Corpo, Suporte para a Arte

Gestos do dia-a-dia retirados de seu lugar comum. Recontextualizados, estes gestos nos abrem janelas…

As artes performáticas nos oferecem uma gama de resignificações do corpo que podem mudar nossa relação com ele − com o corpo do outro e com o nosso próprio. Na performance, o corpo se põe como um limite, como uma fina linha que nos separa do mundo cotidiano e nos dispõe em frente de um novo mundo. Um mundo de gestos comuns que se nos são apresentados, porém desnaturalizados: gestos do dia-a-dia retirados de seu lugar comum. Recontextualizados, estes gestos nos abrem janelas…

Em sua 6º edição, a mostra Verbo realizada pela Galeria Vermelho em São paulo, explora o emprego do corpo na arte. O mais importante evento brasileiro sobre performance, a Verbo reúne performers de diversos países em torno de um tema central. O deste ano foi a palavra. Um dos artistas em destaque na mostra deste ano, foi o brasileiro Marcio Banfi.

Convite ao Lúdico

O artista, performer e stylist Marcio Banfi, convidado para a mostra Verbo 2010, se mostrou tão dinâmico em sua ação Caça-Palavras quanto o é em sua trajetória profissional. Abrangendo os diversos suportes da arte, o artista trabalha com instalações, vídeos, performances, entre outros, e ainda mantém uma forte ligação com seu trabalho de moda. Talvez por esse desprendimento com o qual desenvolve sua criatividade o artista tenha a habilidade de trabalhar o corpo de maneira tão lúdica, tão leve e divertida; sem deixar de lado a conceituação que permeia a obra.

Na performance Caça-Palavras o artista se posiciona sentado de costas para a plateia, casualmente, resolvendo um caça-palavras. Com uma “janela” aberta em suas costas por um rasgo na camisa, o artista nos oferece a possibilidade de nos juntar a seu passatempo: um outro caça-palavras gravado com tinta em suas costas está ali para ser solucionado pelo público, parte essencial da performance. Completando o cenário, ao seu lado se encontra uma pequena mesa com um papel que nos indica as palavras a serem encontradas, ao lado de canetas que servirão para marcá-las.

A brincadeira começa simplesmente começando. O artista se aproxima da cadeira e senta, e começa a resolver o caça-palavras que tem em mãos. O convite para que participemos está implícito não só em sua atitude — já que mantém um certo distanciamento durante toda brincadeira, como se não nos escutasse ou não sentisse a caneta riscando suas costas — como no cenário criado. O ambiente é intimista. O local escolhido a dedo pelo artista é uma das menores salas da Galeria Vermelho, deixando a plateia a vontade para manifestar sua curiosidade, e logo também sua incontrolável vontade de ficar até o fim, de solucionar até a última palavra, de saciar o seu capricho quase infantil.

O lúdico está presente em muitos dos trabalhos realizados pelo artista, mas sempre acompanhado de uma conceituação significativa. Em Caça-Palavras o artista nos proporciona a possibilidade de sermos também performers. Ao se colocar na mesma posição em que seus espectadores, cria uma situação em que estes são artistas também; estão construindo e criando uma obra em conjunto. Através da janela em suas costas somos convidados a desvendar um mundo simples como o de qualquer espectador.

À partir das palavras oferecidas à caça em suas costas — cachorro, amarelar, queda, carro, dente, sustento, fantasma, periquito, etéreo e molhado — somos incitados a criar uma história, a tentar compreender o quebra-cabeça final que compõe a obra. O artista parece fazer o mesmo. Cada palavra encontrada em suas costas corresponde metaforicamente a uma palavra encontrada em sua revistinha de caça-palavras. As palavras nos levam diretamente ao artista, remetendo-nos ao dia-a-dia de um performer que, antes de mais nada, é a pessoa que se nos apresenta por trás do conceito lúdico de palavras comuns.

O improviso e a espontaneidade permeiam toda a ação, já que o artista, assim como os espectadores podem levar horas para solucionar o caça-palavras, como podem resolvê-lo em minutos. A ansiedade se espalha pelos presentes quando a solução se aproxima do final. Caras e bocas, cabeças e corpos que giram em torno do corpo-caça-palavras parecem não alterar a atitude do artista; que por sua vez, também gira a cabeça para encontrar as suas palavras, e é tomado por pequenos sobressaltos a cada achado.

A peformance termina quando a última palavra — queda — é encontrada por uma plateia já em clima de colaboração. A reação geral é a de euforia, como um grupo de crianças que juntas encontram o tesouro escondido. Palmas esparsas que não se dirigem ao performer, mas sim ao próprio público. Cada um se sente orgulhoso por sua parte na performance. O artista se levanta e com um sorriso discreto parabeniza a todos, que não tiveram medo do lúdico. Após a saída do artista da sala, sua cadeira e mesa, com o caça-palavras que tinha em mãos, assim como as canetas,permanecem no lugar. Seu rastro fica ali presente, lembrando aos passantes mais afoitos que a brincadeira ainda não terminou. Durante toda a mostra, horas depois do fim da performance de Banfi, pessoas ainda param para solucionar o caça-palavras ali deixado sobre a mesa.

Tratar do corpo como suporte para arte — como o faz uma mostra como a Verbo — traz à tona questões muitas vezes pesadas e incômodas; o que torna a proposta de dialogar com a questão do corpo e com o público de maneira lúdica uma atitude criativa. É como uma pausa no meio do trabalho, um intervalo durante as aulas, uma pausa para lembrar que o corpo não é somente dor e sofrimento, não deve ser o tempo todo questionamento. O corpo também nos ampara nos bons momentos, também a isto nos serve. Dentre tantas performances que permeiam a temática da palavra — tema da Verbo 2010 — a performance de Banfi se destaca através da leveza, da interação e de uma alegria infantil proporcionada aos participantes.

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