O Impecável Kazuo Ishiguro

“Se os personagens de Ishiguro nos fazem chorar, é porque não poderiam entender o por quê de estarmos chorando”

Li Não me Abandone Jamais do escritor japonês Kazuo Ishiguro (que vive na Inglaterra desde os seis anos) ano passado. Uma escrita sóbria, uma história cruel. Sem sentimentalismos, Ishiguro me pôs de olhos molhados ao terminar seu livro. Há poucas semanas, vi numa feira outro romance do escritor, de 1989 — o já filmado Os Vestígios do Dia. Comprei. Correndo o risco de fazer alarde desnecessário, o mesmo de que costumo acusar os críticos profissionais, leio e me deparo com um texto que só posso chamar de impecável.

A história se passa em 1956. Um mordomo inglês viaja para reencontrar uma antiga governanta que esteve sob sua administração no passado – viagem que o leva a recordar e rever esse passado. O texto não é nada complicado de ler. Ishiguro não é um inventor de linguagem ou técnica, não faz cortes abruptos de presente/passado que possam confundir o leitor, não inventa tampouco personagens marcadamente excêntricos; nem sexo, nem violência, nem luta pelo poder – os três eixos sobre os quais se move a ficção contemporânea – ocupam espaço em Os Vestígios do Dia, e de fato existe bem pouco dos três no outro romance que li do escritor, Não me Abandone Jamais. Se consegui fazer uma boa leitura, seu interesse está em pessoas. Na sua capacidade de vivência e sobrevivência, na sua capacidade de recordar e naquilo que quero chamar de “consciência dessintonizada”.

Em Não me Abandone Jamais, narrado na primeira pessoa, Kathy, a narradora, orgulha-se do seu trabalho. Nunca se considera infeliz pelo que ela é e por seu destino. E nem sequer lhe ocorre, jamais, revoltar-se.

Em Os Vestígios do Dia, igualmente narrado na primeira pessoa, Stevens, o narrador, também tem orgulho de seu trabalho. Ele é um mordomo que se sente satisfeito por sua carreira. Atravessamos mais de 200 páginas da narrativa de fatos (a viagem e seus incidentes) e reminiscências (o passado, nos dias em que a antiga governanta trabalhava na mesma propriedade da qual ele ainda é o mordomo), tomamos contato com um personagem, um homem, uma consciência que parece francamente dividida, fora de sintonia consigo mesma: há momentos em que Stevens soa consciente de algumas coisas sobre si e sua vida – mas só em parte, profissionalmente.

Stevens vive uma vida exterior/interior (interior é que é o mais chocante) em que parte dele não conhece outra parte; como se não se comunicasse consigo próprio. É o prolongado processo de recordar enquanto viaja – o “tempo de folga” disponível para a viagem, que o afasta de suas funções e de seu ambiente, a propriedade Darlington Hall – que o conduz, lentamente, arduamente, a alguma autoconsciência. Porém mesmo as linhas finais, as conclusões do próprio Stevens, fazem o leitor duvidar da acuidade dessa autoconsciência.

Em Não me Abandone Jamais, Kathy nunca alcança o estágio de consciência que a levaria a rebelar-se, a indignar-se. Em Os Vestígios do Dia, a consciência do fracasso, em Stevens, soa ambígua – terá ele compreendido o que perdeu? Sim, um pouco. Sim, talvez.

O que permanece, quando acabo a leitura de Os Vestígios do Dia, além do prazer estético, da experiência com a beleza que é lê-lo, é pensar em Kathy em Não me Abandone Jamais; pensar nesses personagens de Ishiguro que são infelizes sem compreendê-lo e que tem a sua peculiar dignidade. Cônscios do que fazem (seu trabalho) e ignorantes do que são/sentem. Há uma grandeza neles, e também uma grande tristeza. Porém, se os personagens de Ishiguro nos fazem chorar por eles, é, em parte, porque eles, Kathy e Stevens, não poderiam entender, não compreenderiam o por quê de estarmos chorando.

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