O Agitador Ventríloco

Por longos percursos hipnóticos, o espectador toma o som como atmosfera

Segundo ele próprio, o performer Bruce McClure pretende atingir a cabeça de cada um dos espectadores na sala com um bastão de baseball. De súbito. Distinto e oco o som do crânio rachando. No decorrer de Ventriloquent Agitators, que o americano apresentou no On_Off, mostra de performance e edição de vídeo ao vivo, quem assiste é engolido por um oceano de som, turbulento, constante e maciço. Não é o que se chama agradável. O volume é tão alto que a produção entrega protetores de ouvido antes do início da performance. Enquanto o barulho explode, figuras abstratas são projetadas em uma tela extensa como de cinema, por uma luz intermitente, por flashes sucessivos. Aqui o próprio artista avisa: a imagem frenética pode disparar um ataque epiléptico. Em um ponto da hecatombe, McClure é um vulto que aperta botões, manipula projetores e pedais de guitarra. O agitador ventríloquo.

Uma obra de arte que tanto no conceito prévio quanto nos efeitos imediatos ameaça a saúde de quem a presencia. Em que nada — no sentido mais cotidiano — acontece: as figuras são quadrados amarelos piscantes, que ou mudam de formação ou desaparecem, e só. A parede de ruído consiste em camada sobre camada de distorção e sequências sonoras repetidas sem nunca formar uma melodia. Na sala escura, McClure não é uma atração, apenas dando sinal de existência quando acende um isqueiro para enxergar a mesa de som, enquanto sobre ele os projetores giram, emitindo o barulho característico de máquina mordendo a película. Em um primeiro momento, é tudo ensurdecedor e agressivo. Alguns dos presentes abandonam a apresentação — atordoados desde o começo, provavelmente ficaram esperando uma grande mudança, enfim o truque de beleza, emoção e/ou estranhamento da arte! — que não veio. O público restante, atravessando a perturbação, pode (ou não) atingir o amortecimento.

O amortecimento. Em um segundo momento, é tudo agressivo e ensurdecedor, mas corpo e mente, lívidos, se alienam. Por longos percursos hipnóticos, o espectador pode sintonizar-se com a música, tomá-la como atmosfera; de tal modo uma constância nesse som suspende a consciência de quem é imerso que, quando o volume cai um nível, sente-se fisicamente essa queda — como uma corda que deixa de ser tensionada, como se relaxasse de um esforço. É efêmero e intenso e parece que não pode ser atingido por uma atitude consciente. Se fosse o garantido durante a exibição, poderia até dar à propaganda a chance de rotulá-la de viciante. Mas não é garantido. Há espaço para tédio, para observar as outras pessoas, para fazer essa pergunta besta: isso é arte?, para voltar a crer que haverá um mudança impressionante, para investigar se há um padrão nas figuras, para tentar descrever a experiência em palavras. No entanto não há espaço para o racional: rodamos em círculo, sem resposta, na especulação de sentido, e retornamos para absorver e/ou repelir o ruído mesmerizante.

Todos os caminhos explicativos possíveis não darão noção do que é a experiência real. Não é incomum que se destaque, por exemplo, que os equipamentos utilizados por McClure são tecnologia em desuso: som ótico, luz estroboscópica, projeção de 16mm. Para racionalizar a performance, poderíamos especular que essa escolha de maquinário seja uma oposição ao modelo de produção audiovisual mais comum. Se isso fosse verdade, teríamos um sentido para o barulho e o incomôdo, mas não parece ser o caso: inexiste qualquer crítica dentro da obra, qualquer referência; e mesmo em entrevistas de McClure (que seriam fontes fora da apresentação, externas e logo algo impróprias) não se vê comentário sobre isso. Que a obra sugira que há um repertório além do mais comum para a arte é fato, mas se prender a isso é perder seu significado mais íntimo e se ater a uma consequência paralela. Como se produz, portanto, nada diz; temos só efeito, estamos imersos no efeito, temos de lidar com o efeito.

Outro percurso explicativo seria especular um sentido a partir do título. Não haverá nada na performance em si que indique isso, mas de informação alheia é possível saber que o nome Ventriloquent Agitators é uma construção presente no Finnegans Wake, de James Joyce. McClure explica o nome em duas partes: faz referência ao ventríloco, a seu modo de sumir atrás do personagem que comanda, em torná-lo um alvo em vez de si; e no agitador político — de agitação, propaganda, no sentido menos recente. Além disso, o performer se lembra de certo antigo teatro de variedades inglês. Acima de tudo, ele diz que seus títulos, sim, têm sentido — mas pra ele. Não exige que tenham ao público. Se procurarmos entendimento, o que é que se encontra? Posso dizer que McClure manipula som e imagem tal o ventríloco, fazendo com que luz e ruído se manifestem por ele. Posso dizer que a intensidade é similar a da manifestação política, ruidosa, redundante, massiva. Tudo isso, sem o entretenimento do ventríloco e sem o conteúdo ideológico do politiqueiro. O simples ato brutal.

Por mais que isso seja uma interpretação consistente, ela nos joga ao presente inescacapável da performance, outra vez. Há interpretação que não leve a essa rua sem saída? O momento de execução é um universo em pausa e é nele que a obra existe viva de fato. Essa energia de centro talvez seja ela própria o ventríloco, o agitador — e eu ajo como seu boneco e massa de manobra. Impelido a expressar qualquer coisa. Porém, por mais coerente…

O último caminho possível é o homem que desaparece no cerne de tudo. O fato de ser uma experiência em que o som é pelo menos incomôdo e possivelmente prejudicial, assim como a luz pode ser também, o fato de ser tudo levemente uma ameaça sugere um preço para que se assista à apresentação; quem presencia, paga esse preço com o corpo e o risco que corre, por assim dizer. É uma relação imediatamente mais íntima que a do cinema, ou da galeria. Essa intimidade foi destacada por esse homem central: McClure diz que o performer, pelo menos, está junto com o público, passa por tudo aquilo com ele. Você pode reclamar, gritar e perguntar por que, por que tudo isso?, dizer diretamente a ele, que está ali fazendo o seu equipamento funcionar, às vezes se esquecendo das pessoas. Porém essa intimidade entre o público e artista, e essa individualidade que se mantém (envolvidos, mas livres), nos retornam ao ponto inicial: mesmo McClure é só mais um entre todos cujo mundo se interrompeu no instante, represando o próprio tempo numa bolha de luz trêmula e som extremo.

E quando tudo acaba… o silêncio é algo mais pobre, o público está algo atordoado: o que é que exatamente aconteceu? Como se alguém tivesse batido forte na nossa cabeça.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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