Sobre coisas que eu não quero ver e o papel de histórias de terror para crianças

O contato com aquilo de que temos medo pode nos ensinar sobre os nossos limites e nos dar autonomia

Pintura de Alexandra Bolzer | imagem: Flickr

“Não saia andando sozinho ou você pode acabar vendo por aí algo que não gostaria de ver” era algo que minha mãe me falava quando viajávamos pelo interior, para as chácaras de campos e florestas aonde eu sempre tentava escapulir quando ela não estava olhando.

É claro que ela queria que eu evitasse cobras, onças e o eventual maníaco, mas minha criatividade infantil absorvia essa mensagem, e eu passava horas imaginando, me perguntando, arrepiado, sobre as coisas que viviam na floresta e que eu não gostaria de ver. Eu imaginava animais mortos – ovelhas, vacas, cavalos. Estariam podres, cheios de larvas, cheirando mal? E o que poderia tê-los matado? Poderia haver uma onça ali, mas uma onça era uma coisa que eu definitivamente gostaria de ver. Então tinha de ser outra coisa. Algo que não fosse uma onça, algo mais feio. Mais estranho e sinistro.

Até hoje, fico fascinado com a genialidade dessa estratégia: minha mãe nunca me bateu, nunca me puxou pelas orelhas. Em vez disso, ela empregava minha própria imaginação na tarefa de me manter seguro, algo que funcionou muito bem. Mas, talvez sem perceber, ela me ensinou outra coisa: durante essas viagens, comecei a contar para mim mesmo minhas primeiras histórias de terror.

E eu as adorava. Logo elas se tornaram um passatempo melhor que tropeçar no cerradão em busca de um teiú ou tatu para observar. Minha imaginação não podia machucar a si mesma ou se autotraumatizar. Eu inventava horrores detalhados o suficiente para me interessar, mas não de modo que isso me atormentasse. E, hoje, aos vinte e cinco anos, olho para trás e vejo quão formacional isso foi para mim.

Conforme eu crescia, acabei gostando de filmes de terror – especialmente os de monstros e dinossauros – a que eu assistia com minha mãe e meus irmãos (já que meu pai abominava qualquer tipo de história que não fosse firmemente baseada na realidade). Aqueles primeiros anos de imaginação solta me tornaram muito bom em diferenciar ficção da realidade. Eu ria do sangue falso na TV; de personagens tomando decisões que não faziam sentido; de animais selvagens que agiam mais como psicopatas de slasher que como animais. Lá em casa, a noite de filme de terror, para mim, era mais divertida que qualquer tarde de comédia.

Mas, ao longo desses anos, uma regra permaneceu: não ver, nunca, algo que eu não gostaria de ver. Alguns temas me assustavam além da conta – eu sempre tive pouco medo do sobrenatural, de demônios e fantasmas, mas verdadeiro terror a alienígenas – e esses filmes eu não via. Se alguma cena começava a me incomodar, minha mãe avançava alguns minutos no filme. Era uma experiência segura, e, muito além disso, era interativa. Eu aprendia exatamente meus limites, a reconhecer em tela algo que me incomodava, e minha mãe, também, sabia exatamente o que me assustava, e como me ajudar uma vez que eu me assustasse. Isso seria útil na minha adolescência, quando eu tive acesso à internet e a conteúdos que não passaram por essa curadoria.

Tive uma infância privilegiada, por muitos motivos, mas sobretudo por essa relação que eu tive com a minha mãe. Esse nível de autonomia, essa capacidade de fazer decisões e de escolher o que me interessa – mesmo que algumas pessoas pudessem olhar torto para uma criança de nove anos que desenha unicórnios carnívoros, eu tive a liberdade e o apoio da minha mãe para fazer isso. E sempre que vejo uma discussão sobre quais tipos de gêneros e mídias são adequados à infância, e sobre tentativas de transformar todo e qualquer conteúdo dedicado a crianças numa versão pasteurizada à Disney Channel e My Little Pony, eu me preocupo. Me preocupo, porque a extensão criativa de muitas crianças não é só arco-íris e pôneis. Às vezes há florestas escuras, lagos profundos e unicórnios carnívoros. E isso não é uma coisa ruim.

O mundo real está cheio de sombras, profundezas em que nem sempre podemos nadar e predadores. Nos mundos imaginados, cheios de aventuras, nós aprendemos a reconhecer perigos, a resistir a eles – e podemos, se essa for nossa vontade, escolher sempre os finais felizes.

Autor

  • Arthur Malvavisco, de 24 anos, é natural de Campo Grande (MS) e formando em Biologia. Homem trans em uma cidade em que, até poucos anos atrás, não se falava muito sobre questões de gênero, sempre teve o fantástico e o sombrio como refúgio. Primeiro entrou no mercado como autor independente, e depois publicado pela Corvus editora, estreou na literatura com Lebre da Madrugada, um romance de fantasia sombria.

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