidade entre matéria e espírito, mas entre duas realidades espirituais, uma positiva (representada por Spenta Mainyu) e uma negativa (representada por Angra Mainyu, em certos textos chamado de Ahriman), que acabam por se mesclar, até o tempo da separação final e consequente triunfo do bem, conforme Filoramo (2005, p. 29-30).

Amesha Spenta

Intermédios em relação ao monoteísmo representado por Ahura Mazda e ao dualismo representado pela oposição teológica de seus filhos Spenta e Angra, podemos considerar a existência de seres (similares aos anjos) a meio caminho entre o deus supremo e a humanidade, que são os Amesha Spenta, os Imortais Benfazejos, os quais expressam tanto as virtudes de Ahura Mazda quanto os atributos dos seres mortais que escolheram seguir a verdade, assim podendo até chegar a se unir a eles e ao próprio Spenta Mainyu (ELIADE E COULIANO, 2003, p. 279).

Esse seres intermediários entre Ahura Mazda e os seres humanos são no número de seis: Vohu Manah, bom pensamento; Asha, verdade; Khshathra, poder; Armaiti, devoção; Haurvatat, integridade; Ameretat, imortalidade. O próprio Ahura Mazda contaria como sétimo (FILORAMO, 2005, p. 29). Já Eliade e Couliano (2003, p. 279) também apresentam uma versão com seis nomes: Vohu Manah (Bom Pensamento), Asha Vahishta (Verdade Perfeita), Khshathra Vairyia (Senhoria Desejável), Spenta Armaiti (Devoção Benfazeja), Haurvatat (Plenitude) e Ameretat (Imortalidade) – ficando subentendido que Spenta Mainyu seria o sétimo deles. E em textos datados por volta do século IX, esses seres serão considerados personificações dos elementos naturais: Vohu Manah (bovino), Asha Vahishta (fogo); Khshathra Vairyia (metal); Spenta Armaiti (terra); Haurvatat (água); Ameretat (plantas); sendo Ahura Mazda (Ohrmazd) acrescentado como o guardião especial do homem justo (BOYCE, 2011).

Conforme o zoroastrismo se desenvolveu, especialmente entre o século VII AEC e o período da conquista islâmica da Pérsia, no século VII EC (FILORAMO, 2005, p. 21), os antigos sacerdotes, conhecidos como âthravans e magos, reinterpretaram a mensagem de Zoroastro e transformarem os Amesha Spenta em yazatas (divindades plenas ou personificações).

Sohravardî e os Amesha Spenta

No aspecto histórico-filosófico, o filósofo e mística persa Sohravardî considera que existe uma linhagem de sábios ou expoentes da Luz, relacionada aqui ao Oriente como nascente espiritual, que alcançaram e revelaram à humanidade uma sabedoria iluminativa, estando entre eles Hermes, Zoroastro, Platão, além de uma porção de outros sábios e figuras, algumas puramente míticas, linhagem na qual ele mesmo se insere (CORBIN, 1946, p. 19).

Sob o aspecto metafísico, o pensamento de Sohravardî pode ser considerado uma filosofia da irradiação da Luz, a qual representa uma síntese entre neoplatonismo, avicenismo e zoroastrismo, com elementos herméticos e sufis.

Na sua obra A Filosofia da Iluminação (Kitab Hikmat al-Ishraq) ele concebe a realidade como um emanação de substâncias angélicas, as quais derivam de um primeiro princípio, chamado de Luz das Luzes (Nur al-anwar), semelhante ao Uno plotínico mas com ressonâncias corânicas. Ela se projeta como Luz da Glória (Xvarnah) e gera uma primeira condensação, um Primeiro Intelecto ou Arcanjo (Bahman), o qual equivale a Vohu Manah. Este, mirando a Luz primeira, recebe sua iluminação e gera uma nova luz, que agora recebe tanto a luz da Luz das Luzes quanto a luz do Primeiro Intelecto, gerando-se uma cadeia de luzes inteligíveis ou anjos, como irradiações contínuas que repetem e amplificam o processo.

Sohravardî divide essa cadeia de luzes angélicas, por sua vez, em uma ordem vertical (logitudinal) e uma ordem horizontal (latitudinal). A ordem vertical tem uma hierarquia, enquanto a ordem horizontal (o aspecto masculino da ordem vertical) não tem. Sohravardî a identifica, a princípio, tanto com o mundo platônico das ideias quanto com os Amesha Spentas do zoroastrismo. Já o aspecto feminino da ordem vertical gera os céus e os planetas que os anjos compartilham e movem com seu amor (sendo, na realidade, cristalizações de suas luzes).

Sohravardî chama os anjos da ordem horizontal ou latitudinal de “senhores das espécies”, e na sua obra Hikmat al-Ishraq afirma que Khordad (Haurvatat) é o arquétipo da água no Reino dos céus, Mordad (Ameretat) é o das árvores e Ordibehesht (Asha Vahishta) é o do fogo (SUHRAWARDI, 1999, p. 108), fogo que também é o “talismã” de Ordibehesht, como uma obra de magia luminescente (SUHRAWARDI, 1999, p. 128).

Para concluir: como Corbin (1946, p. 34) assinala, isso não se trata de uma simples retomada do platonismo, pois o anjo aqui não é um mero arquétipo de algo físico, o conceito inerte de algo concreto, visto que cada espécie corporal é uma projeção ou obra teúrgica de seu anjo correlato, realizada na escuridão morta do barzakh. O anjo e seu objeto estão relacionadas como um corpo e sua alma, ele é uma hipóstase, ou seja, um ser personificado, não um mero conceito ideal, como diz Nasr (s/d), “esses anjos são os verdadeiros governantes deste mundo que guiam todos os seus movimentos e dirigem todas as suas mudanças. Eles são ao mesmo tempo as inteligências e os princípios do ser das coisas.”

Bibliografia

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TATSCH, Flavia Galli. “Persas”, In: As religiões que o mundo esqueceu, Pedro Paulo Funari (org.). São Paulo: Contexto, 2012, p. 103-115

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