Sofonisba Anguissola e o colapso da mulher como objeto da pintura

Em um autorretrato pintado com fosse feito por outro – um homem –,  a artista possibilita múltiplas interpretações e implica um segredo a ser desvendado

Quadro Bernardino Campi pintando Sofonisba Anguissola

À primeira vista, o quadro Bernardino Campi pintando Sofonisba Anguissola (1559), da artista renascentista Sofonisba Anguissola, parece evocar uma cena comum: um artista em cena pintando uma mulher. O título logo indica se tratar do professor de Anguissola, Bernardino Campi. E nos diz que a pessoa retratada pelo professor é a própria artista do quadro, Sofonisba Anguissola.

Ambos os personagens da tela parecem devolver o olhar ao espectador, principalmente Bernardino Campi. O fundo é enegrecido e engolfa professor e quadro. Há a aparente representação da dualidade entre o personagem ativo, o artista masculino, e o objeto passivo, esse comumente dado como a mulher representada. O que Anguissola propõe, porém, é expandir esse intervalo entre a artista mulher e a mulher retratada, por meio de um personagem masculino, o qual parece confundir as motivações da cena.

Nesse retrato, há múltiplas possibilidades de interpretação e nele reside um segredo a ser desvendado. A primeira é o fato de se assemelhar ao processo comum entre artista homem e mulher representada: como na história de Pigmalião, esse homem artista concederia vida à figura inerte da mulher, que está lá à serviço do ideário de modelo vivo e objeto a ser conhecido. Assim, ele se faz artista em função da mulher representada. A genialidade cai como um manto sobre o artista homem e o simples ato de se por diante de uma tela o legitima como artista, porque o espaço da crítica, o público, toda a estrutura é à favor do homem.

De acordo com Whitney Chadwick, em Women, Art, and Society, esse retrato feito por Anguissola é considerado “o primeiro exemplo da mulher artista conscientemente criando um colapso na posição do sujeito-objeto”. Isto é, a diferença entre a mulher artista, na posição de sujeito, e a mulher como tema da pintura e objeto de apreensão do olhar. Voltar ao fato de que a obra é assinada por Sofonisba Anguissola é o truque que busca quebrar a expectativa de que não se trata de um quadro feito por um homem, muito menos um quadro feito por uma artista mulher pintando a si mesma, sozinha na obra.

Essa cena comum é o que parece resumir o cenário do quadro. Mas não é o que a pintora pretende demonstrar com a obra. Sofonisba Anguissola apresenta outra história, oculta pelo gesto de si mesma representada no quadro. A resposta reside em sua mão. Ao olhar para a mão do pintor segurando o pincel, vemos logo abaixo a mão curvada de Anguissola, quase uma garra, o que dá a impressão de que ela está só posando. Porém, com mais atenção, percebe-se que há outra mão junto ao pincel de Campi: é a mão de Anguissola.

Essa distorção que, ao ser percebida, torna o quadro inteiramente estranho, é a sagacidade de Anguissola e sua crítica. Porque a mão que antes era da mulher posando vira logo um membro abandonado, e o outro rompe por todo o cotovelo flexionado. Ela está, ao fim, segurando o pincel que a cria. Ela se enuncia como a verdadeira artista da obra.

Se fosse tirado do título e do quadro a assinatura, acharíamos que é mais uma obra do artista pintando a modelo feminina. Mas a mão duplicada dá o estatuto da obra. Com isso, Sofonisba Anguissola está falando, por meio do artifício, da dura função que é precisar usar a linguagem artística masculina, toda essa estrutura que mobiliza o artista oficial como homem, para que ela possa afirmar seu valor como artista.

Quando Anguissola inclui esse gesto criador no limite do visível e do invisível, ela apresenta como a ação da mulher artista muitas vezes é inviabilizada e obrigada a ser posta em segundo plano. Como algo que só pode ser feito nos bastidores, na escuridão. Não sob o mesmo direito da genialidade concedida ao homem.

A mão de Anguissola se encontra exatamente abaixo do mahlstick, essa espécie de estaca onde o artista apoia a mão para pintar. Ela é o real sustento da criação dessa obra. O próprio artista que ela pinta não se faz tão necessário na cena, principalmente pelo fato de que ele parece olhar para a Anguissola real que estaria fora do quadro e, assim, a pinta. Mas se Anguissola pinta esse quadro ao mesmo tempo em que Campi a observa para pintá-la, seria esse resultado de Campi tão fiel à Anguissola real? A possibilidade que isso dá, então, é que o quadro de Anguissola já estaria pronto e que Campi apenas posa fingindo que o pinta. Ou seja, ao fim ele é o modelo de Sofonisba Anguissola, e ela no quadro pende mais à situação de sujeito artista dela mesma do que apenas representação ao canto.

Além disso, essa versão de Bernardino Campi não indica ter sido pintado a partir do professor que posou para Anguissola. Ele é tão criação quanto a representação do feminino no quadro. E isso leva a questionar as idealizações em torno do feminino e do que é pintura. A noção do feminino, no Renascimento, era a de que uma mulher artista “virtuosa” era um desvio de rota, um caso particular e oposto à suposta natureza da mulher, que não teria a capacidade de intelecto em aprender e criar. Não era bem vista. Lavinia Fontana passou pelo meu escrutínio e a mulher artista, até hoje, ainda tem suas dificuldades de ser desvinculada da única imagem reservada a ela, a de representação feita por mãos e mentes masculinas.

O retrato de Sofonisba Anguissola revela uma autossuficiência, a qual muitas mulheres nobres e da classe média italiana buscavam, se reafirmar além da condição de virgens dispostas ao matrimônio e à maternidade. O que Sofonisba faz é um gesto importante demais, ao mostrar também que a musa da qual uma obra é feita é dotada de existência, e que a mulher artista tem igual direito de se firmar pelo intelecto e criação de uma obra de arte.

Referências bibliográficas

GARRARD, Mary. Here’s looking at me: Sofonisba Anguissola and the Problem of the Woman Artist in Renaissance Quarterly, vol. 47, no. 3 (Outono, 1994), pp. 556-622, Cambridge University Press, pela Renaissance Society of America.

A palestra “Quando as mulheres (se) pintam: representações do motivo iconográfico da artista em ação (séculos XIV-XIX)”, ministrada pela professora Maria Cristina Pereira, no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), no dia 14 de setembro de 2019. Foi comentada brevemente a obra de Sofonisba Anguissola, bem como uma enorme variedade de quadros feitos por mulheres artistas em ateliês e retratando a si mesmas como artistas.

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