Marsílio Ficino e a Prisca Theologia

Relembrar o procedimento intelectual de Ficino pode ser sugestivo para o diálogo inter-religioso nos dias atuais, pois demanda a rejeição de qualquer religião particular pretender-se a única capaz de conduzir à salvação

Ficino trabalhou, com a ideia de prisca teologia, a noção de uma teologia antiga, transmitida por sábios ancestrais e que colocava em acordo as várias tradições filosófico-religiosas | imagem: Prince Mik

Marsílio Ficino (1433-1499) foi um filósofo platônico e padre do Renascimento italiano. Ele viveu em uma época de encontro sincrético de diferentes tradições filosófico-espirituais oriundas do paganismo (como neoplatonismo e hermetismo) com o judaísmo e o cristianismo, o que colocava no “espírito do tempo” um desafio de síntese intelectual entre elas, síntese conhecida como prisca theologia ou teologia antiga. Visto que as teologias pré-cristãs não poderiam ser simplesmente olvidadas, tampouco consideradas superiores à sabedoria judaico-cristã, era necessário, com efeito, estabelecer um fundamento e uma linhagem comuns a todas elas (IDEL, M., 2002). Isso, em certo sentido, pode ser sugestivo para o diálogo inter-religioso nos dias atuais, pois demanda uma certa relativização teológica assim como a rejeição do exclusivismo soteriológico de qualquer religião particular pretender-se a única revelação válida capaz de conduzir à salvação.

Com o contínuo apoio da família Médici, Ficino, ao lado da escrita de sua obra filosófica original, traduziu e comentou textos de Platão, Plotino, Proclo, materiais órfico-pitagóricos, sem falar dos Oráculos caldeus e do Corpus Hermeticum (LIRA, D. P., 2017, p. 154-155; CARVALHO, T., 2012, p. 58-63). Esse vasto processo de tradução e comentário não era um mero exercício de erudição literária, pois encobria outros interesses filosóficos e teológicos de Ficino.

Nas pegadas do filósofo bizantino Jorge Gemistos Plethon (1355-1452), marcado por uma forte tendência platônica de verniz neopagão, Ficino chamará de prisca theologia um saber que teria se desenvolvido nos povos mais antigos, ao mesmo tempo em que a revelação judaico-cristã e em convergência com esta última (PAUL, Andrea M. N., 2011, p. 4).  A prisca theologia “profetizava” o conteúdo dos dogmas cristãos, não de forma explícita, e sim como preparação racional para a verdade evangélica; um discurso teológico-racional que, sem ir contra o cristianismo, preparava o caminho para ele. Essas doutrinas, expressas na teologia antiga, foram disseminadas entre as gerações no palco da história, por assim dizer, sob o comando misterioso da providência divina.

A noção de uma teologia antiga, transmitida por sábios ancestrais e que colocava em acordo as várias tradições filosófico-religiosas, não era uma novidade propriamente criada por Ficino ou outro contemporâneo seu: já aparecia em filósofos neoplatônicos antigos como Proclo (Teologia Platônica, livro I, 5), sem falar, mais tarde, em Plethon, nítidas influências sobre Ficino. Ele desenvolveu a concepção de prisca theologia e de sua cadeia de transmissores ao longo de vários anos, em diferentes obras e com revisões, sob um olhar claramente cristão.

Em 1463 ele terminou o trabalho de tradução do que viria a ser conhecido por Corpus Hermeticum, um conjunto de textos filosófico-religiosos escritos em grego e atribuídos ao lendário sábio Hermes Trismegisto, cuja publicação ocorreu em 1471, com o nome de Pimander (VIEIRA, O. S., 2017, p. 145-157; LIRA, D. P. 2017, p. 156-157; cf. HERMES TRISMEGISTO, 2019). No prefácio dessa obra, Ficino diz sobre Hermes Trismegisto:

(…) Ele foi o primeiro entre os filósofos a passar da física e matemática à contemplação das coisas divinas. Ele foi o primeiro a debater com a máxima sabedoria da majestade de Deus a natureza dos demônios e mutações das almas. Ele foi então chamado de Primeiro Teólogo. E Orfeu o seguiu, assumindo a segunda posição em teologia antiga. Aglaophemus teve sua iniciação nos mistérios sagrados de Orfeu. Pitágoras sucedeu Aglaophemus na teologia e foi sucedido por Philolaus, que foi professor do divino Platão. Assim surgiu um caminho de teologia antiga composta por seis teólogos em maravilhosa sucessão, começando com Mercurius e sendo concluída com o divino Platão. (tradução minha a partir de KLUTSTEIN, s/d, 1-3, Cf. FICINO NOVUS, Argumentum, Pimander 1-41, 2011, p. 3-4)

Hermes é tomado nessa obra como o primeiro teólogo antigo, além de ser quase um contemporâneo de Moisés, mais antigo por uma pequena diferença. Ficino, comenta Hanegraaff (2006, p. 1127), segue nisso Santo Agostinho na obra A Cidade de Deus, pois se Moisés foi instruído em todas as artes dos egípcios (Atos 7:22), não obstante, não pode ter derivado sua sabedoria de fontes herméticas, na medida em que era anterior a elas.

Em 1474, na obra Christiana religione, Ficino modifica a ordem dos teólogos antigos. Zoroastro aparece como o primeiro, Filolau some da listagem e o cristianismo é relacionado diretamente à prisca theologia:

A Prisca Theologia dos Gentis, lugar onde se juntam Zoroastro, Mercúrio, Orfeu, Aglaephemus e Pitágoras, encontra-se por inteiro nos livros do nosso divino Platão. Nas suas cartas, Platão anuncia que passado vários séculos esses mistérios poderão ser revelados aos homens […] quanto a mim, os maiores mistérios de Numénio, Fílon, Plotino, Jâmblico e Proclo foram tratados por João, Paulo, Jeroteo de Atenas e Dionísio o Areopagita.  (apud “Neoplatonismo como expressão do hermetismo: uma chave para novos paradigmas”, Filipe Alberto da Silva, s/d, p. 11)

Nessa passagem, além da ordem e composição dos teólogos antigos ter sido alterada, é sustentada a convergência de sua linhagem com o cristianismo, visto que os mistérios dos platônicos judeus e pagãos teriam sido retomados pelos autores cristãos. O nome de Zoroastro como primeiro da lista certamente foi inspiração advinda de Plethon, mais aceito por Ficino a partir de 1469, o qual também o colocava como primeiro teólogo antigo, apesar de ignorar Hermes (HANEGRAAFF, 2006, p. 1127-1128), todavia mantido por Ficino como segundo sábio antigo.

A linhagem da prisca theologia é exposta por Ficino mais uma vez na sua obra máxima, Teologia Platônica, escrita entre 1469-1474 e publicada em 1482: Zoroastro, Hermes, Orfeu, Aglaofemo, Pitágoras e Platão (vol. 2, Livro XII, 1; FICINO, M., 1965). Portanto, a mesma ordem da obra anterior é mantida. Ficino, como escreve Hanegraaff (2006, p. 1127-1128), tinha colocado Moisés como anterior a Hermes para manter a primazia da raiz judaico-cristã, mas a partir de 1464 e até o fim da vida, ele colocou Zoroastro como o primeiro teólogo antigo, devido, provavelmente, ao relato bíblico dos reis Magos (Mateus, 2), tomados por zoroastrianos que teriam adorado o menino Jesus como o zoroastriano definitivo, havendo, portanto, uma conexão entre zoroastrismo e cristianismo, a qual remete este último à sabedoria primordial de Zoroastro, que teria sido mais antigo do que Moisés e Hermes; até Abraão teria levado consigo a sabedoria zoroastriana quando partiu da cidade caldéia de Ur em direção à Terra prometida.

Finalmente, em uma interessante carta endereçada a Martino Urânio em 1489, Ficino estende a prisca teologia até o século XV, e inclui, para além dos neoplatônicos gregos, autores muçulmanos e cristãos em sua linhagem: Avicebrón, Alfarabi, Enrique de Gante, Avicena, Duns Escoto, Cardeal Bessarion e Nicolau de Cusa (GRANADA, 1993, p. 43).

Essa linhagem de autores, reformulada mais de uma vez, evidencia o fato de que Ficino procurou traduzir os textos herméticos, além de material neoplatônico, pitagórico, órfico, entre outros, na medida em que estes materiais eram não só base teórica para uma doutrina universal capaz de conduzir o homem à verdade, e sim parte de uma revelação perene, tão antiga quanto o ser humano. Esses textos não contradiziam o cristianismo, e Hermes, inicialmente, seria o inspirador dos pagãos (Orfeu, Pitágoras, Filolau e Platão) assim como quase contemporâneo de Moisés, reconciliando-se, assim, a sabedoria pagã e o cristianismo.  Hermes depois foi trocado por Zoroastro na construção ficiana, porém a mesma linha de raciocínio foi mantida, ligando-se o cristianismo, e outras vertentes, a uma sabedoria ou teologia perene.

Esta prioridade que Ficino deu à sabedoria egípcia (Hermes), e antes dela, à persa (Zoroastro), teria, conforme Andrea M. N. Paul, ainda relação com o divórcio entre fé e razão em sua época, fruto do Medievo, convertendo a razão filosófica em ímpia e a fé cristã em inculta, minando a capacidade do perfeito conhecimento da verdade. Trata-se de um projeto de religação desses elementos e de reconstrução de uma doutrina que leve a humanidade à verdade, e que prove que toda religião está relacionada com o único Deus verdadeiro (PAUL, Andrea M. N., 2011: 5-6, cf. WALKER, D. P., 1954).

Ora, os teólogos antigos ofereciam exatamente a síntese primorosa entre religião e filosofia, fé e razão, capaz de ser conectada ao cristianismo, o que, se não era do interesse de Proclo ou de Plethon, estranhos à visão cristã, certamente era de Ficino.

Bibliografia

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