Parte do que sou começou em uma sala de aula

Alguns versos de música anotados num canto da lousa – e tudo muda

Registro da exposição de 2014 do Museu da Língua Portuguesa sobre o cantor Cazuza | imagem: Vania Wolf

Alguns momentos são definitivos em nossas vidas. Essa é a história de um deles. É curioso pensar que um simples gesto de um professor de português, ainda no ensino fundamental, teve um impacto tão grande em mim. Talvez – nunca mais tive contato com o referido professor –, nem ele saiba disso. Eu mesmo só percebi o quanto seu gesto me afetou anos depois.

Tive privilégio de estudar em escola particular desde o jardim de infância até o final do ensino fundamental – terminei a 8ª série em 2004, ao completar 14 anos. Era um colégio pequeno, na zona leste de São Paulo, há praticamente dez minutos de casa. Fiz parte de uma turma que estudou junto por todo este período. Fomos a segunda turma a se formar neste colégio, que na época não oferecia o ensino médio – ou seja, cada um seguiu seu caminho depois da formatura; eu fui fazer o ensino médio em uma escola pública. Hoje, mantenho contato com alguns poucos amigos, mas guardo um carinho enorme e nostálgico por todos eles. Inclusive pelos professores que tive nestes anos, tão primordiais para a formação de qualquer pessoa.

Waldnylson foi nosso professor de língua portuguesa por dois anos, se me lembro bem, na sétima e na oitava séries. Essa sempre foi uma das minhas disciplinas favoritas na escola, mesmo antes de decidir cursar a faculdade de jornalismo. Algo nas palavras, na leitura, na escrita me interessavam desde cedo, mas foi a partir das aulas do professor Waldnylson que tudo se tornou mágico, digamos assim.

Lembro de chegar em uma de suas aulas e ler no canto superior direito da lousa:

Eu tô perdido
Sem pai nem mãe
Bem na porta da tua casa
Eu tô pedindo
A tua mão
E um pouquinho do braço

Até aquele dia, eu não conhecia Cazuza ou Barão Vermelho. Tampouco tinha uma conexão profunda, e de certa forma consciente, com a música e as bandas de rock que conheceria logo depois – me recordo que gostava bastante de Skank e suas canções lúdicas, como “É uma partida de futebol” e “Garota nacional”.

Aquele foi o momento em que essa relação mudou em mim. O momento em que passei a prestar mais atenção no significado das palavras – e em qual mensagem eu queria passar quando escrevia algo. Também foi o ponto de partida para mergulhar em todo universo do rock nacional dos anos 1980 e 1990. Foi quando comecei a reparar nas letras do Renato Russo e me dar conta que meu pai estava sempre ouvindo em casa músicas como “Será”, “Tempo perdido” e outras. Ou quando conheci a potência dos Titãs e achei um CD do acústico na coleção do meu padrinho – sem ele saber, peguei aquele CD para mim. Em alguma outra aula o professor Waldnylson escreveu no mesmo canto superior direito da lousa um trecho de “Comida”:

Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?

Passei um bom tempo escutando e aprendendo essas músicas e letras-poesias de Cazuza e Frejat, Arnaldo Antunes, Nando Reis, Hebert Vianna, Lulu Santos, Lobão e tantos outros. É a primeira base do meu gosto musical. Mas, muito mais que isso, fazem parte da minha formação intelectual, artística e pessoal.

Se alguém me perguntasse o que aquilo – aqueles versos na lousa e tudo ligado à eles – significava, eu não saberia explicar. Hoje, penso que o que me fascinou foi a sensação de subversão que toda aquela situação me transmitiu. As letras, as músicas, o professor.  Nenhum outro professor daqueles anos se comunicava com os alunos como Waldnylson se comunicava. Aberto, provocativo, sincero – assim como era a letra de Cazuza, por exemplo. Para alguém em formação, qualquer atitude ou direcionamento que foge do considerado normal é instigante. Em uma sala de aula, vindo de um professor, isso ganha uma dimensão ainda maior.

Devo muito ao professor Waldnylson e seus ensinamentos. Professores possuem este poder de transformar pessoas, de impactarem com simples gestos. Parte do que sou hoje começa lá atrás, numa sala de aula.

Autor

  • Jornalista formado pelo Centro Universitário FIAM-FAAM, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Sua pesquisa focou a produção musical independente. É editor no Itaú Cultural.

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