Carnaval para abrir caminhos

Estamos acostumados a dizer que nosso ano só começa depois do carnaval, mas nós sabemos: nunca não é carnaval

Carne-vale, carne levare ou carrus navalis. A discussão sobre as origens ritualísticas do “carnaval” e a etimologia do seu nome ressurge a cada ano naqueles que se identificam com a festa das ruas, dos sambódromos e da noite brasileira. Igualmente, a sonoridade que melhor o representa também é objeto constante de disputa: samba, frevo, samba reggae e outras são constantemente evocadas como a alma do carnaval brasileiro, Mas a ideia de que uma só dessas formas de expressão seja a essência do Carnaval não podia estar mais distante da realidade cultural, que é simbiótica, múltipla e em constante transformação e amalgamação.

Em nossa playlist de fevereiro, buscamos trazer um pouco dessa multiplicidade de sonoridades que compõem a maior festividade brasileira. Uma explosão de samba, pagode, frevo, samba reggae, fanfarra, maracatu, baião, cumbia, carimbó e mais.

O carnaval tem uma simbologia católica, sendo inscrito no calendário litúrgico dessa religião: acontece no tempo da Septuagésima, que antecede a Quaresma, que por sua vez antecede a Páscoa (e esse cronograma determina ciclos institucionais fora do catolicismo). A Quaresma é um período litúrgico de caridade, jejum, abstinência de carne; o do Carnaval se apresenta como um momento de extravasão antes da reclusão – o que inclusive alimenta algumas das teorias de que a origem da palavra carnaval vem do latim carne vale (adeus à carne).

No entanto, como outras festas e liturgias cristãs, muito possivelmente a tradição das festividades carnavalescas ligadas aos países de tradição católica tenha escamoteado outras tradições pagãs anteriores. Uma delas, que me desperta a atenção, é do culto à deusa egípcia Ísis. Ísis, ou Eset em egípcio, foi uma das divindades mais importantes do Egito antigo, feiticeira, deusa da realeza, da maternidade, fertilidade e protetora do reino. Com um culto originado na cidade de Heliopolis, ela tem uma narrativa mitológica rica e foi cultuada para além do território egípcio, ganhando popularidade no Império Romano. Assim como sua significância e culto se diversificaram e transformaram no Egito, tal ressignificação também se desenrolou em Roma e em suas áreas de influência ao longo da Europa e no Oriente Médio.

O festa romana em culto à Isis era conhecida como Navigium Isidis (O Navio de Ísis) e, segundo a descrição do escritor e filósofo Apuleio (obviamente repleta de liberdade poéticas), era marcada por uma dia climaticamente perfeito: sol, árvores férteis e águas calmas (a água como meio de purificação era uma das fortes simbologias da festa). No cortejo das festas, filósofos, pescadores, soldados, gladiadores e sacerdotes festejavam junto com pessoas de todas as idades. Adereços ritualísticos como ânforas, folhas de palma, espelhos e máscaras adornavam o cortejo e era comum a presença de diversos animais. Havia músicos e coros entoando hinos. Com o ritual os romanos buscavam um período seguro de navegações, sendo o Carrus navalis (carro naval) o principal objeto do cortejo que era levado até o mar antes da procissão seguir para o templo de Ísis.

Como historiador tenho que ressaltar que esse é um breve resumo, cheio de simplificações e erros, de um entusiasta, mas não especialista. Dito isso, o poder do imaginário de uma festa européia, em culto a uma deusa egípcia, desencadear em uma festa fortemente celebrada em países afrodiaspóricos é de uma riqueza simbólica fantástica.

Ouso dizer que no Brasil, nosso Carrus navalis inagura o período de navegações no ano. Muito além da extravasão antes da reclusão litúrgica, o Carnaval é a celebração da fertilidade, da abundância, da liberdade e da esperança por um ano de águas tranquilas. Como toda boa festa pagã e popular, quanto maior o poder de culto, maior a recompensa, e por isso o nosso carnaval é uma das maiores festas populares do mundo. Estamos acostumados a dizer que nosso ano só começa depois do carnaval, mesmo que no fundo todos nós saibamos: nunca não é carnaval.

Autor

  • Poeta, historiador, produtor de conteúdo, produtor cultural, curador e seletor musical conhecido como Ico. Bacharel em História pela Universidade de São Paulo (USP), realiza pesquisas voltadas ao patrimônio e memória, além de se aventurar constantemente na história da literatura de ficção científica. É obcecado em escrever, desenhar e fazer playlists.

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