Mundo Imaginal Em Sohravardî

Sohravardî foi pioneiro da concepção de mundo imaginal, realidade além dos sentidos acessível pelo sonhador e pelo iniciado

página de “Vade mecum des fidèles d’amour”, de Sohravardî | imagem: revista Philitt

O filósofo persa Mir Damad (c. 1561-1631), mencionado pelo filósofo e orientalista Henry Corbin, diz que certos filósofos entre os estóicos, os peripatéticos e os iluminacionistas situaram um mundo intermediário entre o mundo do desconhecido (gaib), que é o objeto do intelecto puro (ma ‘qul), e o mundo dos fenômenos, que é o objeto da percepção sensível (mahsus). Denominaram esse mundo com diversos nomes: Hurqalya, mundo imaginal; Barzakh, oitavo clima, terra da verdade, imaginação separada. Eles afirmam ainda: a imaginação separada, totalmente autônoma, é um mar imenso, um rio sublime, enquanto a imaginação imediata ao homem terreno é um pouco de transbordamento, um afluente desse rio. Os níveis são diferentes quanto ao espírito, a beatitude, a sutilidade e espiritualidade dos seres; estão fora do mundo, do tempo e do espaço ordinários. O nível superior faz limite com o mundo da Inteligência e interfere em seu horizonte, enquanto o nível inferior o faz com o mundo sensível e seu horizonte; entre os dois níveis há uma infinidade de graus e maravilhas infinitas. Tudo o que se concretiza no mundo da matéria, corpos, formas, dimensões, distâncias, posições, figuras, movimentos sabores, perfumes, sons etc., todos são a imagem arquetípica e tudo procede da imagem-arquétipo, e por si mesmos subsistem (CORBIN, s/d, p. 2-8).

Ora, em termos histórico-filosóficos, a concepção de mundo imaginal – a Alma do mundo dos antigos transfigurada em mundo da imaginação pelos filósofos islâmicos – foi desenvolvida de forma pioneira pelo grande filósofo e místico persa, Shihâboddîn Yahîa Sohravardî (1155–1191), fundador da escola iluminacionista. O objetivo deste artigo é fazer uma breve introdução desse conceito formulado pioneiramente por Sohravardî.

O mundo imaginal em Sohravardî

Claramente influenciado tanto pelo neoplatonismo quanto por Avicena (980-1037), Sohravardî concebe a realidade como uma contínua processão ou irradiação da Luz, desde a Luz das Luzes (Nûr al-anwâr), a qual se projeta como Luz de Glória (Xvarnah) e origina uma primeira condensação ou primeiro Intelecto ou Arcanjo (Bahman), até a escuridão do mundo físico, entre as quais situam-se diversos níveis hierárquicos de anjos ou de substâncias angélicas. No entanto, mesmo os planetas são, para Sohravardî, cristalizações da luz, e o amor dos anjos é o que move os céus visíveis; cada coisa no mundo físico é um ícone a expressar uma influência angélica.

Em O livro da sabedoria da iluminação, Sohavardî concebe no plano metafísico das luzes as seguintes instâncias: 1) os mundos das luzes dominantes ou da luz pura; 2) o mundo das luzes regentes ou organizadoras; 3) o mundo dos istmos ou barreiras (Barzakh); e 4) o mundo das figuras incorpóreas ou imagens suspensas e iluminadas, ou seja, o imaginal (SUHRAWARDÎ, 1999, p. 149-150).  Como salienta Edrisi Fernandes, sob outro plano de enfoque, Sohravardî propõe a seguinte estrutura: 1) os mundos dos intelectos ou inteligências (Jabarût); 2) o mundo da Alma (Malakût), contendo as Almas Celestes e as almas humanas; 3) o mundo do Mulk (Domínio) e do corpo material. A esses ainda pode ser acrescentado (4) o mundo imaginal, a saber, o mundo das figuras incorpóreas (FERNANDES, 2007, p. 535-536).

De acordo com Andrea Paula De Vita, a tripartição Mulk-Jabarût-Malakût já apareceu antes no teólogo e sufi Al-Ghazali (c. 1058-1111), o qual a tirou, com modificações, do sufi Abu Talib al-Makki. O Malakût é para Al-Ghazali o mundo angélico em que se encontra a Tábua preservada e estão inscritos os desígnios divinos; o Jabarût é um mundo similar ao mundo platônico das Formas, em que cada objeto terreno tem seu correlato; e o Mulk é o mundo fenomênico ou sensível, criado pela determinação divina (DE VITA, 2003, 48-49).

E, na realidade, segundo o comentário de L. W. C. van Lit, em suas obras Sohravardî oscila quando fala desses mundos, ora apresentando-os sob o número de três, ora sob o de quatro, pois, possivelmente, ainda estava elaborando a ideia nova de um quarto mundo a ser acrescentado aos outros três: o mundo imaginal ou “mundo das imagens suspensas” (VAN LIT, L. W. C., 2014, p. 188-194).

Acrescenta Corbin (199, p. 38), Sohravardî, em certo aspecto, chama o Jabarût de “Oriente maior” e o Malakût, de “Oriente menor”. E entre eles está o “Oriente Médio”: o mundo imaginal. E temos ainda o mundo físico e dos elementos, considerado o “Ocidente”, o lugar de exílio – a escuridão da matéria – para o qual as almas descem.

Afirma Sohravardî no Livro das conversações:

Quando você aprende dos escritos dos sábios antigos que existe um mundo possuído de dimensões e extensão, além do pleroma de Inteligências e do mundo governado pelas Almas das Esferas, e que nele há cidades incontáveis entre as quais o próprio Profeta mencionou Jabalqa e Jabarsa, não se apressem a proclamar uma mentira, pois há peregrinos do espírito que vem vê-lo com seus próprios olhos e acham o desejo do coração deles. Quanto à multidão de impostores e falsos sacerdotes, eles negarão o que você viu mesmo se você trouxer provas para expor sua mentira. Portanto, permaneça em silêncio e tenha paciência, pois se você chegar eventualmente ao nosso Livro da Teosofia oriental, sem dúvida, você entenderá algo do que acabou de dizer, desde que seu iniciador lhe dê orientação. Caso contrário, seja um crente na sabedoria. (apud DE VITA, 2003, p. 2; tradução nossa)

Quem seriam esses “sábios antigos” aos quais Sohravardî se refere na passagem citada? Talvez sejam os sábios e reis persas antigos, ou talvez sábios gregos como Platão e Pitágoras – ou ambos –, cujas sabedorias Sohravardî pretendia reunir novamente. Ou, quem sabe ainda, os mestres e sábios sufis anteriores a ele, Sohravardî.

Esse mundo mencionado, mesmo que sutil, seria composto de extensão e dimensões, e estaria além do Jabarût e do Mundo das Almas das Esferas planetárias (Malakût). Mesmo já aparecendo na cosmologia islâmica a ideia da Alma do Mundo (CAMPANINI, 2010), com ecos neoplatônicos, Sohravardî dá ao mundo imaginal uma tessitura e uma função próprias enquanto mundo intermediário. Nele inclusive existem muitas cidades imaginais, como as cidades misteriosas de Jabalqa e Jabarsa (às quais uma tradição iraniana posterior acrescentou Hurqalya), situadas além do Monte Qaf (mítica cadeia montanhosa a circundar a Terra). A referência sobre essas cidades veio de um dito atribuído ao profeta Muhammad (sobre ele a paz e benção), na História dos Profetas e Reis do historiador persa Tabari (AL-TABARI, 1989, p. 237-244), dos séculos IX-X EC. (Cf. JAMBET, 2006, p. 37 ss.).

Contudo, o que mais interessa a Sohravardî é sustentar que os “peregrinos do espírito” podem ter acesso direto a esse mundo, objetivo e real sob certo aspecto. Em outra passagem de sua obra máxima, O livro da sabedoria da iluminação (ou Livro da teosofia oriental, como traduz Corbin), escreve ele:

O mundo das realidades suprassensíveis, isto é, o mundo imaginal, que os profetas, os amigos de Deus e ainda outros encontram, às vezes apresentam-se sob a forma de versos de escritura; às vezes, pela audição de determinada voz, que pode ser suave e doce e pode ser até aterradora. Às vezes, eles contemplam a forma daquilo que é; às vezes, eles veem formas humanas de extrema beleza que lhes dirigem as mais belas palavras e com eles conversam demoradamente sobre o mundo invisível; às vezes, essas formas se lhes apresentam como figuras que são resultado da arte do pintor mais aprimorado. Às vezes, elas se apresentam como um prado; às vezes, têm formas e figuras ’em suspenso’. Tudo o que percebemos em sonho – montanhas, oceanos e continentes, vozes extraordinárias, indivíduos – perfaz muito das figuras e formas subsistentes… Montanhas e oceanos que são vistos em sonhos, quer se trate de sonho verídico ou de sonho enganoso, como o cérebro ou qualquer uma de suas cavidades os conteriam? Do mesmo modo, aquele que dorme, despertando de seus sonhos, deixa o mundo das formas imaginais autônomas sem ter de se colocar em movimento nem ter o sentimento de uma distância material com relação a ele, aquele que morre para este mundo encontra a visão do mundo da luz sem ter de fazer movimento, pois ele próprio está no mundo da Luz. (SOHRAVARDÎ, s/d, p. 86)

Neste mundo sui generis, encontrado pelos profetas e amigos de Deus, aparecem letras, sons, formas e figuras que tanto podem ser uma réplica daquilo do que vemos quando estamos acordados no mundo material quanto podem adquirir vida e aspectos cambiantes, inclusive perfazerem aquelas imagens que são percebidas em sonhos e imaginadas por artistas. Essas imagens têm uma existência real e autônoma, segundo Sohravardî e, por isso, não podem estar contidas apenas no cérebro de quem sonha ou imagina.

Este é um mundo de Luz que pode ser alcançado através da morte iniciática da alma para este mundo material, pois ela está dentro do mundo de luz – ou melhor, esse mundo está dentro dela.  Segundo Christian Jambet, a ideia de uma Terra de Luz já estava presente tanto na tradição maniqueísta quanto na famosa obra Teologia de Aristóteles do século 9 EC, referências que não eram desconhecidas para Sohravardî. No entanto, ele realiza algo verdadeiramente novo: concebe o imaginal como o nível inferior do mundo da alma e o torna uma hipóstase de pleno direito, de acordo ainda com Jambet. Ele dá ao mundo imaginal seu status ontológico próprio, sua condição autônoma.

Conclusão

Sohravardi foi o primeiro filósofo-místico islâmico a falar, enquanto tal, do mundo imaginal. Difícil ou improvável rastrear em que medida essa ideia do mundo imaginal corresponde nele a uma recepção de influências histórico-filosóficas anteriores ou se é mais resultado de sua própria intuição e genial elaboração. Parece coerente falarmos sobre uma posição equilibrada: ele faz uma inovação conceitual e experimental a partir, contudo, de um material em parte preexistente.

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Nota do editor:

Mais informações sobre o tema estão neste artigo do mesmo autor.

Bibliografia

AL-TABARI, Ibn Jarir. The History of al-Tabari vol. 1: General Introduction and From the Creation to the Flood, tradução de Franz Rosenthal. New York: State University of New York Press, 1989.

CAMPANINI, Massimo. Introdução à Filosofia Islâmica. São Paulo: Estação Liberdade, 2010.

CORBIN, Henry. En Islam Iranien: aspects spirituels et philosophiques, vol. II, Sohrawardi et les platoniciens de Perse. Paris: Gallimard, 1991.

_____________. Del Barzaj o el mundo intermedio. Fonte: Revista “El Mensaje de Az- Zaqalain”, nº 7, tradução para o espanhol de J. F. García Cruz, s/d.

DE VITA, Andrea Paula. La sabidúria como experiencia iluminativa y reflexiva: Suhrawardi y la ciência de las luces. Buenos Aires: Universidad de Sevilla/Facultad de Filosofia, 2003. (Dissertação de Doutorado)

FERNANDES, Edrisi. Shihâb al-Dîn Suhrawardî al-Maqtûl. In: O Islã Clássico: Itinerários de uma cultura, Rosalie Helena de Souza Pereira (org.). São Paulo: Ed. Perspectiva, 2007, pp. 517-563.

JAMBET, Christian. A lógica dos orientais: Henry Corbin e a ciência das formas. São Paulo: Globo, 2006.

MORA, Fernando. Ibn ‘Arabi: Vida y enseñanzas del gran místico andalusi. Barcelona: Kairós, 2011.

PLACIDO, Daniel Rodrigues. Sohravardî e as origens da noção de mundo imaginal, In: Revista Litteris, n. 17, Junho de 2016, pp. 1- 19.

SOHRAVARDÎ, Shihaboddin Yahia. O livro da sabedoria oriental. Acesse.

SUHRAWARDÎ, Sihâb al-Dîn Yahya. The Philosophy of Ilumination, John Walbridge & Hossein Ziai (orgs.). Provo/Utah: Brigham oung University Press, 1999.

VAN LIT, Lambertus Willem Cornelis. Eschatology and the World of Image in Suhrawardī and His Commentators. Utrecht: Universiteit Utrecht, 2014 (Dissertação de Doutorado)

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