No exercício da autonomia e do desejo aprendemos trocando. Vivemos a alegria mesmo em meio às investidas de um Estado amedrontado pelas formas de vida da juventude
Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério. Não é sério!
– “Não é sério” – Charlie Brown Jr.
Pensadorxs Periféricxs foi um projeto educacional pensado por diversxs agentes da educação pública, no entanto, este não era um projeto desenvolvido pelo Estado. O mesmo foi executado de forma autônoma por professorxs e estudantxs e teve a participação de outrxs profissionais do ensino fundamental e médio da rede pública estadual na zona norte de São Paulo. A princípio, fora intitulado Simpósio dos Pensadores Periféricos. O nome Pensadorxs Periféricxs (entre outros), empregado com o x, tem por finalidade retratar a coletividade composta por inúmeras diversidades, principalmente de gênero. É importante salientar, este texto é uma reflexão acerca da minha participação neste coletivo e não reflete a visão de todxs envolvidxs. O relato presente no texto tece múltiplas relações com o contexto sócio-político da época descrita e nos leva a repensar a idéia de consenso, na qual “coletivo” não venha a ser uma união de várias partes formando uma só coisa. Ele é parte de partes que, por alguma razão, estão associadas. Portanto, sob esta ótica, Pensadorxs Periféricxs foi um coletivo que se organizava como tantos outros: um agrupado de pessoas e não-pessoas que compartilham, na vida vivida, o desejo, a criação, a autonomia e, sem dúvidas, a educação.
Sobre a vontade de fazer
Nos anos de 2013 se sucederam diversas manifestações políticas pelo Brasil. A juventude do país que cresceu em meio à violência dos anos 1990 foi às ruas em centenas de cidades brasileiras. O tempo do medo e desesperança entra em suspensão. Extasiados por uma possibilidade radical de transformação sociopolítica, milhares de jovens se rebelam e promovem uma das maiores ameaças à ordem institucionalizada da sociedade burguesa brasileira. Em São Paulo bancos são depredados, carros da polícia são queimados, o prédio da prefeitura é atacado, a grande imprensa sofre repulsa dos enfurecidos e o enfrentamento contra batalhões da polícia militar passa a ser frequente. Os ventos sopram e os politicamente silenciados iniciam ataques à arquitetura de seu maior opressor: o capitalista Estado democrático de direitos. Para muitxs este Estado é o modelo político ideal; para as minorias, sobretudo periféricas, é uma falácia, pois, o Estado democrático de direitos não avançou, efetivamente, nos cantões das cidades, tampouco deu conta do exercício prático de uma democracia participativa. O Estado de direitos nas periferias é, na verdade, uma atadura que encobre violações e mantém as populações periféricas, geográfica e socioeconomicamente, às margens da cidadania e nos resquícios da ditadura militar brasileira (1964-1985).
Ao se passarem quase trinta anos do fim da ditadura, as rebeliões de junho de 2013 demonstraram que as práticas políticas brasileiras, até então estagnadas numa ideia de representatividade democrática, se elevam ao ponto do jogo político emergir sob uma nova perspectiva: da autonomia. Os jovens que esperavam ser atendidos em suas demandas constitucionais passam a organizar o cotidiano a partir de seus corpos reprimidos. Diversos coletivos eclodem; prédios são ocupados; a democracia representativa não mais sustenta o alicerce político e social dos adolescentes e jovens do Brasil. Os espaços coletivos vão se espalhando nas cidades, desautorizando a tutela e os pedidos de permissão às autoridades estatais. O desejo de viver é vivido e construído pelxs jovens silenciadxs.
Concomitante, em algumas escolas da periferia da zona norte de São Paulo, irrompe o coletivo Pensadorxs Periféricxs.
Era inicio de 2014 quando me convidaram para o coletivo. Eu, que sempre sonhara com a transformação social e política, decidi atuar como professor. Recém-integrado ao corpo discente do programa de pós-graduandos em ciências sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), entendi que seria uma boa oportunidade de trocar os conhecimentos acadêmicos e de vida com a experiência de ter sido aluno e agora professor na escola pública. Aliás, é importante ressaltar que, na perspectiva freireiana (FREIRE, 1974) a troca de saberes [ou diálogo] entre alunx e professorx constrói um modo de conhecimento díspar da educação bancária, método pedagógico colonizante que enxerga e trata x alunx como alguém sem conhecimentos, com conhecimentos minorizados, e marginalizados. O corpo infanto-juvenil é objeto depositário desse modelo educacional à obediência.
Paulo Freire (1974), em sua conhecida obra Pedagogia do Oprimido, conceitua a educação bancária como imposição do conhecimento realizada pelo professor sobre o aluno na medida em que o professor já os havia adquirido e dispõe destes sendo assim possível sua ação de depósito destes conhecimentos sobre o aluno (LINS, 2011, p. 2).
A educação bancária possui raízes na sociedade ocidental, a qual caracteriza a criança, o jovem e todos aqueles que, de alguma maneira, não passaram pelo crivo da sabedoria tutelada como um ser minorizado e desprovido de saber. Não à toa, o termo “aluno”, obtido em algumas abordagens como alguém sem-luz, ou seja, que precisa ser iluminado pela educação, não é um falso resultado. Etimologicamente, “aluno” se origina do latim alumnus, que substantivado do verbo alerre indica alguém que precisa de alimento para se nutrir. Ainda que o termo “aluno” como alguém sem-luz esteja incorreto, politicamente a adoção e emprego desse entendimento não seria um equívoco, mas, sim, uma indicação da operação sobre a educação brasileira. Se alguém necessita ser nutrido por um provedor, é porque a nutrição é exterior. Até aí tudo bem, seres humanos não são autossuficientes. Pelo contrário, depende de outros seres para quase tudo. Não somos seres independentes. O problema é que nessa linha de raciocínio busca-se naturalizar que o aluno depende estritamente de um provedor e isso impacta no exercício da sua autonomia.
Portanto, a dependência naturalizada desse provedor é ideológica. Afinal, qual produção infanto-juvenil tem chance de sair do plano lúdico e se tornar possível? Quando fazem do infanto-juvenil uma experiência infantilizada demonstram que há uma barreira ideológica. A experiência infanto-juvenil não está para além do uso infanto-juvenil. Qual poder de escolha a criança e o jovem possuem quando a obrigam ir para escola e se reconhece apenas este meio como forma oficial de aprendizado?
Baseada na relação ocidental mestre-aprendiz, na idade média a criança e o jovem acompanhavam o trabalho do artesão/mestre e ali apreendiam a atividade de seu ofício futuro. Não importava quais experiências obtiveram durante a infância. De toda forma, eram tratados como seres sem bagagem que, por conta disso, dependeriam, em muito, da sua servidão e da obediência ao mestre que encaminhará o seu ofício. Já nas sociedades ocidentais modernas, a criança é preparada para o mercado de trabalho até o início de sua vida adulta. Não por um mestre, mas por vários. Formada por uma educação instrumental e vista como ser desprovido de conhecimentos, ela não terá espaços para adotar a experimentação enquanto método de aprendizado. Nem sequer será convidada para compor com o corpo docente da unidade escolar que está vinculada. A atividade do aprender fica atrelada a um movimento sem autonomia e desejo possível.
Na tradição educacional ocidental a escola não é um local de experimentação do conhecimento. Chamamos de laboratório o local da experimentação. O processo de aprendizagem está edificado no velho ditado “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”. Seja nas idades antiga, média ou moderna, o ocidente não considera qualquer experiência vivida como fonte de conhecimento e saber. A trajetória de uma pessoa jovem não é vista como uma experiência possível na sociedade do trabalho. Ela é número nos estudos estatísticos, por exemplo, sobre a periferia e a escola. Na vida prática do cotidiano, o seu depoimento de uma vida experimentada só serve como prova material para minorá-lo. Não há proveito algum de sua bagagem cultural, social ou intelectual, nem interesse por ela.
Nas sociedades ocidentais o corpo servil, dócil e obediente é o requerido. Não à toa, a sabedoria e a experiência infanto-juvenil não obtêm poder narrativo nas instituições estatais de ensino público, porque fogem às recomendações e aos objetivos da sociedade ocidental democrática. O silenciamento é posto como ferramenta contrarrevolucionária no sentido de frear outros modos de vida que não o capitalista, democrático, servil e obediente.
Nesta perspectiva, atuar dentro da escola por meio dxs Pensadorxs Periféricxs seria, talvez, uma oportunidade única para mim, pois, era evidente que o sucesso desta empreitada proveria o seu próprio fim dado o seu caráter de pensar autônomo e do desejo de criar. E assim segui, com prazo determinado, como parte dxs professorxs que desenvolveriam métodos de conhecimentos baseados numa educação popular semelhante a de Paulo Freire e conjugados na libertação do desejo de saber enquanto potência estudantil.
Não sabíamos onde iríamos chegar com tudo isso, mas, de maneira muito assertiva, tínhamos certeza que queríamos afastar de nós a prática de ensino disciplinadora da sociedade industrial capitalista que ignora qualquer experiência que não esteja voltada à normatividade do mercado de trabalho que é o palco da vida adulta ocidental. Foi diante desses princípios norteadores que, coletivamente, nos libertamos da mordaça silenciadora imposta ao corpo infanto-juvenil.
Pensadorxs Periféricxs se edificou por processos de trocas, diálogos e respeito ao conhecimento vivido.
Nossa experimentação
Durante a semana, nos reuníamos, professorxs e estudantes, em média de duas a três horas semanais no contraturno escolar. E, extraordinariamente, aos fins de semana em praças ou estabelecimentos comerciais. Ali, estudantes do ensino público escolhiam e decidiam o que estudar e como trariam resultados de seus estudos. Mais do que um coletivo, éramos laboratórios de autonomia e desejos de saber. Professores tinham a incumbência de servir como apoio ao corpo estudantil. E por estarem imersos, quase sempre, no mesmo campo social que xs estudantes, nós, professores, revisitávamos o nosso passado escolar permeado de defasagens e repressões ao saber. Nas escolas públicas dos anos 1990 éramos desencorajados à descoberta. Local este onde a autonomia era assunto proibido.
Dentro do coletivo nós éramos espelhos ao corpo estudantil – ao surgir para este como um exemplo de resistência ao ensino público tradicional e bancário – ao mesmo tempo em que ele refletia o nosso passado temeroso. Na época em que éramos alunos, se ousássemos obter qualquer atitude autônoma em sala de aula corríamos o risco de passar por situações vexatórias e punitivistas. No exercício da prática punitiva das escolas dos anos 1990, muitxs professores obrigavam xs desobedientes a se ajoelharem no milho; ficarem virados e olhando para parede durante toda aula; serem obrigados a estender a palma da mão para que o educador batesse com a régua violentamente (prática conhecida como palmatória); usarem chapéu de burro e muitas vezes serem humilhadxs pelxs educadores. Odiávamos ter de cantar o hino nacional toda quarta feira e em fila indiana. Durante o hino, éramos obrigados a cantar, tirar o boné e levar a mão sobre o peito. Caso ousássemos desobedecer ou infringir essas ordens patrióticas seriamos punidos, hora ou outra.
Pensadorxs Periféricxs, para nós, antigos alunos e professor recentes, tinha o viver desejante que tivemos com o passado.
Além do hino, eu detestava atear a bandeira. Aos seis anos de idade não entendia por que tínhamos de ser punidos por não querer fazer algo que não queríamos.
Ainda me lembro de quando morava numa pequena vila na periferia da zona norte – local em que nasci. Naquela época a mata predominava sobre o urbano. A vila tinha apenas duas ruas que formavam, praticamente, um círculo que se conectava a única saída urbana do bairro. Muitas vezes na volta da escola, após sair do espaço que tanto nos repreendia, recuperávamos a liberdade de querer ser quem somos e brincávamos de guerrinha de mamona. Essa brincadeira, geralmente, evoluía para uma guerrinha de pedras e, de repente, estávamos brigando entre colegas de escolas e vizinhos de bairro. Era fora da escola que contávamos sobre o dia e muitas vezes sobre um ou outro aluno que foi agredido por algumx professorx em sala de aula. Nos animávamos quando umx alunx resistia à agressão e acabava devolvendo o ato. Mesmo crianças, queríamos horizontalidade. Era muito comum apanharmos na escola e dos colegas mais velhos do bairro. Tínhamos muito medo da FEBEM1 (nome anterior da Fundação Casa), pois sempre surgiam relatos de que alguém tinha ido pra lá e fora estuprado, além das recorrentes agressões. Naquela época nada mais potente do que poder resistir à agressão. Desejar, criar e executar só era possível na rua, onde inventávamos brincadeiras das mais diversas. Não apenas guerra de mamona, mas, também, jogar futebol na rua com bola de plástico, produzir e empinar a própria pipa, jogar bolinha de gude, malhar o boneco que fazíamos de Judas, furtar milho de roças de vizinhos do bairro, andar na mata simulando uma aventura, pintar com esmalte o único ou os poucos carrinhos que tínhamos (escondidos, é claro. E para parecer que se tratava de outro), e jogar fliperama, também escondidos, no bar da rua. Essa era a brincadeira mais legal, porém, proibida por nossas famílias, pois, frequentemente, o bar era invadido pela Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) que desligava de imediato o fliperama e nos mandávamo embora para casa. Ficava com raiva diante dessa situação e ficava questionando em silêncio: Por que a polícia se apropriava do que era meu?!
Quando o Pensadorxs Periféricxs era executado demonstrava um elo entre o passado vivido e o presente vivente; passado reprimido e silenciado, diante de um presente desejante e desejado. Essa foi a primeira vez que, enquanto pessoa, compreendi que nós, estudantes e professorxs, formávamos um e só grupo: dos periféricxs, geográfico e socialmente.
O formato de educação executado no coletivo Pensadorxs Periféricxs possibilitou não apenas uma interação mais próxima entre estudante e professxr como permitiu a estes o desejo de criar e libertar uma educação não-violenta. Era um modo educacional com que sonhávamos e que tem morada naqueles em que, em meio a um cenário repressor, acendeu uma ponta de esperança por meio de uma vida baseada no respeito e afeto ao outro. Enquanto jovens, queríamos não apenas ter voz, mas executar o plano de desejo, que é a criação. Nos anos 1990 não era unânime a sensação e aceitação da violência enquanto prática pedagógica. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) nasce em meio a este território. É uma força de resistência que brota deste momento enfático da educação brasileira, mas ainda carrega raízes de uma prática colonial ao querer assegurar a educação como uma obrigação ao infanto-juvenil.
Além disso, o ECA dispõe de mecanismos punitivistas que podem ser aplicados sobre a família da criança e adolescente. Por exemplo, os pais não podem, por lei, e não devem, pela moral conservadora, abrir mão da escolaridade obrigatória do filho ou filha, caso este seja o desejo de seus entes familiares. Isso acarretará, na visão da lei, um direito do filho e um dever dos pais. Não há permissão para uma educação autônoma e coletiva intra-familiar ou comunitária. Creio que por essa razão, o ECA, buscando ser uma legislação que protege o menor acaba por privá-lo de sua liberdade, sobretudo quando estabelece a forma de ressocialização aos adolescentes atores de atos infracionais seja pelo sistema de internação, semi-liberdade, liberdade-assistida ou prestação de serviços comunitários. O modo de operação do ECA é orientado pelo modo de agir do colonizador que sempre visou à reforma do corpo nativo para impor sua forma ocidental de pensar: lhe darei a liberdade se você me obedecer.
Xs alunxs que cumprem medidas socioeducativas são sempre alvos na escola. Independente do seu comportamento, o jovem em cumprimento de medida sofre com o estereótipo de um corpo indisciplinado, criminoso e agressivo. A escola tanto quanto outros espaços em que transita o corpo infanto-juvenil são sempre locais que operam com a disciplina e a punição.
E foi neste cenário que nascemos e crescemos. Não apenas o coletivo Pensadorxs Periféricxs, mas um corpo infanto-juvenil rebelde e pulverizado em solo colonizado. Nossa proposta educativa visava, primeiramente, à experimentação do desejo, da liberdade e da autonomia. Nos núcleos de estudos de contraturno escolar, xs estudantes traziam propostas de pesquisas que iam do feminismo aos games de guerra. Líamos textos juntxs, demonstrávamos a importância de explicar o que queríamos dizer axs outrxs e de pesquisar sobre conceitos e palavras que não tínhamos domínio. Com os projetos de pesquisas em confecção, os estudos iam se desenvolvendo e nós, mediante a troca de saberes, aprendendo e experimentando dentro deste processo. Nossa proposta era de que, escolhido o tema de estudos, passaríamos às pesquisas. Em seguida, à elaboração dos trabalhos e, por fim, à exposição desses estudos na forma escrita ou não-escrita na unidade escolar.
Com o trabalho confeccionado, o coletivo Pensadorxs Periféricxs promovia, primeiramente, um evento intraescolar para apresentação das pesquisas. Na própria escola xs estudantes experimentavam um primeiro momento para compartilhar os resultados de seus estudos com professorxs e colegas. No final do ano letivo, uma apresentação maior ocorria: o Simpósio Pensadorxs Periféricxs.
Reunindo, no mesmo espaço, estudantes de todas as escolas que obtinham os núcleos de estudos do coletivo, o Simpósio Pensadorxs Periféricxs de 2014 teve 37 trabalhos apresentados em formatos de semi-artigo (sem necessidade do rigor científico), poesia entre outras artes. Estiveram presentes mais de dez escolas e aproximadamente 400 alunos de escolas públicas convidadas. Foram dois turnos de apresentações realizadas nas salas de um teatro do município de Guarulhos (SP). Como não tínhamos verbas e nem apoio da Secretaria Estadual de Educação, tudo ocorria por meio da camaradagem, boa vontade e, por vezes, pelo bolso dxs professorxs do coletivo. O único apoio possível, no que tange aos programas do ensino público fundamental e médio, foi o aluguel dos ônibus que levaram os mais de 400 alunos ao evento. Estes ônibus, fretados, foram pagos pelas unidades escolares convidadas. Apesar do coletivo funcionar nas escolas da cidade de São Paulo, não havíamos conseguido um espaço grande na cidade para realização do simpósio. Em Guarulhos fomos acolhidos e apesar da distância todxs alunxs convidadxs tiveram sua presença garantida por meio do transporte de ônibus fretados.
O Simpósio dxs Pensadorxs Periféricxs foi, assim, um evento de experimentação do desejo de estudar, conhecer e saber. Um evento em que as crianças e jovens eram os protagonistas. Nós, apenas servíamos de apoio a organização do simpósio e do infanto-juvenil. Esse movimento nos possibilitou a vivencia de uma educação sem prisões.
O contexto sócio-político era de luta e de tempos esperançosos, alegres e de trocas intensas. Era possível viver o desejo. E desejo não exatamente em sua conotação sexual. Embora, é bom lembrar que, muitas vezes, por uma herança freudiana ou não, desejo é uma expressão que envolve tabu, principalmente quando associada a sexo. Falar de sexo com a família não é algo simples. Desejo é quase um ato infracional. É claro que o desejo também pode ser sexual. Alias, desejo só pode ser desejo de algo, mas, cabe lembrar que desejo é sempre desejo de muitas coisas e não uma coisa só.
Em entrevista à Claire Parnet, em 1988, por ocasião do seu livo L’abécédaire, Deleuze define o desejo como construção de agenciamentos e adverte que desejar não é submeter-se a um fim como limite, mas invocar uma coletividade, pois os coletivos “nunca desejam alguém ou algo, desejam sempre um conjunto”. Desejamos não alguma coisa, objeto ou alguém de forma isolada, mas um conjunto ou contexto que a faz existir como uma paisagem (ARAUJO, 2019, p. 43).
E nos atentemos para perceber que o problema aqui tratado não é o sexo, mas, sim o desejo. Nossas mães sabiam que seus filhos e filhas transariam um dia. Isso era algo impossível de controlar no desenvolvimento da criança e do jovem. No entanto, vir à tona o desejo sexual era perigoso. A família é uma das diversas instituições morais materiais e imateriais de silenciamento do desejo. A prática dessas instituições é preservar o status proibido, perigoso do desejo. Desejar, sexualmente ou não, é, para elas, algo que não se deve praticar. Talvez por desejo estar associado/agenciado à criação. E se analisarmos o modo de ensino do ocidente veremos que há uma quase-proibição2 do desejo. Esta quase-proibição está presente nas salas de aulas escolares, na relação de trabalho, ou seja, em locais que submetem a criança ao comando do adulto. Nesses espaços existe uma relação de ordem e, ao mesmo tempo, punitiva caso ocorra desobediência ao que é quase-proibido. Não há abertura para criar. O infanto-juvenil está ali para ouvir e obedecer, ainda que não haja lei vigente sobre a proibição ou quase-proibição do desejo de ser quem é.
Wilheim Reich anunciou, em Psicologia de massas do fascismo, como a economia sexual era arquitetada para o controle dos corpos nos meios de produção e a sociedade em geral (REICH, 1998). Isso acarretava a servidão e a obediência ao Estado autoritário. A repressão sexual era um instrumento de arrefecimento das massas, pois, inibia talvez a rebeldia e o senso crítico. Um sujeito bem ajustado e reprimido é também um sujeito dócil. A escola, assim como modelo de trabalho capitalista, utiliza das nossas energias para produção e manutenção do controle dos corpos. Sob a perspectiva reichiana, o tempo diário da escola (quatro horas) e de trabalho (oito horas) está posto de maneira a criar hábito ao corpo, induzindo-o à disciplina do controle e obediência sistemática. Somos adestradxs para manutenção do modo de pensar e agir ocidental. A rotina é uma máquina de extração do desejo de desejar. O tempo dedicado a atividade diária de trabalho faz com que seja reduzido o nosso tempo de desejar. O trabalho explora o corpo e extrai dele o que temos de mais potente: o desejo.
Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade. O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução do inconsciente. Nada falta ao desejo, não lhe falta o seu objeto. É o sujeito, sobretudo, que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo pela repressão (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 43).
Pari passu, a quase-proibição do desejo é isso: um inibidor para reprimir o desejo de sermos quem somos ou desejamos ser. As maquinarias estão postas e prontas para reprimir. Tudo que escapa ao homogêneo e ao binarismo é alvo dessas maquinarias de repressão do desejo. E nas escolas não é diferente.
A disciplinarização tem por objetivo adestrar os alunos, como se fossem animais que precisam ser domesticados, pois, assim se tornam dóceis, fáceis de serem manipulados e mandados. Essa manifestação de poder acontece cotidianamente na instituição escolar (BORELLI; PELEGRINI, 2017).
Assim como na fábrica, na indústria e no escritório, nas escolas o poder disciplinador da repressão do desejo não está na produção local, mas em como se opera a produção dos conteúdos. É na operação de produção do conhecimento que o corpo é adestrado. X alunx escuta enquanto x professorx fala. X alunx escuta enquanto x professorx ensina. X alunx só fala quando x professorx permite. X alunx só pode se levantar quando x professorx permite. X alunx só pode ir ao banheiro quando x professorx autoriza. E qualquer ato de autonomia é reprimido, punido, podendo ocasionar até na sua expulsão da escola. Assim destaco, há inúmeras formas de repressão do desejo e, mesmo não sendo lei, ele é encarado como contravenção moral.
Portanto, o Simpósio Pensadorxs Periféricxs não foi apenas à concretização de um projeto educacional. Ele, sobretudo, demonstrou-nos a força que a organização coletiva possui para nos desencontrar com processos colonialistas. No exercício da autonomia e do desejo aprendemos trocando. A educação era uma educação experimentada. Por anos vivemos numa cidade que pulsava a alegria mesmo em meio às investidas político-militares de um Estado amedrontado pelas formas com que xs jovens passaram a viver. Os movimentos se movimentavam diferente. A educação experimentada rende frutos inesperados. No que tange a educação popular executada no coletivo, como nunca sentíamos a potencia de um corpo político desejante agindo na esfera do viver.
Oito anos se passaram. O cenário político de autonomia sofreu muitos golpes. A repressão policial passou a agir de novas maneiras. A velha truculência se sofisticou e aos poucos os territórios e espaços coletivizados foram sendo exprimidos por movimentos fascistas de reordenamento social homogêneo. Dizem eles: somente uma pátria; somente um Deus.
De volta ao monismo revestido de binarismo.
Até breve.
Referências
ARAUJO, Z. Desejo e autoridade em Deleuze e Guattari. APRENDER – Caderno De Filosofia E Psicologia Da Educação, (22), 42-50. Disponivel em: <https://doi.org/10.22481/aprender.v0i22.6068>, Acesso em: 03 ago, 2022.
BORELLI, A. C. S. B; PELEGRINI, T. O conceito de (in)disciplina e disciplinarização no âmbito escolar. In: 8° Congresso Norte Paraense de educação Física Escolar, 2017. Universidade Estadual de Londrina – CEFE.
DELEUZE & GUATTARI. O Anti-édipo. Editora 34, 2004.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 24 jul. 2022.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Editora Vozes, 2004.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Paz e Terra 1974.
LINS, M. Educação bancária: uma questão filosófica de aprendizagem. Faculdade de Educação, UFRJ, 2011. Disponível em: <https://www.hugoribeiro.com.br/biblioteca-digital/Lins-Educacao_bancaria.pdf>. Acesso em: 04 set, 2022.
REICH, W. Psicologia de massas do fascismo. Editora Martins Fontes, 1998.
Notas