Totalitarismo Interior

Milan Kundera nasceu na Tchecolosváquia, e o contexto político que aparece em seus livros é a atuação do Partido Comunista dentro do seu país, a Primavera de Praga e seu otimismo, sua vontade de melhora — seguido pela invasão russa e pelo totalitarismo soviético. O escritor participou de todo esse processo, inclusive tentando organizar um levante reformista contra a ocupação da Rússia. Foi exilado, seus livros foram proibidos. Depois passou a viver na França, como cidadão francês, onde escreveu a sua quinta obra, O Livro do Riso e do Esquecimento(1978).

Kundera conseguiu fama internacional com o livro A Insustentável Leveza do Ser (1983); a versão cinematográfica da obra recebeu duas indicações ao Oscar (mas não parece ter agradado o autor: ele proibiu a adaptação dos seus livros). Ele também escreveu A Brincadeira (1967), Risíveis Amores (1969), A Vida Está em Outro Lugar (1973), A Valsa dos Adeuses (1976), A Lentidão (1993), A Identidade (1998) e A Ignorância (2000).

O tcheco exibe uma visão aguda sobre relacionamentos, explora as motivações pessoais dos personagens, une sonho e erotismo na sua ficção. Ele próprio afirma que quer ser visto como um romancista, e não como escritor político. Depois de O Livro do Riso e do Esquecimento, essa faceta vai diminuir cada vez mais, até que A Imortalidade (1990) seja ‘cosmopolita’ (não situado no seu país natal) e com teor mais filosófico.

No período em que se relembra a queda do Muro de Berlim e a falência das ideologias, O Livro do Riso… traz uma interpretação corrosiva dos acontecimentos, revelando um totalitarismo individual, íntimo e destrutivo, uma autoimportância que é o núcleo daquela falência. Kundera fala, em O Livro do Riso… da ideia de totalitário, tanto em regimes, quanto em pessoas, quanto nos pequenos gestos, como o riso, e nos grandes, como o esquecimento.

Outras informações biográficas estarão junto à análise do livro, segundo uma preferência do texto do autor, como se verá.

Do gosto de Nietzsche

O Livro do Riso e do Esquecimento tem uma estrutura complexa. Sem marcações precisas, mistura ficção, história, ensaio e autobiografia, em sete partes distintas que se assumem um romance (o autor quer que as pensemos como tal), mas não há ligação evidente entre essas partes, elas existem com total individualidade, como se fossem contos. É peça literária cuja forma se inspira na música, segundo o próprio Kundera afirma, na própria obra:

‘Vou tentar explicar por meio de uma comparação. A sinfonia é uma epopéia musical. Pode-se dizer que ela se assemelha a uma viagem que conduz, através do infinito do mundo exterior, de uma coisa a outra coisa, cada vez mais longe. As variações também são uma viagem. Mas essa viagem não conduz através do infinito do mundo exterior. A viagem das variações conduz para dentro da infinita diversidade do mundo interior que se dissimula em todas as coisas. Este livro é um romance em forma de variações’.

Esse trecho traz mais uma particularidade da obra: Kundera se coloca ativamente no detrás da história, como alguém que tem uma mensagem; sua literatura é projetada para um fim, e o escritor dispõe as regras e as peças de um quebra-cabeça. Nesse sentido, o livro se põe ao lado do tipo de arte que exige certo esforço, que não entrega seu significado ou se propõe a dar qualquer tipo de prazer fácil ao leitor — é ele quem deve se aproximar da obra e saber assim das suas entrelinhas. No entanto, o leitor pode em todo caso negar que haja qualquer sentido e desprezá-los. Com Kundera, não; aqui, é ostensivo: existe algo a ser decifrado e o leitor falha na sua leitura senão decifrá-lo.

‘As diferentes partes se seguem como as diferentes etapas de uma viagem que conduz ao interior de um tema, ao interior de um pensamento, ao interior de uma só e única situação cujo sentido se perde para mim na imensidão. É um romance sobre Tamina e, no momento que Tamina sai de cena, é um romance para Tamina. Ela é a principal personagem e a principal ouvinte, e todas as outras histórias são uma variação sobre a sua e se reúnem na sua vida como um espelho’.

As perguntas são evidentes: Que tema? Que pensamento? Que situação? Mas há um detalhe nesse parágrafo que relativiza o que eu disse anteriormente. O escritor é ativo, estudou uma ideia de fato e dispôs os elementos para que entendêssemos sua posição — mas ele mesmo não atingiu a compreensão total do seu objeto. O que significa dizer que esse livro não tem a pretensão de ser a declaração definitiva sobre nada; o leitor, por si, seria idealmente capaz de unir a informação do livro com a sua própria e ir além dele.

O livro, portanto, é um diálogo, uma construção de sentido. Nietzsche disse: ‘de que valem os livros que não nos lançam além de todos os livros?’. O livro de Kundera é um processo para lançar o leitor além dele próprio.

A literatura é só vício de escrever

Com isso em mente, é possível entender a pluralidade de técnicas usadas no livro, e, depois, compreender como pode Kundera desprezar o próprio ofício de escritor. A autobiografia e o uso de fatos políticos reais dão, respectivamente, as sensações de sinceridade — é a vida, as experiências concretas de uma pessoa que lemos; isso não desperta a nossa parte voyeur, assim como se diz que os reality shows fazem? — e de atualidade, ou seja, é útil saber dos relatos do livro, para aprender sobre a História, sobre as ideologias, a Política.

Dando o valor que aqui chamamos de sincero ao livro, Kundera fala dos últimos momentos de vida de seu pai, a paixão deste pela música, as últimas caminhadas que teve com o filho. Ele era filho de Ludvik Kundera (1891 – 1971), que era musicólogo e pianista, pupilo de Leoš Janáček e chefe da Academia Musical de Brno, de 1948 a 1961. Kundera aprendeu a tocar piano com o pai e depois estudou musicologia. Também estudou Literatura e Estética, além de produções de roteiros para cinema e direção cinematográfica.

Quanto à atualidade, ele conta como, proibido de escrever sob jugo russo, produziu uma coluna de astrologia em um jornal, na ilegalidade. É um testemunho da vida sob a ditadura, útil, atual. Muita coisa não diz sobre a relação de Kundera com o comunismo, mas pode ter o poder de instigar uns leitores a descobri-la. Ele fazia parte do Partido Comunista; em 1950, foi expulso, assim como Jan Trefulka, outro escritor tcheco. A justificativa foram ‘atividades antipartidárias’. Seis anos depois, foi readmitido no Partido, mas em 1970 foi novamente expulso. No livro que analisamos, ele escreveria:

‘Também dancei em roda. Isso foi em 1948, os comunistas acabavam de triunfar em meu país, os ministros socialistas e democrata-cristãos tinham se refugiado no estrangeiro e eu segurava pelas mãos ou pelos ombros outros estudantes comunistas, nós dávamos dois passos no lugar, um passo para a frente e levantávamos a perna direita de um lado, depois a perna esquerda do outro, e fazíamos isso quase todos os meses, porque tínhamos sempre alguma coisa para celebrar, um aniversário ou um acontecimento qualquer, as velhas injustiças foram reparadas, novas injustiças foram cometidas (…). Depois, um dia, eu disse alguma coisa que não devia dizer, fui expulso do partido e tive que sair da roda’.

Restam dois recursos técnicos do livro. A ficção tem a função de lhe fornecer personagens para usar como bonecos de suas situações de estudo, e os ensaios e as citações de livros conferem um aspecto científico a tudo. Kundera constantemente discorda dos personagens, oferece conclusões mais amplas que as deles, põe nomes que são referência ou piada, e, como dito, usa-os para estudar uma situação. E é por isso que faz sentido o seguinte trecho, que poderia parecer um absurdo ou um ataque a si próprio:

‘Cada um de nós sofre com a ideia de desaparecer, sem ser ouvido e notado, num universo indiferente, e por isso quer, enquanto é tempo, transformar a si mesmo em seu próprio universo de palavras. Nós todos que escrevemos livros não somos nada, somos desconhecidos, ciumentos, azedos, e desejamos a morte do outro’.

Kundera determina que a literatura é tagarelice, mas me parece que não trata da dele. Vida pessoal relatada e ficção pura seriam tagarelice, vício de escrever; mas aqui há um objetivo: esses recursos são usados para, em um diálogo com o leitor (o que pressupõe que o escritor não seja desconhecido nem ciumento), para construir alguma coisa. E aí o golpe de mestre do ensaio: sendo científico, isso é um conhecimento para um uso.

O que quer que Kundera pretenda que decifremos, isso nos serve para interferir no real.

O Livro do Excesso

Qual é, afinal, a mensagem de Kundera? Não estou tão certo da minha conclusão quanto na exposição anterior. Mas, de fato, é a própria estrutura do livro que privilegia a incerteza, faz com que mesmo esse texto de análise apenas continue a construção, o diálogo, de que agora faz parte você, leitor de Capitu. Minha contribuição, ou aposta, é: O Livro do Riso… trata, com seus vários momentos e recursos, do excesso de certeza, de pretensão de importância, que torna ideologia, amor, individualidade, desprendimento, liberdade, comunidade, e tudo o mais, em coisas destrutivas e/ou alienantes.

A ideia do totalitário, mesmo nos pequenos gestos. Não foi a ideologia socialista em si ou os objetivos igualitários dela que estavam destinados a falhar: mas a autoimportância que se deram os envolvidos, fixando em si a imagem de salvadores, a despeito de que não achasse que devia ser salvo. Não é o amor que por si faça ninguém sofrer, porém as expectativas de adoração dos apaixonados, ou a fidelidade a relacionamentos idealizados. É a comunidade de regras inquebrantáveis, é o desprendimento que nem se importa de guardar ou fruir nada. A certeza excessiva leva ao riso mecânico que quem concorda com si mesmo. A excessiva certeza leva ao esquecimento angustiado de quem perdeu a coisa pequena e valiosa.

Fora as variadas remodelações dessa ideia, a chave para chegar a essa conclusão está aqui:

‘Conceber o diabo como um partidário do Mal e o anjo como um combatente do Bem é aceitar a demagogia dos anjos. As coisas são, evidentemente, mais complicadas. Os anjos são partidários, não do Bem, mas da criação divina. O diabo, ao contrário, é aquele que recusa ao mundo divino um sentido racional. O domínio do mundo, como se sabe, é dividido entre anjos e demônios. Contudo, o bem do mundo não implica que os anjos levem vantagens sobre os demônios (como eu pensava quando era criança), e sim que o poder de uns e de outros seja mais ou menos equilibrado. Se existe no mundo muito sentido indiscutível (o poder dos anjos), o homem sucumbe sob o seu peso. Se o mundo perde todo o seu sentido (o reino dos demônios), também não se pode viver’.

Entre o ditador e o anarquista, pois, o equilíbrio é uma crítica constante, na vida pessoal e na vida política — que são, como se pode deduzir de Kundera, duas partes da mesma coisa. E há nele, além disso que me parece a mensagem central, duas aplicações dela, dois meios de rebeldia, digamos. Contra o esquecimento, seu oposto, a memória: não esse passado que se aperfeiçoa por publicidade, mas o passado afetivo real que diz quem somos. E contra o riso mecânico, seu oposto…

…o próprio riso. O riso não-angelical, não-intelectual, que desmonta a rigidez, que mostra o ridículo dos rituais e da autoridade — o riso de Chaplin, talvez. O riso que é como o aviso daquele menino da fábula, que acaba com a farsa da aparência e evidencia a verdade: ‘O rei está nu!’, ele grita em meio à multidão enganada. E o quê? Todos começam a rir.

 

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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