Procurando Firme

Literatura de emancipação, de quebra do status quo. É a liberdade no pensar e olhar, a afirmação de que não há apenas uma maneira de vivenciar o mundo

“Seria preciso grande ousadia para fazer um menino brincar de boneca de vez em quando. Não chegarei a tanto. Mas um pensamento me veio de repente, ontem à noite, com certo alarme: enquanto meninos brincarem de espada, e meninas de boneca, continuaremos na idade da pedra.”Marcelo Coelho

Procurando Firme nos é apresentado em forma de diálogo. Entendemos Ruth Rocha como a contadora de histórias (o que nos remete já a um cunho muito tradicional da literatura infantil, aquele das histórias passadas de geração a geração) sempre em conversa com seu interlocutor. A relação escritor/ leitor se dá na interação/ interferência: esse questiona, reclama, pergunta… O relacionamento da autora com seu interlocutor, então, é um convite à mudança de perspectiva: da literatura como um sistema fechado para a literatura que se constrói de forma compartilhada. A obra pode ser dinâmica e seus parâmetros questionáveis.

Isso já indica um pouco dos propósitos do livro. Depois, aquele interlocutor realmente se importa com a opinião de quem ouve, demonstrando também que trabalha com uma referência mais que conhecida por todos: a dos contos de fada. Há um porém: a história que Ruth Rocha nos traz não é ‘comum’. Ela deixa claro que busca respaldo nas histórias tradicionais, mas de início avisa:

Uma história que parece história de fadas mas não é. Também parece história para criança pequena mas não é.

Ao vincular dessa forma sua história com a tradição, Rocha passa a trabalhar com o conhecimento prévio do leitor sobre gêneros, formas, temas: a escritora abre um horizonte de expectativas. Abre também um horizonte de leituras possíveis, termo usado no entender do teórico Hans Robert Jauss, que afirma que o efeito de um texto decorre de um processo de compreensão de mundo por quem lê. É a partir desse e nesse conjunto de referências, regidos por determinadas convenções, que ela age. Para definir que referências e que convenções nós podemos ter dentro da gente, temos os termos de Regina Zilberman:

Social, pois o indivíduo ocupa uma posição na hierarquia das sociedades;

Intelectual, porque ele detém uma visão de mundo compatível, na maioria das vezes, como seu lugar no espectro social, mas que atinge após completar o ciclo de sua educação formal;

Ideológica, correspondente aos valores circulantes no meio. De que se imbuiu e dos quais não consegue fugir;

Linguística, pois emprega um certo padrão expressivo, mais ou menos coincidente com a norma gramatical privilegiada, o que decorre tanto de sua educação, como do espaço social em que transita.

Vamos ao enredo. Nessa “história de príncipes e princesas”, começamos o percurso com um principezinho, treinado para ser forte, sair do castelo e enfrentar o mundo. “Ora, nada mais normal para um menino“, podemos talvez dizer… Um príncipe que é ensinado até a cuspir na cara, dar cotovelada e ralar o joelho. O elemento de espanto, de humor, nos é apresentado de forma natural, afinal, atitudes ‘sapecas’ como essa são comuns a muitos meninos. Contada a história do príncipe, Rocha começa a história de uma branca princesinha.

Inspirada em Rapunzel, Linda Flor é exímia em dotes e mimos, que, afinal, não servem para muita coisa:

— Pois é, naquele reino era muito bonito ter prendas…
— Prendas?
— É, dotes…
— Dotes?
— É, saber fazer coisas que não servem pra nada, que é pra todos saberem que a pessoa é rica… Só faz as coisas pra se distrair…

A princesinha, como vemos, é um orgulho para toda a família com sua educação e tato. Diferente do menino príncipe, sua função é ser muito prendada e esperar para que, um dia, um belo pretendente suba por suas tranças até a torre e a despose. Entretanto, a bela moça revolta-se com a situação e passa a não querer mais nenhum mimo e nenhum pretendente. Tudo exposto naturalmente, sem perguntas ou críticas; o leitor vai formar seus próprios conceitos, refletir sobre a situação ilustrada.

Linda Flor muda completamente: passa a usar calças, corta o cabelo, questiona mesmo o uso do próprio nome — diz não gostar dele. A princesa passa a fazer tudo o que seu irmão fazia: treinava gritos, cotoveladas e cuspidelas. Por que não? A autora, repito, em nenhum momento levanta alguma questão, apenas dá a princesa o mesmo destino dado ao seu irmão. Os dois puseram-se a procurar firme: não se sabe bem quem ou o que.

Todo esforço de ensino ao menino, e depois à Linda Flor, é para que um dia se enfrente o Dragão. A criatura, como <a href=”http://www.revistacapitu.com/materia.asp?codigo=180″:o Lobo de Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, é a personificação do medo e também dos obstáculos que enfrentamos. Esse, assim como na história de Chico, não vale de muita coisa quando visto de perto, pois não é nada difícil ultrapassá-lo, tanto para o príncipe, quanto para Linda Flor. O ilustrador Cláudio Martins, na edição que utilizei, nos mostra o dragão sendo enfrentado, à lança, por um rato. Será que tão grande figura ameaça tanto para ser enfrentada por um rato?

Dragão e Lobo são figuras do medo encontradas na tradição e já de todo, pela leitura dos autores, superadas. Os discursos ligados a outras fontes servem, neste momento, à superação de paradigmas, à quebra de expectativas, surpreendendo o leitor.

Não posso deixar de pensar na questão de gênero, já discutida na literatura infantil. A autora nos diz que a menina tem o mesmo direito de enfrentar o mundo e a vida do jeito que entende ser o melhor para si. Vemos semelhante narrativa em Faca Sem Ponta, Galinha Sem Pé, da mesma autora, em que o papel de menino e menina são invertidos e o tema desenvolvido, em linha gerais, é a educação de acordo como o gênero.

Rocha, em uma narrativa leve, oferece aos dois o mesmo direito de escolha, de vida; independente de gênero ou história de cada personagem. A mensagem é dada de forma clara, e não se faz necessário nenhum desfecho moralizante. O final, ao contrário, é uma mensagem que indica a liberdade.

Essa é uma literatura de emancipação, de quebra do status quo. É a liberdade no pensar e olhar, a afirmação de que não há apenas uma maneira de vivenciar o mundo, visto que os modelos de textos com os quais os autores trabalham (Chapeuzinho Vermelho, contos de príncipes e princesas em geral) são resultado de um conjunto de determinações, sejam literárias ou sociais, e trazem à tona uma face histórico-cultural voltada aos interesses de determinada época e classe social, em que o processo de recepção é diverso, em que as personagens servem como modelo de conduta, exemplo moral. Rocha, assim como Chico e outros autores desse tipo de trabalho, buscam identificar, analisar, questionar normas que regem a escrita e sociedade, sob uma perspectiva que considera a construção do leitor enquanto sujeito questionador, capaz de compreender as nuances de diferentes atitudes e suas determinadas conseqüências.

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