Por que o Brasil não tem um Nobel de Literatura: a necessidade da tradução

A “literatura mundial” é uma “literatura anglo-saxã e convidados”

Uma das duas traduções da obra de Hilda

Durante a 26ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em 2022, o escritor português Valter Hugo Mãe, ao fim de uma palestra, foi perguntado do porquê do Brasil não ter um prêmio Nobel de Literatura. O ficcionista deu uma resposta simples: existiram escritores brasileiros que mereciam o prêmio, como Hilda Hilst, e, assim, deu a entender que compartilha de uma indignação pela falta do prêmio. O público pareceu satisfeito, apesar da resposta não trazer uma explicação desse porquê da falta de laureados. Não só isso, a menção desses autores apenas cria maior confusão, já que, se a literatura brasileira tem qualidade digna do prêmio, por que não há sequer um laureado?

Faz-se necessária uma análise materialista para entender a questão. Desde sua criação em 1901, o Nobel de Literatura foi entregue a 119 escritores. Desse total, 59 (49,58%) estão na França, Inglaterra, Estados Unidos da América, Alemanha e Suécia. Além disso, as línguas inglesa, francesa, alemã, espanhola e sueca agregam 77 (64,7%) laureados. As línguas não-europeias com o maior número de laureados são o japonês e o chinês, cada um com dois prêmios. O oligopólio dos cinco países e das cinco línguas sobre o prêmio explicita que ganhá-lo não se trata tão somente da excelência literária do autor, mas também de sua capacidade de fazer com que sua obra alcance a academia sueca. Isso, por sua vez, está relacionado à capacidade de países, com exceção da Suécia, de exportar sua influência cultural. Não me surpreenderá se a Coréia do Sul, que já consegue exportar sua música, seu cinema e seus quadrinhos, tenha seu primeiro escritor laureado ainda nesta década.

Creio que a real razão para o Brasil não ter um laureado não é uma falta de qualidade em sua literatura, mas o fato do português ser uma língua culturalmente periférica e, consequentemente, sua literatura não ser amplamente traduzida. Hilda Hilst, uma das autoras mencionadas por Valter Hugo Mãe como tendo uma escrita digna do prêmio, só possui duas obras traduzidas: Com meus olhos de cão (1986), traduzida para o inglês como With my dog eyes, e A obscena senhora D (1982), traduzida para o francês como L’obscène madame D. Dado que o prêmio é pelo conjunto da obra do autor, ao invés de livros individuais, seria impossível que Hilst ganhasse sem ter ao menos a maior parte de sua obra traduzida.

Existe também uma questão de “sorte”. Já tivemos escritores brasileiros excelentes que foram traduzidos para o exterior, a exemplo de João Cabral de Melo Neto, que ganhou o prêmio Camões em 1990 e o Neustadt em 1992: antes de se tornar inelegível ao morrer em 1999, havia a especulação de que ele receberia o Nobel. É importante ressaltar que isso, de fato, é apenas especulação e só poderá ser averiguado ao longo da década de 2040, quando as listas de indicados dos anos 1990 se tornarem públicas. Além disso, apesar da dificuldade de Portugal em exportar sua cultura, Saramago ganhou o prêmio em 1998. Logo, também é possível para o Brasil ganhar.

Trago a questão do Nobel não como curiosidade, mas para dar início a uma discussão sobre a dificuldade do Brasil de se inserir na literatura mundial. Almejar um Nobel não diz respeito tão somente ao país ser reconhecido por ter produzido um grande escritor. Estatisticamente, todo país deve ter seus grandes escritores. É desejar que o Brasil tenha uma maior penetração de sua literatura no cânone internacional, inclusive de sua produção contemporânea. Porém, o cânone literário internacional não corresponde a algo neutro: é um reflexo da capacidade de países de exportar sua cultura1, o que também está relacionado com seu próprio posicionamento em relação à divisão internacional do trabalho no capitalismo, sendo o Brasil parte da periferia do sistema.

Não ter sua literatura traduzida não é um problema exclusivo do Brasil. A tradução não é um veículo democrático de intercâmbio cultural, nem se iguala a uma troca recíproca de conhecimento. Há um fluxo desigual de traduções, já que a maioria delas é feita do inglês para outras línguas, enquanto o contrário é incomum. Assim, a “literatura mundial” é, na verdade, uma “literatura anglo-saxã e convidados”. Essa tradução unilateral representa um fator estrutural e estruturante da dominação cultural exercida pelos EUA: estrutural por ser uma consequência do domínio, e estruturante por fortalecê-lo. A tradução privilegiada de textos anglo-saxões impulsiona o ciclo de demanda por esses textos, favorecendo ainda mais iniciativas de traduções dessas literaturas2. Mesmo que outros países do centro do capitalismo sejam traduzidos, como França e Alemanha, tende-se a traduzir sua literatura prestigiada, enquanto algo como fantasia contemporânea ou romances policiais dificilmente são traduzidos de qualquer lugar que não os EUA ou o Reino Unido.

Apesar de vários países terem sua dita “alta-literatura” traduzida, o grau de prestígio que autores precisam atingir até serem traduzidos varia conforme o local onde estão situados. A Irlanda é um excelente exemplo disso: apesar de falar inglês e, portanto, haver grande disponibilidade de tradutores para sua literatura, há uma tendência de que apenas seus mais importantes autores sejam traduzidos, como James Joyce e Samuel Beckett, enquanto outros autores importantes seguem sem tradução, ao menos para o português, como Brendan Behan, Claire-Louise Bennett e Donal Ryan. Enquanto isso, autores significativamente menos importantes da França, como Muriel Barbery, conseguem ser traduzidos. Em relação ao Brasil e outros países do terceiro mundo, há ainda o problema da má qualidade das traduções feitas, mesmo quando se traduz a literatura canônica do país3.

Clarice domesticada

A literatura contemporânea da Inglaterra e dos EUA segue uma lógica de mercado, de maneira que dificilmente há um questionamento das relações sociais vigentes, acompanhado de uma aversão a uma complexidade em sua prosa, a fim de criar algo genérico e simples o suficiente para ser comercializado como universal. Isso permite que essas obras sejam vendidas para diversos países e façam parte de uma suposta literatura universal, o que reforça a visão de mundo dos países anglo-saxões.

Isso não é só um efeito da própria literatura anglo-saxã contemporânea, mas também impacta as traduções feitas para esse mercado, que tendem a domesticar o quanto possível obras que fujam desse padrão, visando que as obras estrangeiras sejam tão “inofensivas” ao status quo quanto os títulos do mainstream nacional4. A literatura brasileira tem maior chance de ser traduzida para o inglês o quanto mais “inerte” ela for – a exemplo da tradução de Paulo Coelho, que tem menor chance de ser premiada em função de sua baixa qualidade.

Não só isso quando autores mais experimentais são traduzidos, há uma tendência de adequá-los à lógica de mercado dos EUA. O caso de traduções da produção Clarice Lispector ilustra isso, como a Hora da estrela (1977) traduzida pelo acadêmico escocês Giovanni Pontiero, que amenizou a prosa deliberadamente estranha e coloquial do original, além de dar um caráter mais paternalista ao narrador em relação à Macabéa5. Traduções facilitadoras não são uma novidade, mas imagino que sejam mais comuns para os EUA e o Reino Unido em função de sua própria literatura contemporânea ter a tendência de não se preocupar com a elaboração da prosa. Linda Bishop até expressou desdém pela forma de escrita brasileira ao dizer que somos demasiadamente influenciados pelos franceses. É de se esperar que, caso a literatura brasileira tenha maior penetração no exterior, eventuais retraduções tentem se aproximar da experiência do original, como aconteceu com a obra de Lispector6.

Capitães da Areia brancos

É preocupante, porém, pensar o que uma tradução dos EUA faria e fez com a obra de Jorge Amado, por exemplo, principalmente seus livros mais panfletistas, como Capitães da areia (1937). Existe uma tradução da obra, feita por Gregory Rabassa em 1988. Como curiosidade, notemos que a capa dessa edição de Captains of the Sands traz a figura de quatro crianças brancas e loiras para representar os órfãos baianos. Isso não se trata de uma decisão feita por Gregory Rabassa, mas por um artista que, provavelmente, a desenhou a partir de um resumo do livro. Contudo, trata-se de uma ilustração no mínimo peculiar em um livro que critica a representação eurocêntrica de Jesus Cristo como alienante à parcela pobre e não-branca da Bahia. É uma forma de domesticação da obra que não passa pelo texto, mas que marca a expectativa do leitor logo de início.

Tem-se um dilema: a literatura brasileira, para ser exportada, precisa ser traduzida, mas há o risco que fazê-lo possa alterar a obra a ponto de descaracterizá-la. Mesmo que a tradução literária necessite certa domesticação da obra para que ela deixe de ser inescrutavelmente estrangeira7, há como fazê-lo sem modificar a voz do autor. Creio que um tradutor que entendesse as idiossincrasias do Brasil seria mais apropriado para traduzir nossa literatura. Ou tradutores do terceiro mundo em geral.

Para que a tradução seja um intercâmbio cultural e haja maior penetração da literatura do sul global no resto do mundo, há a necessidade de um esforço contínuo e maciço de tradução do terceiro mundo pelo terceiro mundo. Uma possível forma de conseguir isso é por meio de pactos de tradução entre países, tal como feito entre os EUA e o Japão durante o pós-guerra8, esforço frutífero o suficiente para que Yasunari Kawabata, um dos autores traduzidos, ganhasse o Nobel de Literatura em 1968. Uma possibilidade para alavancar esse esforço seria através de acordos de tradução de literatura contemporânea dentro dos blocos de países dos quais o Brasil já faz parte, como o Mercosul e os BRICS (uma forma de propagar essas literaturas e aprofundar o vínculo entre os países).

Por fim, uma questão um tanto mais idealista: receber novas influências, diferentes das da Europa Ocidental, poderia influenciar a literatura brasileira a se distinguir da literatura europeia de maneira significativa, ajudando a criar uma identidade mais própria por meio do aprofundamento do processo de antropofagia literária.

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ESTEVES, L. M. R. Uma discussão sobre a prática da retradução com base no caso das retraduções de obras de Clarice Lispector no exterior. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, SP, v. 55, n. 3, p. 651–676, 2017.

FERES, L. B., & BRISOLA, V. S. (2016). A literatura brasileira em tradução: o caso do Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior. Letrônica, s144-s154.

FIGUEIREDO, Rubens. Notas de um tradutor em 2012.  Estudos Avançados. Dossiê tradução literária., v. 26, 2012, pp.13-19.

SOUSA, Germana Henriques Pereira de. Tradução e sistema literário: contribuições de Antonio Candido para os estudos da tradução. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 35, n. 1, p. 56-74, jan./jun. 2015.

VENUTI, Lawrence. A tradução e a formação de identidades culturais. In: LINGUA(GEM) e Identidade: Elementos para uma discussão no campo aplicado. 1. ed. São Paulo: Mercado das Letras, 2002. cap. 3, p. 173 - 186. ISBN 85 85725-41-9.

Autor

  • Revisor de texto e mestrando em Crítica Literária na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A sua pesquisa volta-se para representações de revoluções na ficção ocidental a partir da queda do bloco soviético. Com amigos, produz o Cú-It, podcast sobre cultura trash.

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