Ricardo Aleixo: sobre o poeta e a poesia

“Quando comecei a criar, a poesia não aparecia como a melhor das possibilidades, mas como a única possibilidade”

Um garoto criado [e deslocado] na periferia de Belo Horizonte, rodeado de revistas, de histórias e do som das partidas de futebol no rádio. Um poeta que encontra sua poiesis — aquilo que move e transforma seu mundo — no futebol. Apaixonado por música e artes visuais, ele encontra em Sebastião Nunes e Augusto de Campos duas referências de sua formação. Incorpora, em seu trabalho, elementos da cultura iorubá, escrevendo orikis, assim como a concisão e a visualidade do haicai e do cinema de vanguarda russo. Capitu apresenta um perfil de Ricardo Aleixo, para quem vida e poesia se confundem.

Dele, Viviane Bosi, professora de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo, disse:

Conhecido por suas performances que mesclam recursos de muitas artes, o poeta Ricardo Aleixo volta-se com o mesmo empenho tanto para a vocalização, a atenção para a potência da oralidade, quanto para a visualização, o cuidado gráfico e a diagramação do livro na apresentação de seus poemas. Um verbo usado por Sebastião Nunes [poeta, editor e artista gráfico] para tentar definir a produção experimental de Ricardo Aleixo me pareceu muito adequado: perambular. Em seus poemas em homenagem a Artur Bispo do Rosário e Hélio Oiticica compreendemos como a estética do parangolé, uma concepção de arte total, ao mesmo tempo que inacabada, interrompida, arriscada, elíptica, ganha impulso e movimento.

O poeta coordenou e participou de exposições e espetáculos de artes plásticas poéticas e musicais, como por exemplo o Festival Internacional de Arte Negra e a Bienal Internacional de poesia. Participou da publicação da revista eletrônica Zap e outras. Apresentou, em diversos países, a performance multimídia “Um ano entre os humanos” e gravou a trilha sonora do espetáculo Quilombos Urbanos, com a companhia “Será que?”. Sua poesia também abrange uma vertente satírica que incide sobre temas da vida urbana. No “Lira”, sigla que significa tanto “Laboratório Interartes Ricardo Aleixo” quanto “Liga de Invenção de Resistência Ativa”, Aleixo oferece oficinas de criação artística.

Primeiros anos: solidão que determina a arte

No recuo de trinta e poucos anos, até os primeiros momentos em que eu comecei a criar, a poesia não aparecia como a melhor das possibilidades, mas como a única possibilidade.

Quando garoto, Aleixo mudou para um dos muitos conjuntos habitacionais construídos no período da ditadura militar. Ali sentiu, pela primeira primeira vez, o que ele próprio chamou de “estranhamento” em relação aos seus novos vizinhos, vindos de todos os cantos das Minas Gerais. Tal sentimento viria novamente, em diferentes formas e forças, noutros momentos de sua trajetória. Esse fato nos ajuda a desenhar sua origem artística, marcada fortemente por uma solidão de menino.

Eu sempre gostei muito de ficar sozinho. E ao mudar com a minha família para o extremo norte de Belo Horizonte, num dos muitos conjuntos habitacionais onde foram literalmente despejadas as famílias pobres de diversas regiões do estado de Minas, eu me vi ali, numa situação de estranhamento muito grande em relação aos meus novos vizinhos, pessoas que vinham do interior ou de algumas favelas de Belo Horizonte. Essa não era a minha realidade: minha família, muito pobre, vinha de um bairro de classe média baixa e com acesso a informação; não tinha TV em casa, mas tinham livros, muito poucos, e muitas revistas sempre. Meu pai gostava muito de cinema, então tinha essa diferença, que era brutal no cotejo com o que viviam as famílias desse bairro para onde a gente se mudou, chamado Campo Alegre, e que é onde hoje funciona o Lira. Com a morte dos meus pais — ele há dois anos e ela em maio último fez um ano — eu transformei a casa. Eu tenho então a felicidade de poder trabalhar hoje no espaço em que eu dei meus primeiros passos na arte.

Futebol: a primeira lição de poética

E o futebol no Brasil, como todo mundo sabe, mesmo aqueles que não gostam, ele é algo levado tão a sério que nós conseguimos a proeza de alterar a denominação daquele profissional que transmite as partidas: nós o chamamos não de locutor, mas de narrador.

Os primeiros passos de Aleixo na arte estão ligados não à arte como se convenciona definir, mas ao futebol. “O futebol foi a minha primeira lição de poética”. Para o poeta, o futebol forma sua sensibilidade artística pela escuta. Como não havia televisão em sua casa e o preço das entradas era proibitivo para uma família pobre, seu pai ouvia os jogos sempre: “Havia jogos praticamente todas as noites, tirando às segundas e sextas — e aquilo às vezes era o único som que se ouvia na nossa casa. O futebol envolve primeiramente como uma `realidade aural`, ou seja, ele toma enquanto uma proeza de linguagem a partir da vocalidade, e nisso me cativava especialmente a velocidade com que as jogadas são transmitidas”.

Ademirável da Guia: o primeiro ídolo

No início da década de 70, Aleixo descobriu o jogador Ademir da Guia (em suas palavras “o grande, o impressionante, o maravilhoso”) “eu até então não jogava bola, tinha dez anos, quase onze, é o momento em que eu começo a cantar na escola e fazia coisas também ligadas às artes visuais e ouvia as músicas que minha mãe e meu pai cantavam, minha prática artística toda se resumia a isso”.

O que impressionava o poeta nas transmissões das partidas do Palmeiras era o fato

[…] de que toda aquela aceleração vocal dos narradores era alterada bruscamente quando eles anunciavam a participação do Ademir da Guia, então era “blablablablablabla… [pausa] Ademir da Guia”. Era um corte tão brutal que vinha o jargão que, acho mais de um narrador usava, que era “O Filho do Divino Mestre”. Perguntei ao meu pai: “O que diabos é isso de ‘filho do divino mestre’?” aí ele me explicava, me explicou mais de uma vez, falando com muito entusiasmo sobre o Domingos da Guia que foi um dos estilistas desse desenho barroco que é o futebol brasileiro, no qual a poética do processo é muito mais importante do que a lógica do resultado. Aí eu cismei que eu queria ser “jogador clássico”, de estilo clássico, e obviamente não havia vaga para jogador de estilo clássico que nunca haviam jogado futebol.

Peladas shakespeareanas

Até os 18 anos, o que eu mais fazia era jogar bola, jogava pelada nos terrenos baldios tinha um mapa dos terrenos baldios onde se jogava pelada, jogava futebol de salão no colégio e treinava nos clubes, continuava a cantar, continuava com algum experimento clássico visual para além daquilo que era trabalhado nas aulas de educação artística na escola, mas o que eu queria mesmo era ser jogador de futebol e, perdoe-me a falta de modéstia, mas eu joguei muito bem. O Nelson Rodrigues tem uma frase que é mais ou menos assim: “Amais reles peladas, pois elas podem guardar uma complexidade shakespeareana” – e eu fui vítima dessa circunstância: quando eu tinha 18 anos, ainda indeciso entre a canção, a música, a poesia e o futebol — o futebol já passava a ser a segunda ou terceira coisa — numa pelada dessas aí que o Nelson definiu, fui atingido por uma bola no olho, o que me custou cinco cirurgias e perdi 80% da visão e fiquei, entre os 18 e os 21 anos, passando por essas cirurgias, sentindo dores horríveis o dia inteiro, todos os dias, e tendo a poesia então como única possibilidade de aqueles dias de isolamento forçado.

Então a minha história como poeta começa aí, e numa decisão que eu tomei juntando os dados todos: “tô aqui, sem ter mais nada a fazer a não ser ficar ouvindo música, fazendo música, escrever e tal…”. A partir disso, o poeta se permite afirmar que a poesia tornou-se sua mãe, “no sentido de ter mais do que me formado, no sentido de apresentar um caminho, de ter inventado um sujeito chamado Ricardo Aleixo. Então, talvez venha daí esse gosto, que não é por blague, que eu atribuo ao futebol tamanho peso na minha formação.

Mas que futebol é esse?

Mas que futebol é esse que eu mencionei? É o futebol da poiesis, não é o futebol da competição. Então esse lugar, ou esse não lugar, chamado poesia é o lugar que me inventa e que me define como sujeito. É o que me permite pensar a diferença do que é estar no mundo e afirmar positivamente o sentido de presença no mundo — diz — porque por mais que a realidade insista em mostrar que é perversa, que é cruel, a poesia é esse lugar — e eu tenho tentado aprender isso com ela — em que os possíveis se articulam. A realidade é outra coisa, a realidade física, material e inalterável, senão pela participação ativa de cada um que recebe a palavra poética, essa é a que nos ensina inclusive onde é que estão as contradições desse real — então eu aprecio, de fato, o real — mas ele tem frestas também, ele tem brechas; essa fresta, essa brecha é o que me parece ser o poético, que não é atributo do poeta, é atributo do humano. Poeta é aquele que com sua palavra — até com seu silêncio muitas vezes, permite a cada uma ser também poeta e reconfigurar o real, ou isso que a gente chama de real com os meios que cada um dispuser.

Eu sempre lido muito prazerosamente com a ideia de errância. Eu costumo brincar que, nas minhas performances, eu me pergunto se eu faço roteiros, eu sempre respondo que faço roteiros de errância.

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