Uma trajetória pela cultura japonesa, por conta de anime e mangá

Meu envolvimento com a língua e a literatura japonesas, entre o trabalho de tradução e as questões de gênero, sexualidade e feminismo

“Ouço que é besteira estudar japonês por gostar de anime e mangá. Mas essas são as principais portas para a cultura japonesa!” | imagem: cena do anime “Bungo Stray Dogs”, que tem como personagens grandes escritores

Comecei a estudar japonês ainda pequeno, com 10 anos – comecei e nunca mais parei. Sempre fui muito, muito apaixonado por anime e mangá. Daí veio o primeiro interesse em aprender a língua: para ver os animes e ler os mangás no original, sem legenda. Ingressei, então, em uma escola de língua e cultura japonesas na minha cidade, Sorocaba (SP). À medida que ia estudando, percebi que essa língua é muito mais maravilhosa do que eu pensava. Esse primeiro curso incluía aulas de cultura, de modo que aprendi bastante sobre culinária, costumes, história, visões de mundo, instrumentos musicais e eventos culturais do Japão. Foi uma imersão. Até hoje agradeço a oportunidade que minha mãe me deu de ver o mundo para além daquele que eu imaginava então.

Depois de quase dez anos estudando nessa escola, fui fazer o Kumon em Sorocaba e, depois, em Piedade (SP), a fim de concluir os cursos de Nihongo e Kokugo. Graças aos sensei do Kumon, fui atrás das minhas proficiências, tirando o equivalente ao básico (N4) e o intermediário (N3). A vida me “atrapalhou” e acabei não conseguindo tirar o N2, equivalente ao avançado. Vim morar em São Paulo em 2017 por ter conseguido um bom emprego e não parei de estudar por aqui também: fiz cursos na Aliança Cultural Japão-Brasil e, agora, estudo na Universidade de São Paulo (USP) e me preparo, enfim, para a prova de proficiência de nível avançado.

Antes de entrar na faculdade de letras, cursei pedagogia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), polo Sorocaba, onde entrei em contato com algumas professoras e mostrei interesse por criar um grupo de estudos sobre gênero, sexualidade e feminismos. Mais tarde, o grupo de estudos se tornou um grupo de pesquisa reconhecido pelo CNPq. A partir de 2011, começamos a nos reunir para ler clássicos dos estudos sobre o tema, indo desde Freud, Reich e Beauvoir até Spivak, bell hooks e Gloria Anzaldúa. Assim, eu me encontrei na pesquisa. Na UFSCar, minhas pesquisas foram todas sobre gênero, sexualidade e feminismo no que tange à formação de professores: como os cursos de licenciatura da UFSCar Sorocaba formam o corpo discente para atuar em temas tão relevantes?

Em 2014, me formei em pedagogia, mas sempre continuei com o interesse e a vontade de estudar letras. Finalmente, em 2019, o meu marido me convenceu a me arriscar: acabei me inscrevendo na Fuvest e passei! Em 2020, entrei no tão sonhado curso de letras da USP já com a intenção muito firme de fazer a habilitação em japonês. Em 2021, após um ano de disciplinas introdutórias, consegui entrar na habilitação e comecei meus estudos em japonês na graduação. 

Com a infeliz vinda da pandemia, os eventos acadêmicos passaram a ser on-line. As atividades foram muito divulgadas e surgiram diversos cursos sobre estudos feministas, tradução feminista, literatura japonesa etc. Tive a oportunidade de assistir a um desses eventos em que a tradutora Rita Kohl, uma das maiores tradutoras de japonês no Brasil, falou sobre tradução feminista, e depois pude fazer um curso sobre tradução de literatura japonesa no Brasil ministrado por ela. Rita abordou bastante a questão da tradução feminista e o idioma japonês enquanto uma língua carregada de aspectos sexistas (assim como toda língua carrega a visão de mundo daquela sociedade, o japonês também possui suas especificidades).

Essa problemática me tocou profundamente. Eu me interessei, academicamente, pelos estudos feministas há mais de uma década, mas confesso que não imaginava que a tradução poderia ser um objeto de estudos do feminismo – uma ignorância, realmente. Passei, então, a pesquisar sobre autoras e autores que falassem sobre a tradução feminista, o feminismo na linguagem, estudos japoneses dentro do feminismo e o feminismo dentro dos estudos japoneses. Dessa forma, cheguei ao meu problema de pesquisa de iniciação científica (IC) na USP: entender como a tradução pode servir como ferramenta na luta feminista e como a língua japonesa representa o sexismo em seu original – e também busco compreender como isso é transmitido no momento da tradução (ou não). A minha pesquisa está ainda no início, então não posso ainda trazer muitos dados.

Além da IC, atualmente eu tenho tocado um projeto de ensino de japonês on-line, chamado Tomoeda – Japonês Personalizado. Como vejo muita gente sofrendo para achar algum curso que respeite o ritmo individual ou que simplesmente quer aprender japonês o suficiente para ler um mangá e não tem o menor interesse na proficiência ou em viajar, achei interessante pensar em um projeto que fosse 100% focado no interesse particular de quem quer aprender. Hoje, tenho vários alunos que estão fazendo japonês só por curiosidade, sendo que muitos deles já têm conhecimento de outras línguas, mas nenhuma escrita com outro alfabeto. Uns querem só aprender a ler mangá. Outros estão se preparando para as provas de proficiência. Para mim, é uma forma muito recompensadora de trabalho, porque os alunos realmente percebem que estão atingindo os seus objetivos.

Livros didáticos utilizados por José | imagem: José Rocha Neto

Mais recentemente entrei para a revista Nemuri, uma publicação que desenvolvo com Camila Telles, minha amiga e colega de curso. É um espaço que escrevemos sobre literatura japonesa de forma acessível e, ao mesmo tempo, com base teórica acadêmica.

Conto a minha trajetória de estudos e trabalhos, pois sinto que ela está embasada na máxima “nunca desista dos seus sonhos”. Muitas vezes (até hoje), ouço que é besteira começar a estudar japonês por gostar de anime e mangá. Mas, ora, essas são as principais portas para a cultura erudita japonesa! E a cultura pop tem muita coisa boa: pensem em mangás e animes como Bungo Stray Dogs, de que as personagens principais são escritores da literatura japonesa e universal, como Tanizaki, Akutagawa, Fitzgerald e Dostoiévski). E, digo sempre, não se preocupe com a “dificuldade” do japonês: toda língua é difícil, não existe absolutamente nenhum idioma fácil. Falamos o português por termos nascido e crescido no Brasil, mas perceba como é uma língua complexa. E o inglês, que muitos aprendem, também é muito complicado em diversos aspectos. O japonês tem a sua dificuldade, é óbvio, mas também tem a sua facilidade. Fora isso, é um idioma belíssimo, com uma poesia inata em sua escrita e fala, e não está tão distante e inatingível para os brasileiros. O meu sonho de estudar japonês cada vez mais a fundo e me tornar professor só acontece e está indo para a frente porque fui uma criança que viu muito anime e leu muito mangá.

Autor

  • Pedagogo pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e estudante de letras com habilitação em japonês e português pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisa, em iniciação científica, a tradução feminista das obras do escritor Haruki Murakami.

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