Relendo Faulkner: Destruição ou Sobrevivência

“O autor é elíptico; temos clarões, num estilo quase cinematográfico em seus cortes, capítulos curtos, o tom despido de melodrama”

Conheci William Faulkner aos 16 anos para 17, quando alguém citou seu nome com respeito; ao encontrar pela primeira vez um livro seu, comprei. O livro era Santuário, que ele publicou em 1931. De lá para cá, li o romance três vezes, a última terminada ontem.

Descubro: ler Santuário se torna mais difícil com o passar dos anos. Mudou o livro ou mudei eu?

Suspeito que fui eu. Depois dos 40 me descubro mais nervosa, mais sensível à leitura. A passagem de que me lembrava melhor — lá pela página 80 — a longa, angustiante espera de Temple Drake no celeiro, escondida e descoberta, quando seu perseguidor a alcança e ataca — foi a que mais tardou a leitura. A angústia de Temple tornou-se a minha; sofri com ela (Faulkner é elíptico; temos clarões, num estilo quase cinematográfico em seus cortes, capítulos curtos, o tom despido de melodrama). Não me recordo de tal identificação nas vezes anteriores. Simpatia sim. Lendo, aos dezessete anos, lembro-me de comentar com colegas de escola a ansiedade para que Temple fosse salva. Não sei mais que palavra usei. Salva? Resgatada? Temple é salva?

Ninguém é salvo em Santuário. Alguns sobrevivem, outros são destruídos, e isto é tudo. Mas eu não cessava de me fazer perguntas enquanto ia relendo, de novo diante de Temple e Popeye, de Horace Benbow e Narcisa e Clarence Snopes, de Miss Reba e Gowan e Ruby. Não deixava de me perguntar o que Temple estaria sentindo. Faulkner nunca nos diz o que ela sente. Ou ele não sabe (pode um personagem escapar ao seu criador? Creio que sim) ou quer que nós, leitores, busquemos saber. Eu a vejo amendrotada diante de Popeye, furiosa com Popeye; devaneando, prolixa, falando tanto sem dizer muito e dizendo tantas coisas no que não diz a Horace Benbow.

E talvez seja isso: como outros grandes escritores, temos de prestar atenção àquilo que Faulkner não nos diz. Temple Drake nos 17 anos, na tolice juvenil que é quando pensamos saber tanto (e todos não fomos assim aos 17?), Temple ao se vestir, repetindo: “Agora posso aguentar tudo” – e a repetição planta em nós a dúvida se ela pode mesmo; Temple no tribunal, prestando depoimento sem fixar os olhos em quem quer que seja; na cena que encerra o livro, sentada ao lado do pai num banco de jardim duma cidade estranha, fora de seu país, intocada pela paisagem chuvosa – seu rosto que ela fita ao abrir o pó compacto com espelho – “taciturno, triste e descontente” diz Faulkner. Temple foi destruída? Ou sobreviveu?

Popeye, Red, Goodwin, Tommy são destruídos. Ruby e seu bebê sobrevivem; talvez Temple. Horace Benbow é outra incógnita. Seu retorno à esposa é uma admissão de derrota ou uma pausa para buscar novas forças?

E Temple, sempre. Ela. Eu a procuro enquanto leio, quero saber o que sente, o que sentiu todo esse tempo. Sim, vai ver é isto, Faulkner não sabe, ninguém sabe, a não ser que tenha estado lá — no celeiro, e depois, como aquela menina esteve.

Volto ao começo deste texto. Terá o livro mudado ou fui eu? Quem sabe ambos. A marca do que é grande literatura: um livro em cem, em mil, muda a cada vez que o lemos, nos perturba de modo diferente.

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