Odisseia Interior: o “Um”, de Geraldo Lima

“Quero crer! Quero crer!” – desse grito, eu entendo: o mergulho no vazio, em que você tem só a si mesmo para se sustentar no mundo

“Vocês certamente conhecem o pensamento de Pascal segundo o qual o homem vive entre o abismo do infinitamente grande e o abismo do infinitamente pequeno”, diz, a certa altura de O Livro do Riso e do Esquecimento, o escritor tcheco Milan Kundera. O intervalo entre essas duas variedades de infinito parece ser o espaço que habita o protagonista de Um, obra do escritor goiano Geraldo Lima. No livro, acompanhamos o fluxo de lembrança, sensação, sentimento e especulação desse personagem, que parece abrir mão do cotidiano e persistir na busca do imenso. Corrói a si mesmo na análise das raízes de um sorriso, estático na fotografia; e na busca da experiência direta do Deus, que por um instante teve, um instante de assombro… Abaixo, Capitu entrevista o autor, que fala dessa necessidade da experiência além do controle, experiência religiosa, afetiva, sexual, artística: “procuro o arrebatamento através do fazer literário que expresse a angústia do homem de forma intensa”.

Creio que é preciso definir arrebatamento e distanciamento da maneira como, me parece, o livro as coloca. No primeiro, é como se a razão, a consciência, fosse arrastada (palavra que será marcante ao final do livro) — não há o que decidir ou escolher, mente e corpo seguem fluindo em violência. No segundo, a consciência, a razão se difundem em um invólucro de intelecto, digamos, uma camada que resguarda o sujeito do fato dinâmico, do acontecendo. Podemos ver indícios disso nos dois trechos seguintes:

Lá estão os dentes que, sob o transe do amor, mordiam os meus lábios até sangrarem. Enquanto não ouvia um ai!, ela não os soltava. Em seguida, limpava o sangue com a ponta do dedo, levava-a à boca e, com um olhar de anjo endiabrado, degustava o líquido pastoso. (…) Dizem que em todos nós há ainda algum resquício de canibalismo, que o espírito da civilização foi subjugando ao longo dos tempos, mas que costuma escapar da jaula da razão sempre que o amor mais louco se apossa de nós. Desejo de devorar o outro vivo, mastigar-lhe a carne, a alma, possui-lo para sempre.

Aqui, a intensidade da experiência incendeia. Por outro lado:

Éramos como irmãos. Éramos, porque, a partir daquele instante, minha mente pôs-se a conceber a ideia destrambelhada de ter qualquer coisa com Ariadne além de uma simples amizade. A primeira imagem que veio foi a do ato sexual. (…)

A imaginação havia ultrapassado os limites da sensatez, e meus olhos haviam visto o que não deviam ter visto: o corpo de Ariadne nos meus braços, nu, pesado, branco, branco. Chegara a sentir o cheiro forte da sua carne. Ouvira seus gemidos de prazer arrancando arrepios da minha pele. Ela, que parecia viver a mais absoluta abstinência sexual, crescia diante dos meus olhos como um ser pleno de desejo. (…) Eu me afastei por algum tempo, ou ela que se afastou, não sei, não sei.

Se antes se fala em “transe”, agora consideramos os “limites da sensatez”. Se antes sangue e carne e alma se misturava na mesma massa etérea a ser ingerida, agora o corpo é “pesado”, “branco, branco” — a repetição indica a impressão da cor mais forte do que a do ato; aqui o desejo era imprevisto, lá era natural, explosivo. O retraimento de Paulo, as várias ações de pensamento que o impedem de fruir o corpo real, existente e ativo sobre si são as mesmas ações de pensamento que o afastam da vida social, que o fizeram largar o seminário, entre outras escolhas. A paixão que devora é similar ao seu desejo de epifania. E há todas as gradações entre esses extremos.

Além dessa binariedade central, Um possui bons recursos estilísticos. Narrado em primeira pessoa, às vezes desemboca em fluxos de pensamento velozes. Noutros momentos, a prosa se quebra, sem transição, em poema, em versos. No primeiro capítulo, há muitos exemplos disso — o que na verdade leva a uma falsa expectativa, pois o livro prossegue, até a última divisão, com texto corrido, sem aquele tipo de variação. Usado assim, permite pensar que o uso é frívolo: pouco coerente com o todo da obra.

Outro elemento que me parece incômodo é a utilização de construções que soam clichê: “a mente é varrida pela tempestade da paixão“; “a chama do amor vai se consumindo assim”; “vi-me roído até as entranhas pelo vírus do ciúme“; “como um buraco negro insondável“; “a foice do seu olhar ceifou minhas pernas“, que é usada três ou mais vezes, com pequena variação, ao longo do texto. O próprio recurso de se referir a certo termo indiretamente, por algo que teoricamente o caracteriza, é praticamente compulsivo: temos “os corredores da mente”, “a turva cortina dos anos, o mover preciso das horas”, e também “o longo corredor das horas, dos dias, dos anos”, “na rede desse equívoco”, “o espinheiro daquelas frases”, “na engrenagem da minha vida”, “os eflúvios da paixão” etc.

Há outras tantas frases boas e descrições vívidas; aliado à dualidade citada e a outros temas subjacentes, tudo isso torna Um um livro equilibrado. Abaixo, o autor comenta seus temas, o quanto de si está no seu personagem, sua relação com o mundo e com a fé.

entrevista

Livros em primeira pessoa geralmente podem levar a esse tipo de questão: Qual é a sua relação com o protagonista do livro? Vocês são a mesma pessoa ou ele só se vive a partir de algumas, se alimenta, das suas memórias? Ou, ainda, é uma criação completa?

O Paulo é uma criação ficcional, ele é um tipo de personagem recorrente nas minhas narrativas: o cara que é abandonado pela mulher amada e entra em parafuso. Obviamente, a crise pela qual ele passa vai além disso, envolve questões de ordem existencial e religiosa. O personagem pode, até certo ponto, expressar ideias ou sentimentos que são do próprio autor, independente de ser um texto narrado em primeira ou em terceira pessoa. Não diria que seja algo sistemático, mas é uma prática possível. Claro que o personagem pode não ter nada a ver com a personalidade ou a vida do autor, mas é possível que uma ou outra situação vivida por esse personagem tenha sido resultante disso.

No caso do protagonista do Um, algo da sua crise religiosa tem a ver com a minha própria. Vivo nessa zona intermediária entre o crer e o descrer, mais ou menos como o filósofo E. M. Cioram se sentia: “Sou incapaz da fé, mas não sou indiferente aos problemas que a religião nos coloca”, disse ele numa entrevista. Minha crise em relação à Igreja Católica começou com a leitura, aos vinte anos, de História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman. Desde então, meu olhar crítico sobre o universo e as práticas da Igreja tem me afastado dela. Minha capacidade de crer também tem sido reduzida a quase zero. Veja que em determinado momento, sufocado pelo racionalismo do professor de Filosofia Jean-Michel, Paulo grita: “Quero crer! Quero crer!”. Desse grito, eu entendo: o mergulho no vazio, em que você tem apenas a si mesmo para se sustentar no mundo. Só resta ao indivíduo, nesse caso, a ética e mais nada, meu caro. O Paulo não é uma criação completa, mas não é, também, uma reprodução fiel da minha vida. As situações que ele vive são ficcionais. Fora o fato de eu ser professor também, pouco da realidade cotidiana dele tem a ver com a minha.

O livro é em grande parte um processo de rememoração e análise do rememorado, processo guiado pelas lembranças do relacionamento do protagonista com a personagem Ana Paula. Esse relacionamento é marcado pelas diferenças de personalidade entre os dois e — nos bons tempos — pela lascívia exacerbada, pela sensualidade feroz ou insinuante. Do jeito que vejo, a paixão ali se expressava verdadeiramente apenas no carnal — e esse carnal em vários trechos é ligado à morte, à violência. Amor, para você ou para o livro, significa voracidade?

Você tem razão: a paixão entre Paulo e Ana sustenta-se, basicamente, no carnal. Nesse sentido, a voracidade está presente sim na relação dos dois, e essa voracidade traduz-se, principalmente, no desejo de devorar o outro vivo. São os resquícios de canibalismo que ainda guardamos em nós. E esse possuir o outro significa não querer dividi-lo com mais ninguém. Paulo, dominado pela insegurança, experimenta isso ao sentir que está perdendo a mulher amada. A desrazão, nesse caso, faz emergir a violência, a vontade de agredir o outro. Eros e Tânatos se aproximam nesse momento. Mas há, no orgasmo, a sensação de morte também, um desfalecimento, um desprender-se do corpo. Paixão para mim é voracidade, é algo que nos desloca, nos cega, nos mergulha no universo da pura emoção. Se no livro o que se sobressai é essa visão do amor como voracidade, é porque a experiência vivida por Paulo, talvez mais intensamente que Ana Paula, foi isto: uma paixão voraz, da qual, aliás, ele só tomou plena consciência após ser abandonado.

Contrária a essa ideia de união voraz, há uma certa “distância intelectual” que mantém o personagem alheio aos acontecimentos e às pessoas. Em boa parte do livro, ele análise o sentimento e as ações de uma pessoa — mas a partir de um sorriso em uma fotografia. Ele também se “relaciona” com o vizinho apenas pelas conversas que escuta através da parede. Quando Ariadne se despe para ele, é indiferente e reflexivo, não ativo e envolvido, que ele reage. O que é essa distância, essa incomunicabilidade, essa solidão?

Em parte, ela é fruto da própria personalidade de Paulo, que se mostra refratário ao contato humano mais próximo, que se recusa a participar da vida do outro de forma mais presente. Veja que ele mesmo diz: “Que me importa se o vizinho do lado não saiba patavina da minha existência, tampouco eu da dele? Se é pelo espírito de preservação que nos agregamos, creio que é pelo da sensatez que devemos evitar ao máximo a contaminação pelos problemas alheios”. Ele sabe, como nos mostrou Espinosa, da necessidade desse espírito gregário para nos preservarmos, mas, ao mesmo tempo, sua natureza de lobo solitário rechaça tudo isso. Podemos observar que o convívio dele com Ana Paula, apesar da paixão, será, em vários momentos, mediado pela razão.

Nesse aspecto, Ana Paula subverte esse seu comportamento ao arrastá-lo para o convívio mais intenso com outras pessoas. Ariadne, até certo ponto, também cumpre esse papel de aproximá-lo do convívio humano mais corriqueiro. Podemos, no entanto, fazer outras leituras desse estado de solidão vivido pelo protagonista. Na urbe moderna, a solidão tem se intensificado, apesar de os canais de comunicação terem sido ampliados. Moro em apartamento e essa situação de incomunicabilidade com a vizinhança é real. Tudo é muito urgente e sobra pouco espaço e tempo para uma conversa.

Talvez comparável aos dois opostos mencionados acima — intensidade e distanciamento — é a relação do protagonista com deus, com a fé, com a religião. Abandonou o seminário, mas permaneceu na busca de um contato direto e arrebatador com a divindade. Como você pensa esses temas? E, nesse sentido, só é verdadeiro, real, valioso, o que nos arrasta, o que nos arrebata?

Paulo está à espera de uma epifania. A sua salvação ou o resgate de sua fé depende desse contado direto com o divino. É uma visão radical, imperiosa. O oposto dessa sua descrença é a crença absoluta e cega da sua mãe. Ela crê, e pronto. Mas como ele mesmo observa, isso não a torna melhor. O que ele procura, em termos de espiritualidade, não pode se sustentar mais na ideia de adotar essa ou a aquela religião. Ele pensa mesmo que não há mais necessidade de religiões. No que ele busca deve estar presente um elemento fundamental: a ética. Minha crise religiosa passa por este ponto também: na descrença de que o indivíduo aproxima-se do divino só pela fé. O arrebatamento viria desta combinação: ética e fé.

Mas até que ponto somos capazes de unir esses dois elementos? Paulo tem consciência disso: “…mas não fomos feitos para isso, para alcançar a perfeição divina, somos humanos demais…”, diz ele num quase desabafo. Penso que o “arrebatar” pode estar associado ao irracional, o que nos exige um certo cuidado. Ser arrebatado pelo quê? Por quem? Como escritor, procuro esse arrebatamento através do fazer literário que expresse a angústia do homem de forma intensa.

Como escritor, tenho consciência também de que o ser humano é complexo demais para ser aprisionado nessa ou naquela teoria. Paulo, na sua incapacidade de conviver com o semelhante e na sua busca pela purificação espiritual, expressa exatamente isso. O que me entusiasma mais é essa odisseia humana pela Terra.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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