Alice for Dummies

Uma versão de qualquer obra estabelecida pode oferecer ao leitor outras perspectivas do mesmo tema, outros ênfases e, no cotejo com o original, suscitar outros pensamentos. Uma boa versão enriquece a obra, como fez Capitu, de Luiz Fernando Carvalho. Vê-se isso já na escolha de Elephant Gun, do Beirut, como leitmotiv. A música condensa uma das ideias de Dom Casmurro: a perda do passado, a volta impossível. Foi uma decisão atenta do diretor, entre outras opções de cenário e figurino, que mantiveram a essência de Machado e mesmo assim não o impediram de deixar sua visão e marca. Por outro lado, Tim Burton empobrece Alice no País das Maravilhas. O que faz é modificar seu modelo, de tal modo deturpando-o, que esse perde a natureza que o fez sobreviver ao tempo. Burton aprisionou Lewis Carrol em critérios alheios, tornou-o seguro, explicável, agradável, inofensivo. Tudo o que não é.

O propósito deste texto não é criticar Tim Burton por ter feito uma adaptação pouco fiel de Alice no País das Maravilhas. Um artigo que seguisse por esse caminho seria ingênuo — e não respeitaria a postura criativa do diretor. O ideário burtoniano conserva-se intacto em Alice: impressionante, belo, estranho. Acompanhando o percurso de suas obras, vemos que Alice se enquadra na mensagem que ele se esforça por passar. Ele parece se identificar com o fantástico em Carroll e com a ideia de que Alice seria apartada do comum — e disso fez a ponte com suas outras criações. Portanto, considerado só como um filme de Burton, é uma boa sequência ao desenvolvimento de sua obra. Se se quiser vê-lo pelo gênero fantasia, nós concordaremos que diverte como As Crônicas de Narnia e Harry Potter.

Reconheço também as outras qualidades do filme. De fato, os figurinos da protagonista são bem feitos. O personagem de Johnny Depp é, como sempre, cativante. Sim, sei disso. Mas há nos livros de Carroll uma ideologia subversiva que a adaptação desconhece. Há o lógico e o ilógico convivendo. Há a demonstração da possibilidade do improvável. Ou nada disso. Ou nada disso! E essa chance de reduzir tudo a uma frase e a certeza logo se desfazer dá ao original uma potência que inexiste no filme. Neste último, tudo tem motivo. Tudo é linear. Tudo é de uma constância que seria adorável à ciência. Tudo é explicadíssimo. Pergunte a qualquer um porque qualquer coisa aconteceu em Alice-filme. Ele saberá. Dirá: é por isso.

Mas ninguém pode fazer isso com Alice-livro sem temeridade. Carroll subvertia o sentido das palavras e o senso comum cotidiano, confundia raciocínios e aludia a problemas-tipo da ciência. A Alice original se irrita com o tratamento que recebe dos personagens do Mundo das Maravilhas, os repreende por não serem de tal forma, se maravilha com outros modos de ser, se confunde quando contestam o dela. O percurso dela é todo problematizado. Como veremos, a adaptação de Burton é sucessivamente simplificante, e, no final, nos permite supor um objetivo político escuso. Você pode ler o livro aqui.

‘Estou sonhando?’, pergunta Alice; ‘Está’, responde Burton implicitamente, a despeito do que o filme encene. Sonho, para o diretor de Alice, parece ter um cárater freudiano. Ele traz uma mensagem firmemente enraizada na realidade, assim, é vantajoso prestar atenção a ele. É produzido por um embaralhamento das impressões da vígilia e podem fazer ver, com um outro tipo de clareza, verdades que nos ficam interditadas no cotidiano. Dessa forma, Alice vê, antes de ir ao Mundo das Maravilhas, uma lagarta azul no ombro de seu noivo. Vê duas gêmeas que falam se sobrepondo. Conversa com uma senhora mais velha e ela lhe diz não gostar de rosas brancas. De tal modo que, elemento por elemento, temos a origem de cada uma das ‘alucinações’ do mundo inferior. Em Carroll, atravessamos o surto de fantasia sem esse tipo de escora. Se houve toda uma literatura a explorar significados em Alice, do modo como Burton reconta a história, essa exploração é impossível, ou, ao menos, infértil.

Se o enredo acaba por convencê-la de que o sonho é real, ele o faz não dizendo que o sonho tem uma realidade tão repleta de crédito quanto a vigília; mas que tem crédito por não ser nada além do mesmo material da vigília, apenas disposto de outra forma. ‘Existe de fato só uma realidade, mas podemos torná-la melhor com a beleza da fantasia’, essa parece ser uma das mensagens reincindentes de Burton. É isso em Vincent: o menino reelabora o que está ao seu redor. É isso em Peixe Grande, no qual o diretor nos deixa claro que as histórias contadas pelo pai, todas elas, tinham uma base real. É isso em Os Fantasmas se Divertem, em que o universo fantasmagórico segue expedientes burocráticos idênticos aos nossos. O fantástico é um estilo; é um artifício para obter alívio. Quando sob pressão, quando pedida em casamento, Alice solta a frase de efeito: ‘I need a moment’. E, só aí, cai no buraco.

Puberdade e Politicamente Correto

A autoreferencialidade do filme se manifesta também em uma das duas estruturas lineares do enredo: a metáfora da adolescência. O filme pode ser facilmente explicado por isso. É na infância que vemos Alice pela primeira vez, carente do afeto do pai. Na sequência, está sozinha e inadaptada ao mundo social. No decorrer da história, ela adolescerá: terá sua independência conquistada (absorvendo os princípios do pai a partir da vivência) e também aprenderá a se impor na sociedade. Procurando Nemo não é diferente, nem Rei Leão. Alice passa por um processo de aprendizado e crescimento inexistente no original. Nesse sentido, uma série de metáforas menores ajudam a desenhar esse processo simbolicamente.

O tamanho de Alice é uma delas. Ao longo do filme, ela é muito grande ou muito pequena e, no fim, com mais aprendizado e próximo de se tornar a heroína que todos querem, ela se torna do tamanho correto. Esse tipo de inadequação remete ao livro Bem do seu Tamanho, de Ana Maria Machado, em que se diz:

Era uma vez uma menina (…) assim mais ou menos do seu tamanho. E muitas vezes ela tinha vontade de saber que tamanho era esse, afinal de contas. Porque tinha dias que a mãe dela dizia assim:

— Helena, você já está muito grande para fazer uma coisa dessas. (…)

Então ela achava que já era bem grande.

Mas às vezes, também, o pai dela dizia assim:

— Helena, você ainda é muito pequenininha para fazer uma coisa dessas. (…)

Aí Helena achava que ela era mesmo uma bebezinha que não podia fazer nada sozinha.

Reforçando a ideia de transformação, temos o percurso da largarta azul: surge quando a protagonista é pequena e não sabe a que veio; ressurge envelhecida quando Alice decide se luta ou não contra o monstro que é servo da Rainha e então se torna crisálida; reaparece (se se pode dizer que era ela) no mundo real, como borboleta, ao mesmo tempo em que Alice ‘cria asas’ e parte para a China de navio. É também a lagarta a dizer que ela era Alice muito pouco, para perto do fim afirmar que era quase totalmente Alice. É evidente: menina que cresce, menina que se cumpre. Os três contornos que vimos nesse tópico imprimem tal linearidade no filme que ele se separa brutalmente do livro. Nele, Alice, se aprende, é tendo seus preconceitos e conceitos logicamente determinados contestados pelos acontecimentos. Alice-livro dificulta o conhecimento estabelecido. Alice-filme fala da puberdade.

E um detalhe paralelo: o filme aposta tanto no politicamente correto que a lagarta continua fumante, mas morre (ou se transforma, como quererá o leitor implicante) tossindo. Se não basta o óbvio para provar que não se trata de acaso, leia essa crônica de Ruy Castro.

Não se foge do destino

Disse que havia ‘duas estruturas lineares’. A segunda se trata da formatação do original segundo os ditames da saga do herói, um recurso de produção de roteiros baseado nas pesquisas mitológicas de Joseph Campbell e usado exaustivamente em filmes de fantasia de Hollywood. Há a interferência de um intermediário que a leva para o outro mundo (Hagrid, em Harry Potter, faz isso; aqui, é o Coelho Branco), há o encontro com um mentor (que é o Chapeleiro, para ela; Dumbledore, para Harry); ela enfrente a morte e ganha a recompensa, ela tem uma batalha em que deve usar tudo que aprendeu, ela volta ao mundo comum e usa o aprendizado para agir nele. Passo a passo. As mudanças em Alice tratam de adequar todo seu mundo ao formato. Wonderland se torna maniqueísta: de um lado a Rainha Branca e do outro a Vermelha. Há uma guerra em curso. Há um destino escrito que deve se cumprir.

Assim como antes a constituição do mundo fantástico, isso também coaduna com outros filmes de Burton. Charlie, em A Fantástica Fábrica de Chocolates, é agraciado pela sorte, é ele entre tantos outros o escolhido. Não só, uma natureza imprime um percurso e um destino do qual não se escapa. Em Edward Mãos-de-Tesoura, o protagonista pode ter a aparência de inclusão, mas ele sempre será inadaptado. É sua tragédia. Em O Estranho Mundo de Jack, uma personalidade se encaixa bem em seu determinado contexto — a transposição dela para outro só causa pavor e sofrimento. O caminho de Alice é em direção ao seu ‘lugar certo’. No fim desse texto, veremos o que ela encontrará.

A Alice original não é uma heroína. Ela não salva ninguém e na maior parte do tempo nem ao menos quer se envolver com as criaturas absurdas que vê, que a irritam e confundem. O caminho que ela segue não vai inelutavelmente a um clímax. Ele só vai. Assim:

‘O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?’

‘Isso depende muito de para onde você quer ir’, respondeu o Gato.

‘Não me importo muito para onde…’, retrucou Alice.

‘Então não importa o caminho que você escolha’, disse o Gato.

No filme, a indeterminação nem mesmo é uma escolha. Quando Alice segue o caminho que deseja, em vez de obedecer ao cachorro, descobrimos logo que ela segue, insensível, o que sempre foi seu destino. Não há com que sofrer; caminhamos até ele placidamente.

Isso permite mais algumas explicações reconfortantes. Por que ela foi a esse mundo? Ora, ela era a heroína pela qual tal mundo chamava. Há uma causa e um efeito. No livro, crê-se que ela sonhou. Mas foi mesmo só um sonho? E o indecidido permanece. A aposta.

‘Você está pensando em alguma coisa, minha querida, e isso faz você esquecer de falar. Eu não posso lhe dizer agora qual é a moral disso mas vou lembrar num instante.’

‘Talvez não haja nenhuma’, Alice aventurou-se a observar.

‘Ora, ora, criança!’, retrucou a Duquesa. ‘Tudo tem uma moral, se você encontrá-la.’ E foi se apertando contra Alice enquanto falava.

(…) Entretanto, Alice não queria ser rude e por isso agüentou o quanto pôde.

‘O jogo parece estar bem melhor agora’, disse para manter a conversa.

‘Perfeito’, respondeu a Duquesa, ‘e a moral disso é…‘Oh!, é o amor, é o amor que faz o mundo girar!’’

‘Alguém disse’, Alice murmurou, ‘que ele gira quando cada um cuida dos seus próprios negócios.’

‘Ah! Bem! Isto quer dizer quase a mesma coisa’, disse a Duquesa enfiando o queixo pontudo nos ombros de Alice, completando, ‘e a moral disso é…‘Tome conta do sentido e os sons tomarão conta de si mesmos.’

‘Como ela gosta de achar uma moral em tudo!’, Alice pensou consigo mesma.

Nesse momento, você se assegura que Carroll riria se você tentasse achar sentidos. Mas…

(…)’Se algum deles for capaz de entender os versos’, disse Alice ‘eu lhe darei seis pence. Eu acho que não há um mínimo de sentido em nada.’

Todo o júri escreveu, em suas lousas. ‘Ela acha que não há um mínimo de sentido em nada’. Mas nenhum deles se habilitou a explicar os versos.

‘Se não há sentido neles’, disse o Rei, ‘isso livra o mundo de um incômodo, você sabe, não precisamos procurar um. E eu não sei não’, ele continuou desdobrando o papel sobre os joelhos, olhando para ele de rabo de olho, ‘eu até diria que há algum sentido (…)’

A própria ideia de sentido parece movediça aqui, nos três trechos que citamos. Mas não vou adiante nessa análise. Só parto dela para afirmar a oposição central entre filme e livro.

A indeterminação e a inversão do raciocínio linear em Alice-livro é frequente.

Alice sentia-se um pouco irritada com a Lagarta fazendo tão pequenas observações e, empertigando-se, disse bem gravemente: ‘Eu acho que você deveria me dizer quem você é primeiro.’

‘Por quê?’, perguntou a Lagarta.

Aqui estava outra questão enigmática, e, como Alice não conseguia pensar em nenhuma boa razão (…)

Ou:

Logo seu olho caiu sobre uma pequena caixa de vidro que jazia sob a mesa: ela abriu-a e encontrou um pequeno bolo, no qual a palavra ‘COMA-ME’ era lindamente inscrito. (…)

Alice comeu um pedacinho e disse ansiosamente para si mesma. ‘E agora? E agora?’, colocando a mão no topo da cabeça para sentir se estava crescendo. Ela ficou surpresa ao perceber que permanecera do mesmo tamanho. Para falar a verdade, é isso o que normalmente acontece quando se come um bolo, mas Alice já estava acostumada a não esperar nada senão coisas extraordinárias acontecendo, que as coisas acontecerem de uma maneira normal pareceria chatice.

O que os personagens fazem é improvável, absurdo, incompreensível porque não sabemos que regras seguem ou se seguem alguma. Ou porque Alice tem determinadas concepções da realidade que são muito rígidas. Quero aqui chamar isso de alógico, nem com lógica ou de oposição à lógica, mas sem uma lógica. Com uma lógica cambiante. Indistinta. Fugidia. Aí é que está a subversão. No entanto, no Alice-filme, o que temos é um outro mundo, diverso do nosso, com outra lógica. A diferença é sutil e fundamental.

No primeiro caso, a compreensão é quebradiça. No segundo, ela pode ser consistente, pode ter um progresso e chegar à totalidade. É uma questão de aprender.

Tanto isso é verdade que os alimentos que fazem crescer e diminuir são comidas incomuns, com nomes próprios e com receitas determinadas. Há uma ciência a respeito deles, que, por exemplo, é conhecida pela Rainha Branca. Conhecimento constituído. Basta aprender.

Aproximação Política

Por fim, o final amesquinha o filme definitivamente. A criatividade de Alice é aceita. Passa de louca à empreendedora — visionária. Os loucos é que são os bons, diz várias vezes; sim, pois são eles que darão futuro aos negócios. As coisas impossíveis que a protagonista passa a engendrar antes do café são investimentos arriscados. E, com um intuito político flagrante — dadas as condições econômicas do nosso tempo — o filme leva Alice para conquistar a China, potência mundial que ameaça o domínio irrestrito que os Estados Unidos detiveram sob o mundo durante o século passado. Pode tudo isso ser interpretado de outra forma?

Caso possa, favor informar. Caso não, atentar para a ressignificação que o filme completo sofre quando supomos esse processo político subterrâneo. Porque a China é de outra lógica e detém seu conhecimento constituído a ser aprendido. A China possui produtos esquisitos e língua estranha. Dentro de território chinês, pode haver inadequação. Porém tudo pode ser superado, deve ser. Afinal, é o destino americano. Não é esse o mito do Mayflower?

Não que tudo o que tenha sido dito antes seja argumentação para essa tese política única. As partes do texto caminham por si. Alice é, de fato, um filme de Tim Burton — mas há qualquer resquício de Lewis Carroll?

 

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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