Interrogando um Clássico

Como ler, avaliar, interpretar um clássico? O que, por exemplo, Hamlet, ainda pode nos dizer?

É difícil encontrar algo novo a dizer a respeito de Hamlet. A mais instigante peça de Shakespeare já foi alvo de todas as espécies de análises.

Um caminho para analisar uma obra literária é relacioná-la a outras do mesmo autor. Uma peça de literatura pode ser examinada a partir de estilo, de tema e de enredo (os incidentes através dos quais o tema é desenvolvido). Outro exame é estabelecer uma ligação entre diversas obras de um escritor. Num aspecto — o tema da traição/ ingratidão — Hamlet aponta afinidades com as peças Tímon de Atenas e A Tempestade. Cada uma apresenta uma solução dada por Shakespeare ao assunto. Em Hamlet, a solução é a vingança.

Outra relação : entre Hamlet e Romeu e Julieta. Aqui é possível considerar, mais uma vez, a marca da modernidade na tragédia de Elsinor. No drama dos amantes de Verona, o conflito que separa o casal é externo: Romeu e Julieta sofrem por causa do ódio entre suas famílias. Na visão “romântica”, os obstáculos são sempre exteriores. Já em Hamlet, o herói-título e Ofélia estão separados por um conflito interno: Hamlet não confia em Ofélia para revelar-se a ela, fazê-la participar da sua missão, e Ofélia não confia em Hamlet, submetendo-se ao que o pai, o irmão e até o tio do príncipe esperam dela. É a desconfiança entre os dois jovens que os afasta e é, em boa parte, responsável pela tragédia. Hamlet é, assim, eminentemente uma peça “moderna”. É na modernidade que os obstáculos internos – emocionais, psicológicos — ganham ascendência sobre os obstáculos externos – acidentes, oposição entre famílias, uma doença fatal, etc.

Há também a interpretação psicanalítica. Em Hamlet é possível revisitar o complexo de Édipo. Uma leitura psicanalítica da tragédia entenderia Hamlet como um jovem que inconscientemente desejou a morte do pai por desejar inconscientemente a mãe. A revelação da morte do pai de Hamlet como assassinato é chocante ao herói por colocá-lo diante de seus mais reprimidos desejos; Hamlet busca vingar o pai porque a culpa pelo que ele próprio desejou o persegue, ainda que ele não se aperceba disso; nessa interpretação da obra, a conversa-confronto entre o príncipe e sua mãe, Gertrudes, no Ato III, Cena IV, ganha contornos perturbadores. Essa leitura psicanalítica serviria igualmente para explicar porque o príncipe mantém sempre uma atitude tão dúbia, tão indefinida com respeito à jovem Ofélia — a explicação seria que não é a Ofélia que Hamlet ama…

Qual é a verdade? Qual a leitura “autêntica” de Hamlet ? Não se sabe. Escrita e representada por volta de 1600-1601 (segundo E. K. Chambers), a peça continua a desafiar-nos com suas possibilidades, seus múltiplos significados, sua feição simbólica, sua riqueza. Há mais de 400 anos ela nos intriga e fascina; seu protagonista nos obceca e seduz. E nada indica que isso possa mudar. Hamlet é um clássico, uma obra-prima à qual voltamos e voltamos, eternos interrogadores. “Ser ou não ser, eis a questão”. Este é o sinal dos clássicos: provocar em nós uma perene indagação.

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