A metáfora perfeita

O patriota, ou melhor dizendo, o manifestante do caminhão representa bem o que é o bolsonarismo e não se compara a exemplos reais de resistência cívica

Passados alguns dias da vitória de Lula nas eleições, a pergunta que ecoa na mente dos brasileiros não está relacionada ao governo de transição ou aos últimos suspiros do governo Bolsonaro. O que o brasileiro quer saber é:

POR ONDE ANDARÁ O MANIFESTANTE DO CAMINHÃO?

Traduzindo o meme para o mundo analógico: um manifestante pró-Bolsonaro, daquela turma que pirraçou (vamos usar as palavras certas, afinal!) contra o resultado das urnas, trajado de Véio da Havan ou Louro José (RIP), tentou parar um caminhão num bloqueio de rodovia subindo no parachoque, abraçando a dianteira da cabine, como rosto pregado no parabrisas como um inseto desavisado. O motorista, naturalmente, prosseguiu viagem, carregando o manifestante, a toda velocidade.

De dentro da cabine, o motorista gravou o diálogo com o manifestante – embora duvide-se que o outro tenha escutado alguma coisa, com o rugido do motor e o vento batendo nas orelhas. De acordo com o motorista, o manifestante se recusa a descer. Ele pergunta novamente ao “passageiro” inusitado, que após alguns segundos de hesitação, faz um gesto de capitulação, apontando que quer descer. O motorista explica que não tem nada a ver com aquilo, só está fazendo o trabalho dele, que acordou cedo e tal, mas o vídeo acaba antes do fim da “carona” – os memes sugerem então uma viagem infinita de ambos pelo Brasil afora, ou mesmo para o infinito e além, lembrando a canção da dupla Chrystian e Ralph, sobre o “novo herói” que sonhava com seu caminhão voando nas nuvens.

O manifestante do caminhão (alguns memes falam em “patriota”, mas penso que não é o caso) serve como a metáfora perfeita do bolsonarismo neste momento:

  1. Acredita que tem uma força maior do que possui (por achar que poderia parar o caminhão como o Homem-Aranha segurando um metrô desgovernado).
  2. Vive dissociado ou em negação da realidade (achar que poderia parar o caminhão faz tanto sentido quanto achar que poderia mudar uma eleição presidencial fechando rodovias).
  3. Apela para medidas desesperadas (como uma seita apocalíptica que chega à data prometida para o fim do mundo, mas o fim do mundo não veio e o líder os deixou sem comando).
  4. Chega ao seu fim como um alívio cômico, piada, deboche, sem ser levado a sério por ninguém (uma versão brasileira do cara que invadiu o Capitólio em Washington, nos Estados Unidos, fantasiado de guerreiro viking, com chifre e tudo).

Talvez alguém possa fazer um paralelo entre o manifestante do caminhão e o chinês que parou em frente aos tanques nos arredores da Praça Tiananmen, em 1989. Ambos seriam, nesta visão, Davis enfrentando Golias, ou um beija-flor levando uma gotícula de água para apagar o incêndio na floresta enquanto os outros fogem, heróis anônimos com certeza da luta inglória que buscaram “fazer a sua parte” etc.

Porém, há algumas diferenças fundamentais entre o chinês e o brasileiro. Ao se posicionar diante do primeiro tanque da coluna, que seguia lentamente pela avenida, o chinês colocava sua vida nas mãos do piloto do tanque. Ele não teria outra forma de prosseguir a não ser matando o pedestre. E, então, para, e os outros param atrás dele. Tenta desviar, mas o pedestre se posiciona à sua frente. Surge o impasse. O piloto do tanque, cumprindo ordens para massacrar um protesto com milhares de pessoas, hesita diante de um único ser humano. Podemos dizer que uma multidão atropelada por um tanque é uma estatística, mas atropelar uma única pessoa continua a ser um assassinato.

Já o brasileiro agarrado à cabine do caminhão tem sua vida em suas próprias mãos. Se ele perder o equilíbrio, ele morre, mas foi ele que se colocou nessa situação, o caminhão não veio para matar ninguém. Não existe impasse, o motorista deixou claro que não vai parar, a menos que o manifestante resolva descer. Se não quiser descer, e não cair, ele vai com o caminhoneiro até a Ponte que Partiu – ou até onde os memes sugerirem.

Outra diferença fundamental: o chinês é um cidadão comum, carregando sacolas de compras, provavelmente voltando da mercearia – era 1989. Depara-se com a coluna de tanques, deduz que se dirigem ao massacre de seus concidadãos, e resolve agir. Ele não é um manifestante, mas se transforma em um. Seu paradeiro até hoje é incerto, mas sua imagem correu o mundo como o símbolo de resistência do indivíduo contra o Estado. Diversos regimes caíram naquela primavera – embora não o chinês – a partir de manifestações populares, de gente que cansou de sentir medo ou indiferença frente à tirania.

No caso brasileiro, é o motorista do caminhão o cidadão comum. Talvez seja até um eleitor do Bolsonaro, aliás como muitos caminhoneiros, mas sabe que as eleições já passaram. Ele está vivendo sua vida e trabalhando quando se depara com um isento no parabrisas – desculpe, o manifestante abraçado na cabine. O manifestante que não aceita o resultado das urnas e pede “intervenção militar”. Se o chinês queria impedir o avanço da força militar sobre os estudantes, o brasileiro certamente bateria palmas para esta cena.

Enfim, o manifestante é um inconveniente, um alívio cômico e ridículo, mas não um obstáculo capaz de parar a viagem.

O caminhão não pode parar, assim como o Brasil não pode parar.

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