Onde os sentidos vão para morrer: a redenção quebradiça do Sonic Youth

Show do Sonic Youth
Choque de guitarras em um dos shows do Sonic Youth | imagem: Luz Prieto

2021 tem duplo motivo para lembrar da banda americana Sonic Youth: a banda, fundada em 1981, completaria 40 anos agora; e, como encerrou atividades em 2011, são dez anos de fim. Caracterizado por um rock experimental a um tempo ruidoso e melódico, político e lírico, catártico e contemplativo, o grupo — formado por Thurston Moore, Kim Gordon, Lee Ranaldo e Steve Shelley, entre outros de menor participação — representa essa época em que o punk quebrou por excelência, ou por pertencer a ela ou por influenciá-la.

Neste ensaio, vamos abordar a banda por duas perspectivas: um, mais sociológico; outro, mais filosófico. Primeiro, será exposto como o grupo se posiciona no desenvolvimento de formas específicas do gênero rock e quais as relações mantém com os músicos que os precederam e com a sociedade de seu tempo. Segundo, analisamos a importância do noise – ruído, barulho – ao Sonic Youth, seus efeitos de dissociação, embotamento do sentido, experiência estética “negativa”. O tema de fundo dos dois pontos de vista é o sujeito.

Sujeito, de início, sociopolítico, que recusa modos hegemônicos de composição e estilos de vida tradicionais. Depois, sujeito diante do que não é redutível; ou seja, do sublime.

O Pardal na Árvore

Desde 1981, Thurston Moore (voz e guitarra), Kim Gordon (voz, guitarra e baixo), Lee Ranaldo (voz e guitarra) e Steve Shelley (bateria) lançaram 15 álbuns de estúdio com um estilo único frente a outros grupos de rock, explorando afinações peculiares, preparação de instrumentos, e, principalmente, o ruído como componente essencial das composições – o que lhes rende o rótulo de noise rock, assim como post-punk, rock alternativo, rock experimental. Além da discografia principal, lançaram a série Sonic Youth Recordings (SYR), com nove CDs. Nem sempre com todos os membros, às vezes em parceria com outros artistas (entre eles, Merzbow e Ikue Mori), a SYR aprofundou o que a banda fizera, inclusive com a interpretação de compositores como John Cage (“Six”), Steve Reich (“Pendulum Music”), Christian Wolff (“Edges”) e Pauline Oliveros (“Six for new time”).

O estilo do Sonic Youth tem raízes longínquas no punk nascido no fim da década de 1970. O punk surge como ruptura com o que o rock havia gerado nas décadas anteriores – estrelismo, shows enormes para massas, virtuosismo – procurando de imediato uma estética nova, que girava em torno da velocidade, da crueza, do amadorismo (a palavra só é usada em um sentido externo ao próprio movimento, na medida em que dentro desse contexto não há “profissionalismo” ao qual se oporia “por natureza”). As letras tratavam, em grande parte, de temas sociais e políticos. Perry Grossman, no texto “Identity Crisis: The Dialectics of Rock, Punk and Grunge” define essa nova estética:

A habilidade musical era com frequência rudimentar e estava conectada à ideologia de que qualquer um podia compor e tocar. Muitas bandas punk eram formadas com amigos pegando instrumentos e aprendendo a tocar conforme tocavam; consequentemente, músicas bem simples com batidas de bateria quatro por quatro [referência ao compasso musical] se tornaram comuns. O punk, com suas canções curtas e rápidas, era uma resposta a obras grandiosas do rock com sua extravagância vocal e extensos solos de guitarra. O punk assumiu uma abordagem minimalista de três acordes com vocais gritados em uma clara oposição ao canto melódico dos estilos anteriores.

O gênero se desenvolveu em correntes distintas, com outras elaborações de temática e de instrumental, como o hardcore e a new wave. A violência e a inadequação constitutivas dos momentos anteriores permanecem em medidas variadas; as letras ampliam seus temas a questões subjetivas e emocionais; a sonoridade, ainda centrada no som “sujo”, alto e de afronta ao senso comum (é interessante notar que o hardcore é em certa extensão uma ruptura com o punk, que teria perdido força e impacto por sua ortodoxia), mas flertando com o alcance maior de público em alguns casos. Paralelamente, a psicodelia e o rock experimental marcavam uma parcela da criação. Com essa influência, porém bebendo de todos os valores do período, nasce o Sonic Youth.

Com o início da década de 1990, esse processo se resolve em outra forma: o grunge. É mais fácil, em relação a esse estilo, identificar um “clima” de época: as bandas as quais receberam o rótulo às vezes têm muito pouco em comum. Podemos, no entanto, apontar a substituição da insubordinação e da crítica social pelo cinismo e pela introspecção. O Sonic Youth é para esses grupos nascentes grande influência. De certa maneira, portanto, a banda fica a meio caminho entre o surgimento do punk e sua última forma derivada.

Um sinal mais sintomático dessa importância adquirida — já que proveniente do campo acadêmico e de um músico fora daquela cena — é este comentário do compositor James Boros, publicado na revista Perspectives of New Music, em 1993:

Eu faço uso da frase do [teórico da música] John Rahn “a complexa coerência necessária para que se possa fielmente e imaginativamente expressar o mundo” Que tipo de música possui esse atributo? É uma questão de opinião, claro! Mas se eu fosse forçado a fazer uma lista, eu incluiria, entre outras coisas, a música de Bessie Smith, Morton Feldman, Public Enemy, monges budistas tibetanos, The Roches, J.S. Bach, Eric Dolphy, Sonic Youth e aquele pardal na árvore logo ali. (…) Eu não sei o que essas músicas têm em comum, exceto que de algum modo indefinível elas parecem genuínas, e eu cheguei a conhecer e a gostar delas após ter feito o meu melhor para ignorar minha bagagem e escutar a cada uma nos seus próprios termos.

É pelo menos curiosa a equiparação do Sonic Youth a Morton Feldman e J.S. Bach, no que possuem de “genuíno”, de “complexo”, de “coerente”, todos esses aspectos precisos para “expressar o mundo”. É como se esses três, e assim como eles os monges tibetanos, o grupo de hip hop Public Enemy e “o pardal na árvore” fossem permeáveis aos sentidos que o “mundo” possui e conseguissem reconstrui-los consistentemente, com identidade — e para compreender tal identidade o que se exige é julgar cada qual “em seus próprios termos”, o que significa talvez sem uso de quadros teóricos alheios a elas.

O Sujeito Fracionado

Mais do que um estilo musical, o punk se constituiu como modo de vida, que se colocava (e se coloca ainda hoje) como oposição ao que seja ligado ao status quo, com sua moda particular (espalhafatosa, fincada em símbolos de distinção ou escândalo) e suas maneiras de convivência (muitas vezes ligadas ao intenso uso de drogas e álcool, defendido pela potência da experiência ou exercido como autodestruição). Os elementos que aparecem aí sofrem variações, mas se mantêm todos em algum nível. No artigo citado de Grossman, vemos cartas enviadas a revistas especializadas que retratam as disputas sobre como agir, como se posicionar, como pensar além do estabelecido por meio de um novo código de regras, desta vez feito pelos rebeldes. O que parece haver nesses desenvolvimentos, é uma sensação de opressão exercida pelas estruturas sociais1 — e a válvula de escape ou é formar microssociedades ou se direcionar, romanticamente, à originalidade individual.

Essas tendências podem ser enxergadas no Sonic Youth. O nome da banda já evidencia sua filiação; como nota Grossman, “(…) o punk começou como um movimento de jovens e muitas bandas de hardcore entenderam a juventude como uma ideologia – o que é claro no nome bandas: Reagan Youth, Minor Threat, Youth of Today, Youth Brigade”. Versos seus, além disso, expressam inadequação e crítica social. Vejamos alguns exemplos.

Society is a Hole“, do álbum Bad Moon Rising (1985), diz:

Society is a hole
it makes me lie to my friends
(…) We’re living in pieces
I want to live in peace

Em “Teenage Riot“, de Daydream Nation (1988), estão tanto a ideologia jovem quanto a procura de novos caminhos:

We’re off the streets now
and back on the road
on the riot trail

Enfim, “Catholic Block“, de Sister (1987), exibe a divisão interna, que carrega em si a convivência com os velhos valores:

I got a catholic block
inside my head
(…) You got to earn your freedom
(…) There just is no end
I just trust the oppression
Like I trust your friends

Estilos de vida que neguem o “tradicional” são tratados em músicas como “Androginous Mind“, do Experimental, Jet Trash and No Star (1994) que se refere à questão de gênero (indicada no título) e à tensão sexual — e seu oposto algo caricato, a religião; já “Junkie’s Promise“, do Washing Machine (1995), descreve o efeito da droga. O conflito geracional é marcante em “Little Trouble Girl“, desse mesmo álbum, que, com uma forma remetente a uma cantiga infantil, é o discurso de uma filha à sua mãe, como que se libertando da opressão do seu afeto e se lançando na aposta de um amor. Relacionamentos partidos, em que há sempre alguma distância entre os parceiros, são descritos em “What We Know”, do The Eternal (2009), e “Karen Revisited“, do Murray Street (2002), entre outras. Conclui-se deste panorama que o sujeito se vê partido, tensionado diante das expectativas da sociedade e da época, dos familiares, amigos e parceiros, de si mesmo para si mesmo.

Essa quebra interna atinge até mesmo as composições, o que é visível pelo uso da ironia — formas deslocadas, ressignificadas pela sua nova posição e contexto, indicando para a fragilidade da própria criação e para fora do que aparece a quem a vê. Como já disse o filósofo Vladimir Safatle, “a ironia assume que o espírito não se encarna mais no efetivo; o original não é mais dado na obra feita, e só persiste na individualidade do artista que ironiza“. O New York Times reconheceu isso em uma resenha de Daydream Nation:

Muitas das canções são versões musicais de quadrinhos de arte, nos quais a sexualidade e a cultura americana e o conceito de seriedade são destroçados e renovados. (…) Muitas das suas letras são ocas (todas são creditadas à banda inteira), ou trabalham com uma noção tipo filme B de intercâmbio emocional tão clichê que não é possível salvá-las.

O senso de paródia da banda se encaixa em outro marco crítico do mundo da arte: a noção de que é a audiência – não o artista – quem constrói os sentidos. A sua ideia é que não há originalidade. Sejam filmes B ou gêneros musicais esgotados, todos conhecemos as referências do Sonic Youth. Daydream Nation soa como se tivesse sido composto por um comitê que, sem senso de humor, reunisse todo tipo de elemento americano que tem uma ressonância comum. Mestre da manipulação, o Sonic Youth é talvez o grupo mais autoconsciente em atividade: eles sabem exatamente como os sons e os símbolos do mundo moderno operam.

O Sujeito Dissociado

Outra herança punk é o estado de transe no palco. A comparação de dois registros fará a ideia clara. Primeiro, uma entrevista do vocalista da banda protopunk The Stooges, Iggy Pop, musicada pelo grupo post-punk Mogway em “Punk Rock“, do Come On Die Young (1999). Justaposto ao dedilhado, Iggy Pop fornece uma definição do que é o punk:

Punk rock é uma expressão usada por diletantes e manipuladores sem coração para nomear uma música que toma as energias e os corpos e os corações e as almas e o tempo e as mentes de jovens que dão o que têm para ela e dão tudo o que têm para ela e é um termo baseado no desprezo, é um termo baseado em moda, estilo, elitismo, satanismo e tudo que é podre no rock n’roll. Eu não conheço [o vocalista dos Sex Pistols] Johnny Rotten, mas eu tenho certeza… eu tenho certeza de que ele põe tanto sangue e suor no que ele faz quanto Sigmund Freud punha. Sabe, o que soa a você como um monte de lixo barulhento é, de fato, a brilhante música feita por um gênio: eu mesmo. E essa música é tão poderosa que ela está bem além do meu controle. E quando estou nas garras dela eu não sinto prazer e eu não sinto dor, fisicamente ou emocionalmente. Você entende o que eu estou dizendo? Você já se sentiu assim? Quando você não sente nada e você não quer sentir nada?

Você entende o que eu estou dizendo, senhor?

Em um trecho dos diários de Kim Gordon – não publicado no seu livro autobiográfico A Garota da Banda (2015), vemos um depoimento distinto, mas análogo:

No meio do palco, lá onde estou como baixista do Sonic Youth, a música vem a mim de todas as direções. O mais intenso estado de ser mulher é olhar as pessoas olharem você. Manipular o palco, sem quebrar a magia da performance, é o que faz alguém como a Madonna brilhante. Estruturas pop simples sustentam a sua imagem, permitindo que o seu eu real permaneça um mistério – ela é realmente tão sexy? Dissonância em alto volume e melodias desfocadas criam a sua própria ambiguidade – nós somos realmente tão violentos? – um contexto que permite que eu seja anônima. Por muitos motivos, ser obcecada por garotos tocando guitarra, ser o mais trivial possível, ser uma garota baixista é o ideal, porque o redemoinho da música do Sonic Youth me faz esquecer sobre o que é ser uma garota. Eu gosto de estar em uma posição frágil e torná-la forte.

Ambiguidade, anonimato, situação de ser observado, o ato de atuar para um público e a liberdade sutil de não ser o personagem que eles veem. Neste trecho e no anterior, o que há é a dissociação do sujeito em um campo maior, um estado dúbio de entrega no qual é engolido e, ao mesmo tempo, é maior do que jamais foi. Tal estado é significativamente próximo do que se define como sublime, senão manifestação genuína dele: o indivíduo, confrontando a sua pequenez, encarando o imenso, fruindo uma negatividade do sentido. E, nesse lugar de esmagamento, ainda consistente como indivíduo, íntegro na resistência, na pureza de sua razão e do seu sentimento, no que há de irredutível em si.

O Barulho Sublime

Um equivalente estético desse fracionamento e dessa dissociação — e também do sublime — é o uso do noise, do ruído, nas composições. Para além das dissonâncias, da preparação dos instrumentos e das afinações exóticas, quero me focar no que é (ou pode ser) visto como barulho, com o sentido de não-música, de incômodo etc. A caracterização desse recurso será feita com base em Torben Sangild, que estudou o campo específico do noise rock e identificou três maneiras diferentes, em alcance e objetivo, de fazer uso do ruído.

O Sonic Youth varia entre o melódico agradável e o abstrato ruidoso, entre a agressão punk e formas mais agradáveis (a cantiga Little Trouble Girl, a balada Diamond Sea). Se Bad Moon Rising (1985), o terceiro álbum, traz melodias repetitivas e monótonas, com espaço amplo dedicado à dissonância e ao barulho, CDs recentes como NYC Ghosts and Flowers (2000), Murray Street (2002), Rather Ripped (2006) e The Eternal (2009) usam com mais sutileza essa possibilidade, indo por caminhos singelos e etéreos — ao mesmo tempo em que, como dissemos, interpretam obras eruditas, ditas “difíceis”. O elemento constante do noise, em seus vários usos, pode ser compreendido como descendendo das práticas anteriores do rock (a psicodelia do The Doors, a violência do The Who e do The Stooges, o experimental do Velvet Underground), ou de práticas imediatamente anteriores do punk. Considerado em si, o ruído se entende como gesto – um análogo da linguagem performativa em música, não signo, mas ato. Atos esses percebidos corporalmente, semanticamente, contextualmente, em medida objetiva – como conjunto complexo de percepções – e em medida subjetiva – pois impõem ao sujeito uma formação de sentido.

Para Sangild, tais gestos, no noise rock, são empregados em três modos: expressionista, introvertido e minimalista. O primeiro expressa a decomposição do sentido, referente de caos, êxtase, excitação, fúria; o segundo denota, em lugar da explosão anterior, denota uma implosão, transgressão da subjetividade, apagamento das suas fronteiras; o terceiro, por fim, caracteriza um ato de indistinção, quando a explosão e/ou implosão é tudo o que há, e o sujeito se vê de tal maneira absorvido na desordem que interpreta seus mínimos detalhes em busca de ordem. Tendo em vista isso, o essencial, diz Sangild, é que:

Os três gestos esboçados aqui são bem diferentes em relação ao que expressam e como o fazem. Eles têm, entretanto, uma coisa em comum, uma coisa que os separa do rock mainstream tradicional e da música pop: um descentramento da subjetividade. No gesto expressionista o sujeito gestual explode em êxtase dionisíaco; no gesto introvertido o sujeito gestual implode em um embotamento das suas fronteiras; no gesto mínimo o sujeito gestual é destacado e minimizado. Isso toca no que eu descobri na minha pesquisa sobre a estética do ruído: o ruído em música aponta para além de qualquer subjetividade estável, em direção ao abjeto, ao heterogêneo, ao dionisíaco e ao múltiplo.

O autor alude à divisão nietzscheana entre apolíneo e dionisíaco — em que, grosso modo, o primeiro designa a “harmonia das formas”, o belo, e, o segundo, o sublime. Assim, o que encontramos nesse monte de lixo barulhento é, com efeito, a exacerbação de todo limite.

O Mar de Diamante

Em “Diamond Sea”, do Washing Machine (1995), podemos ver os gestos expressionista, introvertido e minimalista. Com essa pequena evidência, então, fecharemos este texto.

“Diamond Sea” tem três versões: a original, com 19’35’’, que enfocamos; uma gravação com final alternativo, de 25’50’’; e uma edição para o rádio, com 5’26’’. Trata-se de uma canção melodiosa e delicada. Voz, guitarras e baixo transcorrem límpidos: é uma música sobre amor e sonho, esperançosa, poética, na qual o eu lírico fala de um relacionamento – há imagens da quebra, o horizonte da subjetividade alheia, a perda de si em algo maior:

(…) I wonder how it came to be my friend
That someone just like you has come again
You’ll never, never know how close you came
Until you fall in love with the diamond rain.

Throw all his trash away
Look out: he’s here to stay
Your mirror’s gonna crack when he breaks into it
And you’ll never, never be the same.

Look into his eyes and you can see
Why all the little kids are dressed in dreams
I wonder how he’s gonna make it back
When he sees that you just know it’s make-belief

Blood crystalized to sand
And now I hope you understand
You reflect into his looking glass soul
And now the mirror is your only friend (…)

Neste “your mirror is gonna crack” [seu espelho irá quebrar], podemos perceber a noção de identidade rachada; e nossos únicos amigos são esses fragmentos despedaçados de eu, assim como temos carinho pela dispersão de pedras preciosas (“until you fall in love with the diamond rain” [“até que você se apaixone pela chuva de diamantes”]). É um momento de mudança: o passado ficou para trás e o sujeito se decide por uma vida nova (“throw all his thrash away // look out: he’s here to stay” [“jogue o lixo dele fora // olha só: ele veio pra ficar”]. Pelo seu olhar aprendemos que a inocência roça a transcendência (“look into his eyes and you can see // why all the little kids are dressed in dreams” [“olhe nos seus olhos e você verá // por que todas as criacinhas estão vestidas de sonhos”]).

Mais adiante, quando a letra (veja completa) aconselha a afirmar um amor eterno em meio à tempestade (“sail into the heart of a lonely storm // and tell her that you’ll love her eternally” [“veleje até o coração de uma tempestade solitária // e diga a ela que você vai amá-la para sempre”]), a música se transforma. Um timbre distorcido de guitarra adentra e entorna tons mais agudos e dissonantes. A bateria produz um ritmo menos espaçado, ao mesmo tempo em que a melodia de uma das guitarras se torna menos “compreensível” – logo é apenas ruído; já a outra guitarra e o baixo se concentram na repetição de algumas notas, até desfalecer. A canção então afunila. Em 5’50’’ advém o puro ruído, minimalista, e golpes dissonantes a espaços, como um sino etéreo. Daí, a sonoridade se reduz ao baixo, e a partir dele a música ressurge. Expressivamente, é como se a letra tivesse dado a deixa à tormenta: nós a atravessamos. O período de travessia, demorado, é a chance de amar o indistinto — de maneira que duas funções descritas do noise são possíveis aqui.

Quando “Diamond Sea” chega aos 7’55’, ela acaba, mas não acaba. Adentramos em outra atmosfera. A um arpejo (quando notas de um acorde são tocadas em sequência) sombrio na primeira guitarra se soma a batida insistente e crescente na segunda. Espaço hipnótico que vai se desfazendo – desaparece o dedilhado, recua a bateria até o ocasional bumbo –, até crescer em massa novamente e dar lugar a outro ambiente. Uma extensa nota aguda, a guitarra distorcida ressoa; ruídos indo e vindo, até que em 15’12’’ rompe o descontrole máximo. Agora se trata só de um loop vago, massa de barulho, enquanto a guitarra delira. Após 18’50’’, sobrevém a distorção parada e uma nova melodia que vai ao fade out.

Tal “cauda longa” não representa coisa alguma. A relação expressiva ainda é possível, se nós pensarmos que essa é a imagem sonora que segue o “amor enlouquecido”; também é cabível entendê-la como a dissolução final das barreiras pessoais do sujeito. Penso, no entanto, que o mais eminente nessa passagem é o caráter minimalista. O barulho puro é preponderante, um “turbilhão sonoro”, para usar o termo aplicado por Sangild:

“Redemoinho de ruído” é o meu modo de nomear um gesto em que a melodia e o ritmo se rompem em um turbilhão de barulho, gradualmente intensificando o andamento e o volume, com o potencial de absorver o ouvinte em um buraco negro estático. Esse vértice caótico está em oposição aos elementos estruturais, formais da canção, excedendo os limites dos sentidos, embora ainda sob controle em um nível superior. O redemoinho é simultaneamente uma explosão de energia e uma implosão de sentido, e faz trafegar para longe do claro e distinto e do semântico e para dentro do sublime e do estático. Em outro nível, contudo, essa expressão do vórtice caótico é precisamente o sentido. Sempre que o ruído desafia o sentido, o desafio se torna parte de outra forma de semântica.

Eis uma experiência sonora que exige até um novo gênero de espectador — qual é o tipo de ouvinte capaz de perseguir todo esse desenvolvimento, de perceber suas variações, sem o atrativo fácil do prazer e sem a confirmação simples do significado? Talvez esteja aí, nessa ampliação das possibilidades de fruição estética, uma realização da utopia punk, sua feroz interrogação de como pode o sujeito ser outro, marcar distância, multiplicar-se em relação a si e ao mundo.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

Notas[+]

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