Jeffery Deaver e a arte de montar armadilhas

Deaver insinua, mistifica, engana. Escolhe os meios de encaminhar o confiante leitor à conclusão errada

Cena de O Colecionador de Ossos, livro de Deaver adaptado para o cinema

O romancista policial é um mistificador. Primeiro, como é necessário para qualquer escritor de ficção, ele tem de estabelecer essa credulidade: cria um “universo” fictício tão real em suas próprias condições que faz seu leitor crer nesse universo. A partir disso, ele abusa da credulidade do leitor. Nesse sentido, Jeffery Deaver, com notável habilidade, faz da escrita um instrumento econômico, cuidadoso, preciso. Não diz mais do que deve dizer: insinua; não diz mais do que deve dizer, mas escolhe palavras e frases que podem desviar a atenção do leitor da verdade, fazendo com que esse “complete” o não dito pela conclusão errada, com que caía na armadilha armada minuciosamente.

Qualidade encontrada dentro do gênero policial desde, pelo menos, Agatha Christie (O Assassinato de Roger Ackroyd, 1926), levar o leitor em outra direção é praticamente tarefa do romancista policial; desviá-lo do rumo, sugerindo outro (ou outros), omitir informações cruciais sobre alguns personagens (o que pode ser feito, também, apenas limitando o acesso do leitor a uma cena ou evento: o ponto de vista de apenas uma personagem sobre sua vida em família é uma das muitas “armadilhas” de Deaver no excepcional Lua Fria), usar da linguagem — palavras, frases específicas — para esconder do leitor, para enganar quem lê: são todos recursos do escritor de ficção. O romancista policial, contudo, está mistificando o leitor, o que é uma característica a mais: ele quer que o leitor vá em outra direção. Para quem não consegue ‘ver’ o que quero dizer ao descrever esse recurso, mas é cinéfilo, vale lembrar a sua utilização no cinema, em filmes de suspense ou terror (O Sexto Sentido; Identidade; O Mistério das Duas Irmãs) ou mesmo drama (Uma Mente Brilhante).

No caso de Deaver, o uso dessa técnica da mistificação se destaca em A Cadeira Vazia: somos enganados durante a maior parte da narrativa — através de diferenças de pontos de vista, omissão de fatos, falsidade de determinados personagens (que estão enganando não só o leitor, mas também os heróis da história) — até que a verdade enfim se estabelece. O mesmo ocorre (em menor escala) em O Macaco de Pedra. Em Lua Fria, possivelmente a mais feliz orquestração do ato de mistificar o leitor, o sentimento final de quem lê é, digamos, mais puro.

Explico: lendo A Cadeira Vazia e O Macaco de Pedra até o fim o leitor pode se descobrir preso por sentimentos conflitantes. Em primeiro plano, ele está surpreso pela habilidade do autor em conseguir enganá-lo. Esse sentimento de ter sido logrado pode, então, ser suplantado pelo de admiração pelo talento do escritor. Contudo, a boa fé enganada só suscita admiração irrestrita se o logro não brinca com os melhores sentimentos do leitor. Se isso ocorre de forma contrária e, ainda assim, a admiração permanece, ela vem mesclada à confusão, ao conflito sentimental a que aludi: leitor foi enganado de modo, digamos, cínico. O autor o enganou manipulando seus melhores sentimentos (como a compaixão, por exemplo). As emoções de um leitor ao final de um livro que fez isso com ele podem ser — comigo são — confusas.

Em Lua Fria, a mistificação é ampla, variada, mas positiva: nossos sentimentos de compaixão, e de justiça, podem ser mal dirigidos, às vezes, porém não gritantemente desviados. Deaver, numa cena absolutamente estupenda, estabelece todo o suspense nos enganando (uso do ponto de vista restrito), mas a conclusão da cena, seu desfecho, é surpresa (fomos enganados!) e alívio e alegria e admiração — pelo escritor — e pelo personagem pelo qual ‘torcemos’ durante a sequência. Um primor em suspense e em mistificação do leitor.

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