Velha com Cachorro

Lá em cima o animal arranha os tacos,
como o diabo em O Exorcista;
o dia inteiro o dia todo e a noite sonâmbula
pra lá e pra cá o dia todo
a velha que é a dona deixa cair tudo,
coisas que pesam toneladas:
bumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbumbum
Quando o telefone toca,
ela corre do quarto para a sala
— como um cavalo, o cachorro pula da cama [dormem juntos];
ele quer ser o primeiro a chegar:
trimtritrimtritrimtrimtrimauauauauauauuauauauauauauauatrimtrimtrimtrim
Como pode essa senhora ter voz tão potente?
Ela se enraivece: “Cala a boca, Cauã!”;
“pelo amor de Deus, caaaaaaaala a boca, Cauã, eu quero falar no telefone!” auauiiiiiiiauauauaiiiiiiiiiiuauauauauauiiiiiiauauauuauaiiiiuauuaiiiiauu
O latido esganiçado é o de um cão mimado.
Quero rachá-lo ao meio com uma boa paulada;
imagino um taco de beisebol,
igual àquele que o português bruto do boteco
amassou os dedos do bêbado chato:
auauauiiiiiiiiiiiiuauauauauaiiiiiiiiiauauauauauauauaiiiiiiiiiauauauuauauiii
Aconselhada por uma parente sensata,
a senhora parou de dar comida na boca do cachorro;
era uma garfada pra ela e outra pra ele,
o mesmo prato e o mesmo talher.
[No sítio da minha avó, no caminho pra Jaguarão,
os cães e os gatos eram proibidos de entrar em casa.
O mundo era assim: bicho era bicho; gente era gente.]
Cauã agora faz a refeição primeiro,
e a velha logo depois;
mas atormentado pelo antigo hábito ele não para: uiiiiiiauaauauauauauaiiauauiiiiiiiiiiauauauuaiiiiii
“Cala a boca, Cauã, você já comeu!
Agora é a minha vez! Tenha paciência!
Cala a boca, Cauã, cala a boca!
Deixa eu almoçar em paz?
Cala a boca, Cauã!”
Todos os dias a dupla do barulho: bumbumbumbumbumauauauaiiiiiiuauiiiiiuuuu
“Cala a boca, Cauã!” auauiiiiauauiiiiiauuuuuauuuuiiiiiiiiauuauauauauuuiiiiiiiiiii
No entanto, a velha e o cachorro têm o direito sagrado de viver.

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