Gogol, Precursor do Modernismo

Só os que nada levam a sério, só os que não empenham o coração no que “vêem” — só eles permanecem incólumes?

Avenida Niévski está entre as primeiras produções de Nicolai Gógol (1809-1852). O escritor acha-se com 26 anos e demonstra um olhar modernista avant la lettre: a novela está repleta de características fartamente encontradas mais tarde na literatura e nas artes do século XX.

Precursor, Gógol tem um ponto de partida assaz simples: logo nas primeiras linhas, faz o elogio da Avenida Niévski, então famosa em Petersburgo (e que será coadjuvante em novelas posteriores do seu compatriota Dostoiévski):

“Não há nada melhor do que a Avenida Niévski, pelo menos em Petersburgo; para essa cidade ela representa tudo. Com o quê não brilha essa rua – beldade de nossa capital?”

O elogio é demasiado aberto, excessivo; para não ser ironia, Gógol teria de ser menos artista, menos sensível aos efeitos de um tom acintoso no elogio como é o começo da narrativa. Mas ele não é menos artista, ao contrário; do início ao desenvolvimento até a conclusão veremos seu domínio da escrita, e, portanto, do seu objetivo.

A Avenida Niévski é estonteante, um local de passeio, de encontro entre conhecidos, de exibição de elegância ou beleza; Gógol vai demonstrando sua peculiaridade enquanto dá-nos um retrato da rua em flashes que são recortes do que se passa nela; seus transeuntes, arrolados por ele para nosso olhar, são identificados por detalhes: bigodes, chapeuzinhos, mangas de vestimentas femininas, cinturas, sobrecasacas, um par de olhos, um “maravilhoso nariz grego” (pág. 19), um pezinho, uma gravata… Recortes que o escritor desfila ante nós à maneira modernista: como escreveu Marshall Berman, a técnica descritiva nessas páginas iniciais tem algo de uma tela surrealista (ou cubista).

Gógol assim faz um panorama da avenida das primeiras horas da manhã até o anoitecer; aqui, então, passa a nos falar de dois conhecidos que vêem duas jovens mulheres passando pela rua. Um, o pintor Piscariov, é uma figura tímida, talentosa, idealista; Gógol trata de pô-lo em contraste com a “praticidade” e a “sofisticação” da avenida, o que não pressagia nada de bom para o personagem.

O outro homem é o tenente Pirogov, um tipo bem diverso: vaidoso, metido a conquistador, segue a moça que lhe chamou a atenção e, se nem tudo lhe sai bem, ele não é da espécie de indivíduo cuja natureza possa sofrer uma decepção sentimental.

Este é o enredo de Avenida Niévski: a visão de uma rua, dois homens que olham duas mulheres, e o que lhes acontece ao separarem-se para irem atrás de seus sonhos…

Gógol encerra a história no mesmo tom leve e irônico do começo, só que agora com afirmações inequívocas das suas “reservas” quanto à avenida:

“Oh, não acredite nesta Avenida Niévski! Sempre que caminho por ela protejo-me melhor com a minha capa e tento não olhar para nada com que me deparo. É tudo um embuste, uma ilusão, nada é aquilo que parece ser! (…)” (pág. 89-91)

A conclusão, portanto, é que a Avenida Niévski é um lugar de ilusões, de irrealidade, de aparências. Mas o que Gógol não nos diz explicitamente, porém nos deixa em dúvida, é – será, afinal, que só os que nada levam a sério, só os que não empenham o coração no que “vêem”, podem atravessá-la incólumes?

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