As Indústrias Criativas e Culturais no Mercosul

O texto que segue é uma retomada a sangue frio da minha dissertação de mestrado, intitulada Cultura, Criatividade e Desenvolvimento no Mercosul: desafios e possibilidades para as indústrias criativas e culturais (acesse), defendida em março de 2021 no Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina, da Universidade de São Paulo. O objetivo da pesquisa foi o de compreender as características do campo de interação1 da produção cultural no Mercosul. Esse desafio me consumiu dois anos de estudo e o que descobri foi apenas uma fração do problema sério que vivemos, o qual pode ser colocado da seguinte maneira: é verdade que a produção cultural sul-americana cresceu significativamente nas últimas duas décadas, mas a posição da região no contexto global piorou e as perspectivas para os pequenos e médios produtores não são animadoras.

Uma primeira forma de visualizar o crescimento da região na produção de bens e serviços criativos é ver os dados globais monitorados pela Unctad. No gráfico a seguir perceber-se a superioridade da participação dos países em desenvolvimento no comércio internacional entre os anos de 2003 e 2015. Em números totais, o comércio de produtos criativos foi de 577 bilhões de dólares em 2015.

Gráfico utilizado na dissertação

É por apresentar números impressionantes que as indústrias criativas e culturais2 (ICC) passaram a ser consideradas fundamentais para os países, seja por gerarem renda e vagas de trabalho seja por promoverem outras dimensões, como a diversidade das expressões culturais e os valores históricos e estéticos.

O problema começa a aparecer quando se nota que a região da América Latina e Caribe ocupa a penúltima posição na geração de receitas e empregos, conforme o levamento feito pelo Primeiro Mapa Global das Indústrias Criativas e Culturais (2015).

Gráfico utilizado na dissertação

Alguns outros dados ajudam a compor esse quadro inquietante. Entre os 20 países que mais exportam produtos criativos, nenhum deles é latino-americano. Apenas o México aparece entre os dez mais em desenvolvimento que mais exportam. Em relação aos serviços criativos, os dados da Unctad (2010) mostraram que 83% das exportações foram feitas pelos países desenvolvidos. Além disso, deve-se considerar que somente a China foi responsável por 40% das exportações de produtos criativos.

Com base nesses em outros dados sobre seis domínios culturais de seis países sul-americanos propus que as ICC operam em uma lógica de diferenciação e concentração. Apesar do enorme crescimento, isso aconteceu sobretudo nos países desenvolvidos em na região da Ásia. Em relação à América Latina, percebe-se que a América do Sul tem os melhores índices, mas a força desse setor está concentrada em quadro grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Santiago.

Além da concentração geográfica das ICC, um outro problema é a regulação do comércio de bens e serviços. Para entender esse problema, é preciso considerar duas características do regime criado pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A primeira é o grau de liberalização imposto aos países membros, ou seja, a busca pela superação das restrições tarifárias para expansão do comércio de serviços. A segunda é a adoção compulsória do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs), o qual estabelece novas barreiras para circulação do conhecimento sob o pretexto da proteção dos direitos de propriedade intelectual.

É a junção dessas duas características aparentemente antagônicas, em um contexto de mudança de uma economia baseada na posse de produtos para uma economia centrada no acesso (RIFKIN, 2001), que a tendência de concentração das ICC parece ser incontornável. O melhor exemplo dessa lógica de concentração são as plataformas online. Entre as principais plataformas relacionadas aos seguimentos das ICC, nota-se que nenhuma tem origem nos países em desenvolvimento:

Tabela usada na dissertação

Assim, a tendência é que as ICC estejam cada vez mais dependentes desse “processo de plataformização” (POELL, NIEBORG, VAN DIJCK, 2020), ainda que a cadeia de produção esteja fragmentada em pequenos e médios agentes, como as produtoras, startups, estúdios, Labs entre outros. Dessa forma, não se trata apenas de uma concentração geográfica, mas sim de um tipo de concentração infraestrutural, baseada em uma economia de redes. Nesse sentido, os processos regulatórios, a capacidade de monitoramento, comercialização e predição são extremamente favoráveis aos países desenvolvidos.

Diante desse quadro, pode-se perguntar: existe alguma possibilidade para os pequenos e médios produtores criativos viabilizarem seus produtos e serviços? A resposta que encontrei é que sim. No entanto, é fundamental enfrentar ao menos quatro desafios, sobretudo em blocos regionais, como é o caso do Mercosul. Os quadros desafios são: políticos, regulatórios, conceituais e práticos/operacionais.

Além desse conjunto de desafios, o estudo de caso que realizei sobre o Mercado das Indústrias Culturais do Sul (Micsul) permitiu identificar uma característica muito particular do Mercosul, que é a resiliência do setor cultural dentro das preocupações do bloco. Esse aspecto foi animador, pois é possível imaginar que em contexto político e econômico favorável, os instrumentos institucionais construídos possibilitarão melhores condições para os pequenos e médios produtores da região.

***

Faço um convite aos que tiveram interesse pelo assunto a acessar a pesquisa na íntegra.

Referências

Cultural times: the first global map of cultural and creative industries. Paris: CISAC, 2015.

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de Mercados Convencionais para Networks e o Nascimento de um Nova Economia. São Paulo: Makron Books, 2001.

UNCTAD. Creative economy: a feasible development option. New York: UNCTAD; DITC, 2010.

SILVA JUNIOR, João Roque. Cultura, Criatividade e Desenvolvimento no Mercosul: desafios e possibilidades para as indústrias criativas e culturais. 2021. Dissertação (Mestrado em Ciências da Integração) – Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.

POELL, Thomas; NIEBORG, David; VAN DIJCK, José. Plataformização. Revista Fronteiras – estudos midiáticos 22(1):2-10 janeiro/abril 2020.

Autor

Notas[+]

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa